Comentário

Ligados por uma cicatriz

‘O infarto da alma’, livro coassinado pela fotógrafa Paz Errázuriz e pela escritora Diamela Eltit, traz histórias de casais surgidos no hospital psiquiátrico chileno Philippe Pinel de Putaendo

TEXTO GIANNI GIANNI

03 de Agosto de 2020

Infarto 23, Putaendo, da série 'O infarto da alma', 1994

Infarto 23, Putaendo, da série 'O infarto da alma', 1994

Foto COLEÇÕES FUNDAÇÃO MAPFRE © PAZ ERRÁZURIZ/CORTESIA DA ARTISTA

[conteúdo na íntegra | ed. 236 | agosto de 2020]

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No dia 17 de março
deste ano, quando ocorreria a abertura da exposição Paz Errázuriz – Coleções Fundación MAPFRE no prédio do Instituto Moreira Salles da Avenida Paulista, o centro cultural precisou fechar as portas devido à pandemia do novo coronavírus. Estava tudo pronto, sala branca com detalhes verdes, como se vê em um vídeo do meticuloso processo de montagem dessa exposição retrospectiva. A artista já havia cancelado sua vinda ao Brasil, seguindo recomendações dos órgãos de saúde, e, na sequência, o público também foi interditado em sua própria cidade.

O instituto, no entanto, não deixou de colocar em circulação O infarto da alma, livro fototextual assinado pela fotógrafa chilena em parceria com a escritora e conterrânea Diamela Eltit, publicado originalmente em 1994 e agora, pela primeira vez, no Brasil. Errázuriz é conhecida por retratar indivíduos que desviam da normatividade social e por estabelecer com eles um vínculo de confiança que também participa da composição fotográfica. Apesar de a maioria de suas fotos resultarem em retratos, já afirmou que não se sente uma retratista, mas, sim, uma fotógrafa documental que se atém à realidade de forma particular, guiada por uma liberdade intuitiva e por um amplo interesse pelo ser humano.

De todos os elementos, todas as portas de entrada possíveis ao livro recém-publicado, escolho a do convívio. Afinal, O infarto da alma consiste em uma seleção de imagens de casais que surgiram no hospital psiquiátrico Philippe Pinel de Putaendo, a 200 quilômetros de Santiago. Logo, é uma obra sobre o convívio amoroso em confinamento, algo que parece friccionar de forma indiscreta com nosso momento sem que haja via de comparação – a conversa entre esses personagens das fotografias e nós só pode se realizar no campo da diferença.

A convivência também é senhora do processo que leva à obra; o exercício de aproximação de Paz com as pessoas retratadas dura anos. A fotógrafa grava o sonho da interna Juana em janeiro de 1990. Já a visita narrada no livro é de agosto de 1992. Não sejamos levianos, o convívio não é mero método, mas, antes, uma disposição artística e testemunhal ao atrito. Uma espécie de coragem.


Infarto 22, Putaendo, da série O infarto da alma, 1994.
Foto: Coleção Fundações Mapfre © Paz Errázuriz/Cortesia da artista


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Não sei vocês, mas a maneira como os acontecimentos presentes convocam nossa atenção faz com que tudo que eu consuma culturalmente se contagie pela minha tentativa de encontrar saídas. É um modo de leitura viciado pelos contornos da nossa tragédia, a busca por qualquer diálogo que ajude a tornar o cotidiano menos insuportável e a pensar a respeito do fio de continuidade das relações, da política e da vida. Uma espécie de desespero.

O amor e o confinamento, o confinamento e o amor. A sequência em que acontecem – amor e confinamento – implica em narrativas obviamente diversas. O infarto da alma nos apresenta delirantes que se enamoram, a pandemia talvez nos entregue as condições em que os amantes facilmente se rendem às suas neuroses. Em Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes relembra que há mais de século eu é um outro tornou-se a máxima da loucura, a qual define como uma experiência de despersonalização. O sujeito amoroso, no entanto, deve lidar com a condição inversa, a de não ser o outro, a de nunca alcançar a unidade inconscientemente almejada com o objeto de desejo.

Diamela Eltit também escreve sobre a tendência a se fundir dos loucos. A carência de demarcação do eu, na lógica das sociedades modernas, é “remediada” pelos muros do hospício. As fotografias de Errázuriz, no entanto, mostram-nos que no interior dessa estrutura, que consegue ser precária em absolutamente todos os seus aspectos, persiste ainda “a necessidade atávica de amar”, nas palavras da própria Eltit. É curioso que Barthes tenha dito, no livro já citado, que de modo nenhum poderia se imaginar um louco enamorado, desarticulando a romantização da loucura para dar lugar à dificuldade da alteridade. Porém, os apaixonados de Putaendo nos levam a pensar naquilo que existe na experiência amorosa para além das negociações das fronteiras psíquicas. Ou, ainda, que essas negociações e aproximações podem se sobrepor à nossa capacidade de elaborá-las.

Penso nos casais que a pandemia trancou juntos, em casa, em tempo integral. O confinamento privilegiado, no espaço familiar, de quem aguarda a doença do lado de fora ser contida. De certo modo, a inversão da experiência dos internos de Putaendo. Comenta-se bastante o boom de divórcios que essa situação promete gerar. Aqueles que escolheram o amor que não se experimenta na clausura amargam a impossibilidade do distanciamento momentâneo, dos intervalos de respiro. Dão-se conta da exigente tarefa de colocar limites ao outro enquanto confirmam o fracasso daquilo que Eltit nomeou como “fantasia de um desejo siamês”. Para os ditos sãos, o confinamento a dois pode instituir o insuportável da diferença. “O sujeito encravado em sua unidade, fere-se ante os entraves que lhe apresenta este outro”, ainda a autora. Uma espécie de combate. Quer dizer, uma espécie de trabalho. Não; uma espécie de escolha.

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Do conjunto de imagens desse projeto, chama-me a atenção o lugar ocupado pelas mãos e pelos braços. Os gestos que partem dessas estruturas corporais ou a forma como se posicionam constroem uma paisagem de afetos e sugerem a especificidade de cada casal aos meus olhos. São muitas as maneiras de, ante a lente de uma câmera, mostrar-se enlaçado ao seu par, apresentar a convivência e a afeição partilhada. De mãos dadas, braços dados, com o braço sobre os ombros da companheira, lado a lado com as mãos apenas roçando, abraçado por trás, com o braço agarrando o companheiro pela cintura...

Quase todos os casais se unem por mãos e braços, mas não da mesma forma. Indicam a intimidade irrepetível, a singularidade de costurar dois corpos em uma cena única de dedicação. Isso se sobrepõe ao permanente contraste entre apego e aridez, vínculo e alheamento. Os casais em primeiro plano não escondem a degradação do ambiente em que se encontram – paredes descascadas, muros riscados –, assim como também nos entregam a deformação dos fármacos. O modo como comungam (ou não) o toque físico no momento que são retratados imprime um traço de subjetividade potente desses namorados. Barthes escreve que justamente o gesto do abraço amoroso parece realizar por um instante o sonho de união total, de fusão, com o ser amado; e que o gesto carinhoso, no campo da demanda, é um “condensado miraculoso da presença”.

Assim como as fotografias contribuem para confirmar a essas pessoas a sua própria existência, a abertura para cultivar essas relações também depõem a favor de sua vivacidade.

Politicamente, a potência desses indivíduos, juntos ou separados, é um soco na boca do estômago. O que é um louco internado em um hospício? O corpo desprestigiado, fora de circulação, cujo maior desmando, como aponta Diamela, não é a cisão da sua psique, mas a sua inviabilidade ao sistema produtivo e, consequentemente, sua renúncia ao consumo. Na estrutura capitalista, bem sabemos, estes devem ser eliminados: loucos, velhos, indígenas... Os que não movimentam cifras, não alimentam o e-commerce, não são rastreáveis por algoritmos. A esses, qualquer cercado, muitas vezes inóspito, concedido pela “caridade estatal”, deveria bastar.


O livro fototextual de 1994 só agora ganhou publicação no Brasil.
Imagem: Reprodução

As fotografias de Paz, então, apontam o imperativo de cuidar do outro, de aninhá-lo, acarinhá-lo, quando a macroestrutura o condenou ao exílio. “Ele me dá chá e pão com manteiga”, afirma uma interna. Quem são esses fotografados, senão indivíduos dispostos a sobreviver, dispostos a se alimentar, dispostos a resistir juntos ao lugar abjeto a que foram condenados socialmente?  Eles se atam pelos braços, instauram a realidade de contato e troca que o mundo lhes havia negado.

A desigualdade entre os casais – de beleza, idade, formação – só endossa o flagrante amoroso. “O objeto amado é sempre uma invenção, a máxima desprogramação do real, e, nesse mesmo instante, devo aceitar que os apaixonados possuam outra visão, uma visão misteriosa e subjetiva”, escreve Eltit. Nunca enxergaremos o motivo pelo qual se escolhem, mas, posando ou não de mãos dadas, alcançamos o acordo dos seus corpos de irem em direção ao encontro, ao convívio. Uma espécie de magia.

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Diamela Eltit organiza a escrita de O infarto da alma a partir de uma variedade de gêneros e vozes. São fragmentos poéticos combinados com o relato de sua visita e alguns pequenos ensaios. Em um deles, a escritora chilena aborda o passado da instituição de Putaendo, originalmente criada para receber os enfermos da tuberculose. Também nessa chave (contágio, confinamento), algum diálogo por oposição se estabelece com os nossos tempos. Eltit remonta a estreita relação entre a tuberculose – ou têbê, para os que têm alguma infeliz intimidade com a doença, como eu – e a estética romântica. A degradação observável no corpo, a tosse agônica, a febre, os jorros de sangue: uma receita simbólica de associações entre amor e morte.

Ao falar em “um corpo cujas trevas são seus próprios pulmões, transformados em miséria”, o texto parece sussurrar algo do drama dos nossos dias, ainda que descreva uma doença distinta. Aquela nos remetia à matéria; a destes dias remete-nos ao ar. No caso do coronavírus, não temos como escapar do estarrecimento científico no contexto da hiperinformação – a face objetiva e cruel do tipo de conhecimento ao qual somos devotos por nos garantir longevidade e conforto. Não há condição de metáforas ante uma imagem tão nítida do sufocamento, da ausência de despedidas e, no caso do Brasil, da negação ao luto. Uma espécie de afasia.

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Um dos trechos de O infarto da alma que mais me comove é o que, na lateral do meu exemplar, está identificado como “casal da cicatriz”. Nessa passagem, um dos internos mostra para as visitantes a atadura sobre uma marca de cirurgia na base da barriga afirmando se tratar de úlceras. Sua companheira aprecia a cena e logo exibe o corte que possui na altura do umbigo decretando sua esterilidade; faz isso enquanto fala dos filhos que só existem em suas alucinações. “Perdidos em devaneios distintos, consumidos num delírio diverso, permanecem sentados no banco, aferrados pela passagem de uma faca no estômago que os faz existir um para o outro”, escreve Eltit. As fotografias de Paz não são identificadas com legendas, assim, não conseguimos traçar correspondência entre os relatos e os retratados.

Gosto de imaginar que, tal qual o par citado, todos os demais casais fotografados, assim como os confinados durante a pandemia, estão ligados por uma cicatriz. Com tantas disparidades observáveis, penso que o magnetismo entre dois indivíduos se dá por meio de uma mácula comum. Não são idênticas, apenas se atraem pela familiaridade. Para os ditos lúcidos, a conversa ininterrupta entre essas danificações, em pleno isolamento, pode ser insuportável, enlouquecedora. Afinal, o que é o casamento senão um pacto de sentimento e ferida? Uma espécie de aventura & purgação & cura.

GIANNI GIANNI, jornalista, escritora e arteterapeuta em formação.

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