Portfólio

Regina José Galindo

Estoy viva

TEXTO Julya Vasconcelos

01 de Julho de 2020

'Piedra', 2013

'Piedra', 2013

Foto JULIO PANTOJA E MARLENE RAMÍREZ-CANCIO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 235 | julho de 2020]

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¿Qué dirán de mi si un día aparezco muerta? Abrirán mis gavetas sacarán mis calzones al sol revisarán minuciosamente mi passado y dirán quizás que lo merezco.

(Regina José Galindo, no livro Telarañas)

Há muitas formas
de adentrar a obra da artista visual e poeta guatemalteca Regina José Galindo. Uma delas é através do tema da vulnerabilidade do corpo, da sua submissão e repressão, da sua decrepitude e da sua morte inevitável. Ao abordar insistentemente o assunto da morte, inclusive enquanto exercício de violência e manutenção do poder, para falarmos nos termos de uma necropolítica, Galindo aponta para diversas questões urgentes referentes especialmente à violência de gênero, aos regimes de exceção na América Latina, ao genocídio indígena e ao neocolonialismo multinacional.

Como bem diz o filósofo e cientista social Achille Mbembe, a necropolítica se refere à “destruição material dos corpos e populações humanos julgados como descartáveis e supérfluos”. No trecho do poema que abre esse texto, publicado no seu livro Telarañas, de 2017, Galindo pergunta: “Que dirão de mim se um dia apareço morta?”. E responde ao final: “Dirão talvez que eu mereço”. Tanto em sua obra poética quanto em sua obra performática, a artista expressa que um corpo de mulher machucado, violado ou morto é sempre um corpo tido como possível merecedor da violência que lhe é imputada.


El dolor en un pañuelo, 1999. Foto: Marvin Olivares/Divulgação

Sua obra, quando vista em totalidade, tem como centro irradiador seu próprio corpo e suas implicações: um corpo guatemalteco, feminino e de ascendência indígena. Supérfluo? E é a partir desse corpo, em permanente conflito, que se dão as suas performances, tornando-se ele mesmo território de uma prática política. Galindo é, nas palavras do crítico Loris Romano, citada em seu site: “uma artista que ultrapassa seus próprios limites, através de performances radicais, perturbadoras e eticamente desconfortáveis”.

Para entender a obra de Regina José Galindo, nascida em 1974 na Ciudad de Guatemala, é preciso levar em conta que ela nasce em meio a uma Guerra Civil que durou 36 anos (de 1960 a 1996) no país, o que levou os guatemaltecos a conviverem com a violência intensa, que perdura inclusive nos anos pós-guerra. Ela inicia a sua carreira nas artes visuais no final dos anos 1990 e, em 2001, é convidada pelo curador Harald Szeemann para participar 49ª Bienal de Veneza, com a obra El dolor en un pañuelo, na qual é amarrada em uma cama e são projetadas sobre seu corpo imagens de notícias de jornais sobre violações e abusos contra as mulheres guatemaltecas. Em 2005, dessa vez na 51ª Bienal de Veneza, recebe o Leão de Ouro de Melhor Artista Jovem por suas performances Quien puede borrar las huellas? e Himenoplastia. Depois dessas participações, a carreira de Galindo ganhou espaço em inúmeras exposições internacionais (incluindo mais duas bienais de Veneza, a 53ª e 54ª), como a Documenta 14 e as bienais de Cuenca, Xangai, Sidney, Valencia, La Habana, Praga e Mercosul, dentre outras importantes exposições. Além de ter seu trabalho integrado a instituições como MoMa, Guggenheim, Pompidou e Tate London.

 
Quién puede borrar las huellas, 2003. 
Fotos: Victor Pérez/Divulgação

Na primeira performance, que possivelmente é um dos trabalhos mais celebrados da artista, Galindo caminha da Corte de Constitucionalidad até o Palácio Nacional de Guatemala carregando uma bacia de sangue. De tempos em tempos, detém-se, coloca a bacia no chão, mergulha os pés no sangue e volta a caminhar, deixando um traçado de pegadas vermelhas ao longo do passeio público, em memória às vítimas do conflito armado na Guatemala, e em rechaço “à candidatura presidencial do ex-militar, genocida e golpista Efraín Ríos Montt”, nas palavras que descrevem o trabalho na sua homepage.

Cada pegada deixada por Galindo em seu percurso é um exercício de recuperação da memória dos mortos e invisibilizados, uma exposição pública do trauma coletivo, a presença na ausência. O psicanalista Dori Laub acredita que a arte talvez seja a única maneira de efetivar as representações do trauma, como uma espécie de antídoto para a aniquilação. Parece ser esta a intenção de Galindo.

 
Perra, 2005.
Fotos: Prometeogallery di Ida Pisani/Divulgação 

O segundo trabalho consiste numa operação cirúrgica à qual a artista se submete, registrada em fotografia e vídeo, na qual tem seu hímen reconstruído para recuperar a virgindade. O corpo feminino enquanto território de disputa, como bem observa a intelectual feminista Rita Segato, que tem como expressão máxima a violência sexual “não persegue um fim, não é para obter um serviço. A violência sexual é expressiva. A agressão ao corpo de uma mulher, sexual e fisicamente expressa uma dominação, uma soberania territorial, sobre um território-corpo emblemático”. Nesta e na performance Perra (2005), em que corta com uma pequena faca a palavra perra (puta) em sua própria coxa, Galindo desafia o conservadorismo misógino da Guatemala, imputando a si mesma a palavra que foi encontrada em corpos torturados de diversas mulheres assassinadas pelo país.

A performance foi realizada na Prometeo Gallery, na Itália, galeria que representa a artista na Europa. A violência sexual contra as mulheres na Guatemala começou intensamente durante o período dos conflitos armados e permaneceu viva após os acordos de paz. O uso generalizado e sistemático da tortura sexual e estupro por membros do Estado acabou por normalizar e institucionalizar esse tipo de violência, de modo que a subalternização das mulheres é naturalizada no país. A expressão máxima desse machismo se dá no feminicídio, que coloca o país no topo das estatísticas mundiais. As pesquisadoras Rosa Linda-Fregoso e Cynthia Bejarano estimam que mais de 3.500 mulheres e meninas experimentaram formas brutais de violência no período pós-conflito na Guatemala.

“A história é frequentemente escrita sobre o corpo das mulheres. Expressei isso em uma performance que realizei em 2013. Sou uma pedra, não sinto os golpes, a humilhação, os olhares lascivos, os corpos sobre o meu, o ódio. Sou uma pedra, em mim a história do mundo”, pontua Regina, em entrevista por e-mail. A performance a que ela se refere foi realizada em São Paulo, por ocasião do 8° Encontro Hemisférico do Centro de Estudos de Arte e Política. Nela, a artista permanece imóvel, coberta de carvão, enquanto voluntários e público urinam sobre seu corpo. Curioso pensar que esse trabalho viralizou entre as mensagens de WhatsApp de brasileiros conservadores como sendo prova da deturpação moral nas universidades brasileiras.

A investigação de Galindo sobre a morte aponta para muito além do corpo feminino, apesar de sempre orbitá-lo, tratando sobretudo de uma condição humana universal. Performances como Reconocimiento de un cuerpo (2008), Alud (2011), Piel de gallina (2012), Necromonas (2012) e ExhalaciónEstoy viva (2014), por exemplo, convidam o espectador a adentrar espaços frios, cinzas ou assépticos e apreciar, tocar, ou reconhecer o seu corpo, que mimetiza um corpo sem vida. A tentativa parece ser a de borrar as idiossincrasias do seu corpo e do contexto, e mostrar que a morte nos iguala a todos.


Piel de gallina, 2012. Foto: Gert Voor In't Holt/Divulgação 


Exhalación – Estoy viva, 2014Foto: Andrea Sartori/Divulgação

Em Piel de gallina, por exemplo, performance que veio a nomear também uma grande mostra da sua obra na Espanha em 2013, a ação gira em torno de um fenômeno muscular chamado musculus erector pili: uma resposta natural ao frio, ao medo, e a algumas emoções. Nela, Regina mantém-se dentro de uma câmara mortuária refrigerada, a qual o público deve abrir, sacar a bandeja, e observar o fenômeno na pele da artista.

Outras de suas ações, como Carguen com sus muertos (2018) e Suelo común (2013), banalizam a ideia do corpo morto, fazem com que eles nos atravessem sem que adentremos um espaço especial de contato com ele. Quando apresentou Reconocimiento de um cuerpo na Argentina, Galindo fez uma observação, em entrevista ao jornal El Clarín, que nos conecta com seu imaginário sobre a morte: “é uma ação muito simples, extremamente passiva. Na América Latina, o povo, ao ver um corpo coberto, sabe imediatamente o que tem que fazer. Possivelmente para a Argentina a obra tenha um tom 100% político, mas, se a realizamos na Guatemala, ela fala sobre o dia a dia. Que família guatemalteca já não teve que reconhecer corpos, se há 30 mortos por dia?”.


Carguen con sus muertos, 2018. Foto: Víctor Bautista/Divulgação

CORPO-TERRA
Declaradamente influenciada por Ana Mendieta (1948-1985), Galindo abre interlocução com a artista cubana em diversos momentos. Em nossa entrevista, Galindo enumera Mendieta, a poeta argentina Alejandra Pizarnik, “os artistas dos 1970 e os artistas que trabalham na América Latina a partir de posturas políticas” como os grandes influenciadores da sua poética. Podemos pontuar os body-traces, marca absoluta da obra de Mendieta, e as performances que evocam uma relação ritualística com o meio, em especial com a natureza. Não há também como observar as performances de Regina Galindo que problematizam a violência contra o corpo da mulher sem lembrar, de alguma forma, da Rape scene (1973) da artista cubana. Mendieta dizia que seu trabalho se configurava como earth-body art.

Em Galindo, há um flerte claro com essa ideia numa série de performances locadas em meio a paisagens amplas e fazendo uso de folhas, terra, pedras ou outros elementos, numa mescla simbiótica com a natureza, descambando no ritualístico, como no caso de Raíces (2015). Ou em outras ações que se distanciam do DNA de Mendieta, sem deixar de citá-lo, como quando leva para dentro de espaços fechados os elementos naturais e mistura o seu corpo a eles, como em Desierto (2015), que converte a Galeria Gabriela Mistral, no Chile, em um deserto de areia; e Nadie atraviessa la región sin ensuciarse (2015), apresentada no Art Center South Florida, em Miami. Também no caso de La sombra (2017) e mesmo da videoperformance Tierra (2013), nas quais o espaço natural divide a cena não apenas com o corpo da artista, mas também com grandes máquinas que buscam aniquilar este corpo.


Las escucharon gritar y no abrieron la puerta, 2017. Foto: Divulgação

Em Tierra, realizada no Les Moulins, na França, o corpo nu de Galindo permanece imóvel no centro de uma área verde cercada por árvores enquanto uma retroescavadeira abre valas no terreno, até que, ao seu corpo encurralado, restam apenas pouco metros quadrados de terra. A obra é fruto do contato de Regina com o depoimento perturbador sobre como o exército da Guatemala matava e enterrava corpos indígenas durante a ditadura:

“– Como matavam gente? – perguntou
o promotor.

Primeiro, ordenavam ao operador da máquina, ao oficial García, que cavasse um buraco. Em seguida, os caminhões cheios de gente estacionavam em frente ao Pino, e um por um, iam passando. Não disparavam contra eles. Muitas vezes os furavam com a baioneta. Feriam-nos o peito com as baionetas e os levavam à fossa. Quando estava cheia, deixavam cair a pá da retroescavadeira sobre os corpos”.

REENCENAÇÃO DO TRAUMA
As obras de Galindo costumam se amparar, muitas vezes, numa narrativa histórica objetiva, como no caso das já citadas Tierra, Quien puede borrar las huellas? e Perra. Podemos acrescentar aqui outros trabalhos, como a performance sonora Las escucharan gritar y no abrieron la puerta (2017), em que reúne 41 mulheres dentro de um pequeno quarto e grava seus gritos por nove minutos, referenciando a morte de 56 meninas que se encontravam ao cuidado do Estado (esta performance pode ser escutada no site da artista); ou quando contrata um homem para que a afogue em um barril de água como costumava-se fazer durante as torturas nas ditaduras militares, em Confesión, de 2007. Também a escultura em ferro e a performance Exhalación Estoy viva, apresentada pela primeira vez em uma individual de mesmo nome, realizada na Padiglione d’Arte Contemporanea, em Milão, em 2014.

Estoy viva, assim como Tierra, nasce de um dos episódios mais sangrentos da história da Guatemala, que foi o genocídio indígena durante o mandato um dos ex-ditadores do país, o militar Efrain Ríos Montt. Em 20 de maio de 2013, a Corte de Constitucionalidade da Guatemala anulou uma sentença condenatória de 80 anos de detenção impugnada a Ríos Montt, condenado alguns dias antes por genocídio e outros crimes de lesa humanidade. Durante o seu mandato (1982-1983), um dos mais sanguinários de todas as ditaduras da América Latina, “foi cometida a maioria dos massacres contra a população civil desarmada. Cerca de 10.000 guatemaltecos, em sua maioria indígenas, foram executados extrajudicialmente e o número de refugiados chegou a 100.000. O Relatório de Esclarecimento Histórico da ONU eleva o número a 448 aldeias apagadas do mapa nos 17 meses de gestão riosmonttista”, segundo reportagem publicada no jornal El País. Ríos Montt morreu em 2018 sem que tenha sido condenado.


Desierto, 2015. Foto: Rodrigo Maulen/Divulgação


Tierra, 2013. Foto: Bertrand Huet/Divulgação

Galindo estava presente no tribunal durante o julgamento e na anulação da sentença. Conta, em vídeo da exposição Estoy viva, em 2014, que chorou ao ouvir a notícia da anulação. Diz que uma das vítimas se aproxima dela, consolando-a: “não chore, não há por que chorar, nós estamos vivas e isso é suficiente”. E completa, explicando o sentido da frase afirmativa diante de toda a sua poética sobre a morte: “Esta frase ficou gravada em mim. Entendi perfeitamente que as mulheres que estavam indo ao tribunal não buscavam vingança, elas queriam apenas dizer ao mundo a sua verdade e isso era suficiente para elas. Os indígenas mayas guatemaltecos têm uma forma tão sagrada de ver a vida, tão distinta do que estamos acostumados (...). Assim é que, basicamente, essa frase encerra essa esperança. Uma espécie de desejo de seguir adiante, e creio que se une perfeitamente ao meu trabalho. Quando falo da morte, creio que estou falando da vida, porque uma questão é o oposto da outra. Não pode haver morte se não há vida, não pode haver violência se não há paz”.


Testimonios - Estoy viva, 2014. Foto: David Pérez/Divulgação

JULYA VASCONCELOS, jornalista, curadora e mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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