Quando,em meados de 2017, tive a honra e a alegria de escrever a orelha do livro qvasi: segundo caderno, de Edimilson de Almeida Pereira, seu primeiro livro de poemas a sair por uma das grandes editoras nacionais, a 34, eu a terminei com as seguintes palavras, que faço questão de repetir hoje. Ali eu dizia que Edimilson “é uma das vozes mais importantes da poesia brasileira, há tempos. Ainda que sem alarde, nos últimos 30 anos ele vem fincando a cada linha um rasgo que não podemos limpar facilmente; porque cria uma ferida de linguagem, paradoxalmente muito salutar”.
qvasi, como tantos dos seus trabalhos, era uma obra múltipla, longa, poderosa, que poderia ser lida fora do círculo que o conhecia, quase sempre restrito a poetas antenados no que fazem os outros poetas — um número pequeno, se considerarmos os inúmeros poetastros que escrevem sem ler. De lá para cá, percebo como aquela situação mudou: olhos outros passaram a ver o que já estava orgânico, maduro, fertilíssimo entre nós há tanto tempo, porém fora do mercado editorial do Rio de Janeiro e de São Paulo. Até então, faltara uma entrada na circulação nacional de poesia, que a 34 começou a proporcionar; faltava agora uma antologia que relançasse a poesia pregressa de um nome imenso nesse mercado amplo brasileiro. Em três anos, já não falta mais.
Nascido em Juiz de Fora (MG), em 1963, num bairro de trabalhadores, hoje chamado Nossa Senhora Aparecida, Edimilson de Almeida Pereira, segundo filho de Iraci de Almeida Pereira e Geraldo Mendes Pereira, traz na sua escrita a marca dessa infância num espaço semirrural da periferia juiz-forana, em convívio constante com outras famílias provindas de cidades pequenas, em geral para cumprirem trabalhos assalariados como operários, domésticas, pedreiros etc., no início da ditadura militar no Brasil. Em seu percurso, foi a primeira pessoa em toda a família a completar um curso universitário, em 1986, quando se licenciou em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Nos anos 1970, começou a trabalhar aos 10 anos de idade junto ao pai, que tocava a Lavanderia Guanabara, onde ficou até os 25, embora concomitantemente tivesse outros empregos menos regulares e estudasse na escola e, posteriormente, na universidade. Ele mesmo me contou que foi esse trabalho na lavanderia, cercado por membros da família, como a avó Cici (Ercília Maria da Silva) que o levou a pensar mais na sua própria condição social, nesse circuito contínuo de labuta por entradas dos fundos e elevadores de serviço, várias vezes barrado, revistado ou interrogado por figuras ligadas à autoridade, uma situação que permanece disseminada no país, como marca exposta do racismo.
poesia+ é a segunda obra de Edimilson de Almeida Pereira pela Editora 34, que dele havia lançado qvasi: segundo caderno
Em 1971, quando o poeta tinha oito anos, depois de um assalto à lavanderia comandada pelo pai, que deixou a casa numa situação econômica delicada, a família se mudou para Petrópolis (RJ), onde ficou por quase dois anos. Foi nesse período que Pereira ingressou no Grupo Escolar Rui Barbosa, e também que um deslizamento quase destruiu o lar onde então moravam de favor com parentes. Pouco tempo depois, por causa das crises de asma do irmão Eduardo, agravadas pelo clima de Petrópolis, acabou retornando junto com a família para Juiz de Fora, em 1972, e lá permaneceu. Em seu percurso escolar, Edimilson teve seu único ano de estudos fora das escolas públicas em 1982, num pré-vestibular, para melhorar suas chances de entrar na UFJF.
A entrada na universidade foi certamente um corte no percurso da família e também na sua vivência artística. Logo no primeiro ano de graduação, em 1983, conheceu poetas e escritores de sua geração, tais como Luiz Ruffato, Iacyr Anderson Freitas, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Júlio César Polidoro, José Santos Matos, Eustáquio Gorgone de Oliveira. Também passou a participar do varal de poesia do Grupo Abre Alas, marcado por um cruzamento constante de figuras da literatura, da música, das artes plásticas e do teatro. Por fim, integrou o corpo editorial da importante revista D’Lira. Podemos dizer que boa parte da sua poética vai emergir dessa fusão entre uma cultura popular oral vinda da infância (os contadores, tocadores, religiosos de bairro etc.) com o ambiente urbano e fervilhante de uma classe média artística e universitária que apontava para estéticas internacionais, um diálogo fértil e complexo que não se dá sem tensão em sua obra, ao fazer o convívio entre o mais profundamente local e o mais cosmopolita dos olhares.
Também em 1983, Pereira ingressou no Movimento Negro e conheceu Ifigênia Pimenta, figura fundamental nos embates e debates da época em Minas Gerais, assim como as obras de nomes hoje clássicos, tais como Abdias do Nascimento, Lélia González, Clóvis Moura, dentre outros. No mesmo ano, conheceu Núbia Pereira Gomes, na UFJF, com quem, a partir de 1987, passou a desenvolver sua pesquisa no Projeto Minas & Mineiros, que o levou por vários municípios e povoados do interior do estado, até o começo dos anos 2000. Com ela, organizou, em 1988, o primeiro Congresso sobre o Negro da UFJF e, juntos, lançaram Negras raízes mineiras: os Arturos, o primeiro de uma série de oito livros sobre as culturas populares e afrodescendentes em Minas Gerais e no Brasil como um todo.
Durante o curso de Letras, o poeta teve de substituir um colega que lecionava Literatura no Complexo Penitenciário de Linhares, um acontecimento, segundo me contou, tão marcante quanto as aulas dadas em escolas do interior, a convite do amigo Domingos Diniz, da Comissão Mineira de Folclore (Edimilson é membro desta Comissão desde 1989), por dar maior dimensão de vivências de grupos diversos. Depois de se formar, em 1986, Pereira ainda foi professor em escolas públicas e particulares de Juiz de Fora e também deu aulas em faculdades privadas, até se tornar, em 1992, professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na UFJF.
O resto é história, ou melhor dizendo, maturação contínua, feita de quebras, reescritas, ciclos de vida e livros, que vão ganhando pouco a pouco notoriedade na literatura e na academia. Aqui fica ao menos um rastro raso do seu percurso primeiro, como ponte para pensarmos os múltiplos cruzamentos que perduram no presente.
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Assim é que se organizam duas frentes centrais na obra de Edimilson de Almeida Pereira: por um lado, a produção poética vária e vasta, complexa e muitas vezes até hermética (a partir de eixos que ele mesmo designa como Orfe(x)u e Exunouveau), que funde cultura negra, práticas orais populares e experimentos da vanguarda europeia e da cultura letrada dos grandes centros urbanos, sem uma hierarquia estável, porém, ao mesmo tempo, sem qualquer pretensão de harmonização barroquizante ou mestiçagem idealizada.
Por outro, um pensamento crítico, também vasto, que se detém há quase três décadas sobre culturas populares afrodescendentes e pensamentos sobre arte em geral, mais especificamente sobre poesia, que se desdobra por 17 livros ensaísticos. Isso para não mencionar suas passagens rápidas pelo teatro, pela literatura infantil e infantojuvenil, que já conta com 13 obras, ou pelo trabalho com dois romances, ainda inéditos.
É apenas parte dessa complexidade que pôde emergir no ano passado, na antologia poesia +, organizada pelo próprio autor, que reúne poemas desde sua estreia em livro, com Dormundo (1985), até a segunda edição de Veludo azul (2018), mais 31 peças inéditas que praticamente fazem uma nova obra. O salto positivo, a bem dizer, excelente, das quase 400 páginas dessa reunião tem dois motivos.
Em primeiro lugar, a organização por “(in)certas relações de familiaridade temática”, em oito partes – um pouco aos moldes da clássica antologia de Drummond, que recusa a linearidade temporal como percurso único de uma obra e, assim, mostra as recorrências de forma e tema, as obsessões do poeta e também os fracassos frequentes da nossa cultura. (Penso que um poema genial como Cemitério marinho poderia ter sido escrito em praticamente qualquer fase de sua carreira, para ficarmos em apenas um exemplo de tensionamento histórico e contextual.) Como resultado, poesia + é também uma obra em si, e não mero aglomerado de poemas já feitos, e nisso se sustenta plenamente.
Em segundo lugar, temos aqui, afinal, um monumento para divulgar devidamente uma obra imensa e que, até então, publicava-se em editoras pequenas com dificuldades de distribuição (a Mazza Edições havia reunido quase toda a sua obra poética em sete volumes fundamentais, porém não tão fáceis de achar); uma obra imensa nos dois sentidos da palavra, porque já passava de 20 volumes de poesia.
O lado negativo, talvez, seja exatamente o tamanho da obra: uma antologia vasta como essa, para o leitor que desconhece sua trajetória e busca saber um pouco dos poemas, é quase uma não antologia e arrisca se tornar uma selva. E, nesse caso, mais precisamente, é preciso frisar que a poesia de Edimilson de Almeida Pereira não aceita leituras rápidas: sua escrita pode ser, num só gesto, múltipla e concisa, hiper-referencial e tão concreta, tão aferrada ao chão. Por isso, sua leitura demanda muito mais que o modelo tradicional das análises acadêmicas, demanda o tempo de um corpo imerso na história sua e alheia, ao mesmo tempo, exige paralaxes contínuas, desleituras em série.
Vejamos, como exemplo quase sacado ao léu, o poema Antiode marítima:
Vistos pelo mercado, Flor do Brasil & Boa Viagem são barcos levando tecido aguardente tabaco. A memória, porém, vê nesses nomes traição à linguagem. Entre escorbuto e fezes uma denúncia espuma para fugir aos peixes. Flor do Brasil & Boa Viagem são mais que barcos. Abri-los é saber quem sustenta suas carcaças: um senhor de rendas, um país vendado, uma religião que explora. Quando foram a pique e a ninguém interessavam suas farpas, por fim se revelou a traição à linguagem. Nada de flor, nenhuma alegria entre as algas. Já não há escravos, contratadores não há, nem contratos. O silêncio é que enerva, acusação sem sintaxe.
Essa peça em prosa, originalmente publicada no livro Iteques, de 2003, está agora na seção Ideias do mar, voltada não apenas para a importância do litoral num país como o Brasil, mas sobretudo para a construção de um mundo por meio do tráfico de escravos e daquilo que Gilroy chama de Atlântico Negro. A travessia do oceano, para os vários grupos de escravizados africanos, longe de ser uma viagem, é uma ruptura violenta de afetos, geografias, língua, mundos.
No poema imediatamente anterior, Orfeu (do livro O velho cose e macera, de 2002), lemos o certeiro verso “o mar escreve duras ideias”, que prenuncia a dor; já na antiode, para além do intertexto imediato com a Ode marítima de Álvaro de Campos (talvez o heterônimo mais conhecido de Fernando Pessoa), vemos a descrição de dois barcos com nomes reais. Os dois nomes constam como navios negreiros que de fato existiram, mencionados na obra Em costas negras, de Manolo Florentino, sendo que Flor do Brasil era uma empresa de tabaco, um nome que chegou a apelidar Fortaleza, enquanto Boa Viagem é também a praia mais conhecida do Recife. Os dois barcos com nomes alvissareiros são, contudo, o oposto do que vendem. Assim, o comércio de vidas e o comércio de bens se desvela como produção de morte, máquinas de corpos descartáveis que acabam por trair a própria linguagem que anunciam. Daí o desvelamento dos barcos quando vão a pique: nesse momento, tudo desaparece, os corpos escravizados são lançados ao mar, para aliviar o peso, como se meros sacos de pedras (ou ossos e carnes?), os contratos desaparecem para apagar sua possível ilegalidade. Daí que o silêncio seja o que mais enerva: é o desdobramento de um crime que não cessa enquanto não verbalizado plenamente.
Se fazemos esse poema dialogar com outro que vem pouco depois, como Oitavo dia (publicado no livro Sete selado, também de 2003), percebemos como a frase que o abre, ganha um sentido de continuidade crítica e poética:
Ninguém escreve às almas do Vau. O lugar existe nos corpos, leitores de morte flor e enigmas. O esquecimento veio amigar-se ao pó. Imenso deserto onde se espera o mar.
(...) E o mar reclamou sua orla em envelopes-ondas com peixes pardos enguias mexilhões hipocampos conchas contratos corais. Tudo em verbos. O gênesis revisto e aumentado.
É necessário pois cantar como história do mundo o mar como um verdadeiro cemitério que veio a construir o que chamamos de modernidade. Sem esse canto doloroso e impassível de harmonização de contradições não podemos enfrentar verdadeiramente o oitavo dia que se estende até o presente. Os corpos, como vemos todos os dias, os corpos negros continuam a ser despejados da barca, como pesos mortos.
O resultado é, portanto, uma antologia para leitores minuciosos, resistentes, que não se pretende pura divulgação e ampliação de público. Talvez, no fundo, o que parece ponto fraco seja a marca mesma do rigor de um trabalho que se constrói nas décadas, sem pressa, sem afãs de fama fácil. As últimas palavras da antologia talvez resumam bem esse todo: “O sol incide. A lua decide. Não pertencemos à horda bem-sucedida, erramos a porta com senha pessoal – não fizemos o caminho de Einselden nem pusemos, como em outro século, a mão sob o cutelo. Pode ser que nos explodam para ver o que há aqui dentro”. É produzindo suas explosões de linguagem que Edimilson de Almeida Pereira nos salva de sermos nós os explodidos.
GUILHERME GONTIJO FLORES, poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão : : capim e História de Joia, entre outros. Publicou traduções, entre outras, de Robert Burton, Propércio, Milton, Safo. É coeditor da revista-blog escamandro e membro da Pecora Loca.