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“Luz para você”, diz André Dahmer, quando terminamos nossa conversa numa tarde de maio, segundo mês de quarentena no Brasil. Ele estava na região serrana do Rio de Janeiro, com as filhas, os pais, a irmã, o cunhado e os sobrinhos, a milhares de quilômetros de distância do Recife, de onde esta entrevista foi realizada. Nosso propósito: conversar sobre o humor – ou a ausência e necessidade dele – na era da pandemia. O desenhista, poeta e artista plástico, como se define em seu perfil no Twitter, atende naquela rede social pelo perfil @malvados, uma alusão àquela que talvez seja a mais famosa – sarcástica, atual, mordaz – das suas séries de tirinhas. E seu sobrenome materno alemão (a pronúncia é “Dâmer”) casa com o Pereira português de origem paterna para criar um brasileiro mestiço, como, de resto, somos todos nós. E diariamente publica tiras em dois jornais de circulação nacional – O Globo e Folha de S.Paulo.
“Meus pais são muito velhos, a gente fechou tudo, não recebe comida de fora, tá tudo com responsabilidade. A gente quer sair vivo dessa, todo mundo”, resume. A despedida afetuosa, depois de quase uma hora de entrevista gravada de maneira artesanal, com áudio no viva-voz de um celular e o gravador ligado em outro, se dá quando cito Guimarães Rosa e sua máxima, em Grande sertão: veredas, de que o real não se apresenta na chegada, nem na saída, mas se dispõe no meio da travessia. “Que beleza”, responde o artista de 45 anos, dono de uma incrível capacidade de sintetizar as agruras de ser brasileiro nas últimas duas décadas.
Sobre suas travessias – das dificuldades de aprendizado na infância a Malvados e Quadrinhos dos anos 10, passando pela relevância do acaso, por suas reflexões sobre política e economia, e, em especial, sobre seu olhar para o que significa ser, estar e produzir durante uma hecatombe sanitária mundial – descortinou-se a conversa a seguir.
Tirinhas de André Dahmer. Imagens: Divulgação
CONTINENTE Nós estamos nos falando na terça, 5 de maio, quando uma grande amiga minha chora a morte do pai e não pode ir ao seu enterro. Sei que você também teve perdas de pessoas próximas por causa da Covid-19, pois sou sua seguidora no Twitter e acompanhei suas postagens. Então, pergunto: como está sua vida, André? Como tem sido essa experiência de estar vivo numa quarentena atravessada pelas questões da pandemia?
ANDRÉ DAHMER Já estou quase há quase 60 dias de quarentena. Eu tinha uma assistente trabalhando na loja que tenho, onde vendo meus desenhos, e essa pessoa tem mais idade. Então, falei para ela ficar em casa, assim como falei para a pessoa que cuida das minhas filhas quando eu vou trabalhar. É óbvio que continuo pagando as duas, nem busquei auxílio nenhum do governo, porque acho que outras pessoas vão precisar do dinheiro, inclusive. O que aconteceu comigo é que, nos últimos 15 dias, meu cunhado perdeu o melhor amigo dele de infância, aos 39 anos, e eu perdi meu ex-sogro, ou seja, minhas filhas ficaram sem o avô. É muito duro o que a gente passou. Vejo que, finalmente, agora é um momento em que as pessoas estão começando a perceber que essas mortes não são somente números, têm rosto e nome. Tenho a esperança de que, a partir de agora, comece a haver um processo de conscientização maior por parte dos negacionistas, das pessoas que não acreditam na gravidade do que a gente tem passado. Nosso problema é que não temos governo para enfrentar essa crise, que é das maiores que a humanidade enfrentou neste século.
CONTINENTE Talvez estejamos vivendo a maior crise sanitária das nossas vidas, e espero que nossas filhas, as suas e a minha, nunca passem por nada semelhante de novo. No entanto, no Brasil a sensação é como se estivéssemos numa nau completamente à deriva.
ANDRÉ DAHMER Eu tentei explicar isso para minha filha, que eu nunca passei por isso, que meu pai nunca passou por isso. Na verdade, a gente está protegendo as crianças. Logo que começaram os primeiros casos no Rio de Janeiro, a gente veio para o interior. Então eu estou em um sítio, em Friburgo, há quase 60 dias. Somos privilegiados por estar em um lugar onde tem muita grama, aberto, que é muito diferente da situação das pessoas mais pobres do Rio de Janeiro. Por exemplo, sempre penso nas pessoas em situação de rua, sabe? Aqueles dois reais que cada um dava que eram tão importantes para comer um pão, uma refeição, uma quentinha, e essas pessoas sumiram da rua também. Não vejo uma política ampla de socorro às pessoas, às camadas mais marginalizadas mesmo... Você tem 600 reais para os pobres, que não é nada, mil reais, que não é nada, mas essas pessoas em situação de rua, como é que estão vivendo? É assustador. Assustador.
CONTINENTE Qual a idade das suas filhas? Como elas estão elaborando a quarentena?
ANDRÉ DAHMER Elas não têm a exata noção da realidade, da gravidade. Elas sabem que a vida mudou, que as aulas foram suspensas, que eu não vou mais para o ateliê trabalhar, mas é uma situação muito difícil, viu? Fico pensando nas pessoas com crianças em apartamentos, sabe?
CONTINENTE É a minha realidade: estou em um apartamento cujas áreas comuns estão fechadas para uso. Aliás, no Recife, neste momento, o prefeito estuda, junto com o governador do estado, decretar maiores restrições à circulação.
ANDRÉ DAHMER É provável que o lockdown venha para os estados em que os governadores estão à frente disso, porque a gente não tem governo federal, né? Não tem. E como era importante ter nesse momento, à frente do país, um estadista de verdade. E a gente tem o contrário: uma pessoa muito despreparada, que não podemos chamar, nunca, de louco. Porque não, não é uma questão de loucura, e ele vai ser responsabilizado por tudo que fez, sem atestado de insanidade, porque não é louco.
CONTINENTE Deixa eu fazer uma pergunta que está na gênese da ideia de trazer você para a Continente: é possível fazer humor nos tempos de hoje? É possível extrair alguma coisa que entre na seara do riso, da comicidade? Você é criador de séries que as pessoas acompanham, como Os malvados e Quadrinhos dos anos 10, e quando eu disse que ia lhe entrevistar, alguns amigos me disseram “poxa, que massa, tudo que ele faz tem muito a ver com o que estamos vivendo”. É possível, então, fazer humor? Se sim, que humor é esse que engendra que tipo de reflexão?
ANDRÉ DAHMER Antes da pandemia, eu encontrei com Jaguar para falar na UFRJ. E aí, quando a gente estava no camarim, ele apertou minha mão e falou: “Parabéns, Dahmer, por estar jovem e fazer o seu trabalho durante uma ditadurazinha. É sempre bom ter uma ditadurazinha pra gente trabalhar melhor”. Me deu os parabéns, me disse que eu era uma pessoa de sorte, mas eu não acho isso, é claro que não queria isso para meu país. Em relação à pandemia, estou como todo mundo está: tem dias em que você acorda muito mal, tem dias que você acorda mais ou menos, mas a gente está privado de muita coisa. Filhos separados de pais, netos de avós, namorados de namoradas, namoradas de namoradas... Não é fácil. É preciso muita resiliência, agora, para manter a sanidade. Tenho feito muito exercício físico, todo dia de manhã eu ando, ou corro, mas é difícil segurar também. Acho que meu trabalho caminha junto com as coisas que acontecem. É da natureza da minha profissão, e é assim com o jornalismo também. Como eu faço jornal também, me sinto como jornalista. Mas é muito difícil. Botei o trabalho em segundo plano e tenho tentado zelar mais pelas minhas filhas e pelas pessoas que estão passando comigo pelo isolamento do que propriamente pela minha produção. Inclusive, acho que qualquer trabalho que não seja essencial nesse momento, como profissionais da saúde, bombeiros, policiais, garis, deveria ser colocado, sim, em segundo plano.
CONTINENTE Em nome da manutenção da nossa sanidade?
ANDRÉ DAHMER Sim. Acho que o trabalho deve ser colocado em segundo plano, assim como a economia. É óbvio, né? Quando a gente pensa em como está pesado aqui no Brasil. Imagina, se são 10 mil casos, 10 mil mortes, e com as subnotificações os especialistas dizem que, na verdade, esse número é 15 vezes maior; então a gente está passando por uma coisa muito séria.
CONTINENTE De proporções que talvez nunca tenhamos imaginado.
ANDRÉ DAHMER Nunca, nunca. A gente está passando por uma mistura de 1929, com a quebra da Bolsa, com 1918, com a pandemia de influenza. Isso é uma loucura. Não tenho medo só por agora, sabe? Acho que agora as pessoas têm que ficar em casa, fazendo o que a Organização Mundial de Saúde orienta, e não ouvindo os fanáticos que acham que esse é um vírus chinês, criado por chineses, essa loucura toda. A gente tem que prestar atenção e seguir do lado da ciência. As pessoas começaram a falar, agora, que o PIB vai recuar para 2014, então a gente ainda vai passar por muita coisa. E é uma pena que vá passar por isso de uma forma tão precária. Porque havia várias opções. Outros 13 candidatos que eram mais preparados do que esse.
CONTINENTE Entendo quando você diz que é difícil pensar em criar agora. Mas, se olharmos sua produção de alguns anos para cá, várias tirinhas poderiam ser trazidas para o presente. Você falou dos negacionistas em tiras como uma publicada no Twitter no dia 22 de setembro de 2016, já depois do golpe contra Dilma Rousseff, em que você postou: “Não há nada acontecendo”. Na tirinha, um avião passa com uma faixa escrita com essa frase; um homem lê no jornal “Tudo normal”; na fachada dos prédios, há cartazes em que está escrito “Tudo está bem” e “Tudo muito normal”. Sabemos que existe uma parcela da população, em especial os aficionados pelo atual presidente da República, que acha que “está tudo bem”, que o vírus foi fabricado pela China e que os hospitais estão vazios. É como se a negação da história tivesse virado rotina no Brasil.
ANDRÉ DAHMER Isso mesmo. E é difícil de compreender. Porque é um nível de fanatismo cego, que chega a um ponto em que é preciso parar para entender por que foi construído assim. Porque a lógica do que estamos vivendo agora, se é que podemos chamar isso de lógica, é muito complicada: uma mistura de fanatismo religioso com negação da ciência e raiva das artes. As pessoas têm raiva de intelectuais, de professores, de médicas. É uma situação muito difícil de entender. Como é que a gente chegou nesse buraco? Se você pegar aquele momento em 2013, em 2012, não consegue saber como tudo foi tão rápido. Na verdade, logo depois que o PSDB derreteu, junto com o Aécio naqueles escândalos de corrupção, as pessoas que seguravam essa bandeira foram para um lado mais radical do que o centro ou a centro-direita. Pensando melhor, o PSBD ainda era o último dique de contenção desse tipo de pensamento.
CONTINENTE Porque seria uma direita clássica, liberal e civilizatória, se é que podemos dizer assim.
ANDRÉ DAHMER Sim, claro. E, olha, é possível entender os liberais. Se você conhece um cara, senta num bar e ele diz “gosto do Estado mínimo, acho que o Estado não deve se meter além da saúde e da segurança”, está tudo bem, é um liberal que está jogando o jogo dentro da democracia, que aceita a ciência, que pergunta os seus valores e para quem você diz “nós estamos aqui, você acha isso, mas eu acho aquilo”. Agora, você participar de uma sandice como essa, com pessoas que estão acreditando que estão enchendo os caixões de pedras...
CONTINENTE Nem nas mais selvagens das distopias eu poderia achar que isso aconteceria no Brasil.
ANDRÉ DAHMER É, mas isso foi uma construção, não aconteceu de uma hora para outra. A gente sabe que existe uma máquina que envolve muito dinheiro, a máquina da contrainformação; a gente sabe o quanto os canais abertos, a TV e os jornais perderam a audiência e a credibilidade nos últimos anos; e a gente sabe que nada é como antigamente, quando você estava sentado, vendo televisão, passava uma notícia e você “ah, eles estão mentindo para a gente, isso é uma mentira”. Você falava isso para cinco pessoas em uma sala, e as pessoas debatiam sobre isso, o teu sobrinho falava sobre isso e dizia “não, não é mentira” e assim era. Agora não, dona Maria está sozinha em casa com o telefone na mão. Sacou?
CONTINENTE Ela vai receber aquilo mastigado pelo seu WhatsApp e não vai ter como, e talvez nem queira, contestar. E vai repassar, claro.
ANDRÉ DAHMER Existia uma hipérbole da mentira, que era possível você perceber, mas agora essas pessoas não têm como se defender. Elas tomam como verdade o que chega por uma tecnologia popularmente nova, para a qual não existe controle. E é uma tecnologia direcionada a uma pessoa só. Não são cinco pessoas para abrir um link de notícia, sabe? E a verdade é que as pessoas estão juntas dentro de currais ideológicos, onde entra todo tipo de mentira, por mais absurda que seja. A gente viu isso nas eleições com a mamadeira de piroca, por exemplo.
CONTINENTE Tem outra questão que queria colocar para você, que é uma frase de uma tirinha sua recente, de abril deste ano: “Um país bom para um chargista trabalhar é um país ruim para vocês viverem”.
ANDRÉ DAHMER E essa tira faz um paralelo com o “parabéns” que o Jaguar me deu, né? O “parabéns”... Claro que não é isso que a gente quer. Na verdade, me chamam muito de pessimista, mas eu não sou pessimista; tenho muita esperança no Brasil e principalmente no povo brasileiro, só que a gente precisa ocupar os espaços de educação e debate. Você lembra como os sindicatos trabalhistas eram fortes nos anos 1980? Como a política era discutida entre os pobres, entre o proletariado? Esses espaços foram se perdendo, mesmo depois que o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder, incluiu as classes C e D e fez aquele empurrão para classe média, o que nunca tinha sido visto. Isso não tem paralelo.
CONTINENTE Aquilo mudou a topografia humana das universidades. Antes, havia pouquíssimas pessoas negras nas salas de aula. Hoje, encontramos uma paisagem humana diferente e diversificada, que reflete o Brasil onde a gente vive.
ANDRÉ DAHMER Sim, mas o interessante é que toda essa revolução de consumo para os mais pobres, de que eu estava falando, não teve como resultado a conscientização de classe ou uma maior consciência política. Os anos Lula foram os anos em que mais se investiu em educação, eu acho, em faculdades, em programas de incentivos para abertura de cursos técnicos... Mas hoje avalio que esse passar dos 16 anos não fortaleceu o diálogo de base, que é onde nasce a conscientização política de base. O avanço das igrejas neopentencostais entra nesse buraco, nesse hiato. Quando os sindicatos começam a fechar, a ficar esquecidos, alguns ligados e limitados ao poder, você deixa uma janela aberta para esse tipo de crendice. E aí tem o avanço, esse levante, das igrejas neopentencostais, com um discurso muito conservador.
CONTINENTE E agora temos um presidente que defende o Estado mínimo na economia, mas conservador nos costumes, e que quer mandar no corpo das pessoas.
ANDRÉ DAHMER Ele não é conservador, é autoritário. Pois, nos costumes, uma coisa é você achar que o modelo de família é esse aqui, mas que o outro pode viver e fazer o que ele quiser. Só que não é isso que acontece com ele, né?
CONTINENTE No seu perfil no Twitter, tem uma frase usada para definir você: “A arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados”, de Witold Gombrowicz (1904-1969). A pergunta clássica: quando você era criança, o que queria ser quando crescesse? O que sonhava em fazer? Quais foram os caminhos que desembocaram em você ser desenhista, poeta e artista plástico?
ANDRÉ DAHMER Fui um garoto fora do padrão para a escola. Dei muito trabalho. Repeti dois anos antes da quarta série. Na época, me levaram para a logopedia e para o psicólogo. Eu era muito agitado, chegaram a dizer que eu tinha um déficit de atenção tão grande, que jamais chegaria à faculdade.
CONTINENTE Isso foi onde? Você nasceu no Rio mesmo?
ANDRÉ DAHMER Sou nascido e criado em Botafogo, e vou morrer em Botafogo, não sairei de lá, isso eu sei, muito embora o Rio de Janeiro tenha muitos “Rios de Janeiro” dentro dele. E sério, acho que, se houvesse remédio na época, eu teria tomado. Qualquer criança que gira e corre eles dão remédio, mas sempre foi natural que as crianças gritassem e corressem. Não consigo entender como é que isso virou um problema e caso de remédio, em algum momento. Bem, todo mundo nasce desenhando. O desenho é nato, que nem a dança e a música. Se você botar uma música, as crianças vão dançar... A gente tem é que pensar em que momento os adultos, principalmente os homens, pararam de dançar. Porque parar de desenhar todos nós paramos, quando chegamos no Ensino Fundamental, ali no que era quarta e quinta série, hoje quinto ano. Me parece que, então, o desenho passa a ser visto como uma coisa desnecessária e que a matemática, o português, o inglês e a ciência são o que importa, quando, na verdade, o desenho traz muita coisa importante. Eu falo em desenho e faço uma analogia com o xadrez porque acho, sinceramente, que isso poderia ser ensinado na escola.
CONTINENTE Por quê?
ANDRÉ DAHMER Porque o xadrez comporta fundamentos da matemática para mais de duas dezenas: PA, PG, lugar geométrico, a sequência da probabilidade. Enfim, é uma aula boa de matemática, e eu sempre gostei de matemática, mas a maioria das pessoas odeia. Acho que é uma questão curricular também, porque as artes não são ensinadas. Por que a música não é ensinada como matéria? Devia ser ensinada, como a matemática, como cadeira obrigatória até a faculdade, assim como a dança, o teatro... Dá para fazer outro mundo. Agora, com tudo que estamos vivendo, parece difícil, mas acho que é fácil.
CONTINENTE Voltando: o que aconteceu depois que você entrou no nosso ginásio, o atual Ensino Fundamental II?
ANDRÉ DAHMER Bom, eu continuei desenhando. Em algum momento, meus pais me colocaram numa escola de arte com uma professora incrível, Maria Teresa Vieira, e, nesse momento, eu parei de dar trabalho. Eu tinha mais ou menos 12, 13 anos quando entrei para essa escola de arte. Antes me botaram para fazer esporte, eu fiz judô e outras coisas, mas foi depois que entrei para essa escola que melhorei no sentido de passar de ano. Fui um dos melhores alunos da minha sala de Física e de Matemática, colavam de mim até, mas foi através das artes que consegui essa calma. A arte me acompanha até hoje, muito no sentido de busca de conforto, de calma.
CONTINENTE Quando você chegou ao Ensino Médio, tinha ideia do que iria querer cursar na faculdade?
ANDRÉ DAHMER Então, ao contrário do que disse aquele professor da minha época de criança, eu prestei concurso para a Escola de Belas Artes da UFRJ, para Desenho Industrial e para Direito. E passei nos três. Talvez fosse advogado hoje, não sei se isso seria bom ou ruim. Comecei a frequentar Belas Artes, fiz dois períodos ou três, mas era muita regra, era muito rígido o ensino do desenho. Não consegui e acabei fazendo Desenho Industrial, que nunca exerci também. Sempre quis desistir da faculdade, na verdade, já para fazer meu trabalho, que eram outras coisas, quadrinhos também, mas minha mãe me dizia: “Poxa, agora que você finalmente chegou à faculdade, termina o curso”. Bem, “vou acalmar a velha”, pensei. Por que não ir até o fim, já que eu tinha bolsa? Então terminei.
CONTINENTE Você lembra a primeira tira que compôs? Tem isso como um marco?
ANDRÉ DAHMER Não sabia disso ao certo. Mas, uma vez, um pesquisador de quadrinhos me ligou para conversar, para uma pesquisa de doutorado, e ele disse que foi em maio de 2002 a primeira vez que publiquei uma tira na internet. Eu não sou bom com data, não dou muita importância para o que já passou.
CONTINENTE Seu site, andredahmer.com.br, tem gravuras, serigrafias, promoções.
ANDRÉ DAHMER Mas não tem tudo que eu publiquei. Eu não tenho isso de colocar tudo, sabe? Tenho um site, o malvados.com.br, que chegou a ter 2,5 mil tiras quando eu publicava um dia depois do outro. Mas aí comecei a não mais acessar muitos sites fora do Facebook e do Twitter e meio que deixei de lado. Hoje, acho até que meu trabalho está bem-documentado. Como faço duas tiras diárias para dois jornais, isso ajuda, e a Companhia das Letras lança um livro meu a cada dois anos, com novas tiras, e isso tudo é registrado na Biblioteca Nacional, e também pouco me importa, pois, depois que eu morrer, foda-se.
CONTINENTE Mas você não acha que é bom documentar, ainda mais em um país que tem sérias problemas com a maneira de lidar com a memória?
ANDRÉ DAHMER É, mas eu não tenho essa vaidade de ter o trabalho lembrado. Eu não consigo nem compreender isso, na verdade, porque depois da morte não faz muito sentido.
CONTINENTE Não pensa em uma ideia de legado? Não sei se a palavra é muito pesada, mas você não pensa se, daqui a 40, 50 anos, quando circular a notícia de que André Dahmer faleceu, sua obra estará devidamente difundida e preservada?
ANDRÉ DAHMER Nossa, não tenho nenhum desejo disso. Tenho desejo de viver com qualidade até o final, com minhas filhas, mas depois que morrer, morreu. O que vou fazer? Tenho uma preocupação mínima de guardar meu trabalho bem, aprendi isso há pouco tempo e comprei uma mapoteca. Então, agora, arquivo tudo mais ou menos bem, as coisas poderiam até estar melhor guardadas, mas nunca pensaria nisso de legado. É uma bobagem isso.
CONTINENTE Deixar perene é uma bobagem para você?
ANDRÉ DAHMER Para mim vai ser, porque vou estar morto.
CONTINENTE Duas questões mais técnicas. A primeira: como você desenha hoje? À mão ou no computador? Que material usa?
ANDRÉ DAHMER Sempre trabalhei em papel. Digitalizo para poder trabalhar o desenho e uso muito aquarela e nanquim, mas não tenho vontade de fazer o trabalho digital do começo ao fim. Não é nenhuma resistência, não tenho fobia alguma com tecnologia, é só porque gosto do papel mesmo. Sou de 1974, aprendi a desenhar no papel e gosto.
CONTINENTE Algum papel específico, tipo canson? E a aquarela?
ANDRÉ DAHMER Desenho em canson, às vezes até em um papel menor do que canson, mas hoje já não desenho mais em chamex. Passei a vida inteira usando chamex, aí um grande amigo me deu um esporro, “porra, você não pode fazer mais isso” (risos). E eu uso a ecoline, que é tipo uma aquarelinha que já vem misturada. Só artista conhece isso.
CONTINENTE A segunda questão: você produz tiras para dois grandes jornais, mas também mantém um site, que é uma outra plataforma para vender, por exemplo, camisas. Isso modifica o seu trabalho de alguma forma? Ter que pensar nas duas tiras diárias e ainda na produção para camiseta, canecas e afins?
ANDRÉ DAHMER Tem duas coisas aí. Uma, é que não tenho nada de empresário no meu sangue. Sou uma negação nisso. E, a outra, é que não quero ficar nessa de ganhar muito dinheiro a mais. Tenho uma assistente que passa nota fiscal, e aí entram as coisas que vendem, que são basicamente as camisas, porque as canecas já não existem mais, pois quebravam muito no envio. Quando o mundo reabrir, acho que não vou vender mais nada, na verdade (risos). E tem uma galeria no Rio, a Sílvia Cintra + Box 4, que me representa e vende meus desenhos. Sempre quis vender serigrafias e gravuras assinadas e numeradas, mas quando aconteceu essa coisa da pandemia eu suspendi a loja. Se você tentar comprar alguma coisa lá, vai aparecer um recado dizendo que estamos fechados. Mas só para você saber: eu me considero uma pessoa que vive bem com o que já ganha, muito mais do que qualquer profissional que eu conheça em volta de mim. Claro que você tem um Maurício de Sousa, um Ziraldo, mas sou uma das pessoas que vivem do seu trabalho; então, não é o caso também de você fazer uma indústria. Não condeno quem faz, mas nunca vou ter cinco caras colorindo minhas coisas enquanto um escreve um roteiro. Não sou assim. Gosto do que faço e me dá prazer o que faço sozinho; então, não vou morrer pobre, mas também não vou morrer rico. Olhando pelos dois lados, isso é bom.
CONTINENTE Você falou de Maurício de Sousa e Ziraldo, e de Jaguar também. Quem são suas referências, as pessoas que você mirava de alguma forma quando começou a desenhar?
ANDRÉ DAHMER Comecei a desenhar quadrinhos muito tarde, com 27 anos, então não tinha muita referência. Meu amigo Arnaldo Branco, que é um amigo de vida inteira, ele até me chamava de “o bom selvagem” (risos). Porque eu não li gibi.
CONTINENTE Nenhum gibi? Nem MAD?
ANDRÉ DAHMER Não. Fui um menino muito esquisito. Não joguei Atari, não joguei bola, não tenho time de futebol nem cartão de crédito.
CONTINENTE Mas tem algum cartunista que você admire?
ANDRÉ DAHMER Depois que eu comecei quadrinhos, o Leonardo, que foi cartunista do Extra e também era amigo do Arnaldo, ligou para mim e disse “você tem que conhecer os caras”. Então foi ele que me mostrou os franceses, Wolinski e Sempé, e aí fui conhecer o Fortuna, já sabia quem eram Jaguar e o Ziraldo, por causa do Menino Maluquinho, mas foi ele que mostrou que existia um lugar como o seu: de pessoas fazendo quadrinhos que não eram quadrinhos para crianças.
CONTINENTE Mesmo você sendo o “bom selvagem”, que só desenhou quadrinhos aos 27 anos, virou referência: suas séries Malvados e Quadrinhos dos anos 10 são cultuadas. Em que contexto da sua vida surgiu Malvados?
ANDRÉ DAHMER Minha vida é muito louca e terminei de fato fazendo muitas coisas. Malvados surgiu em 2002, logo naquele momento depois do atentado das Torres Gêmeas. Um marco histórico como esse que a gente está vivendo agora.
CONTINENTE Sim, algo que redefine a própria vida, não é?
ANDRÉ DAHMER Essa é uma discussão longa e eu estou vendo muitas pessoas dizendo que o mundo vai ser outro quando tudo isso terminar. Acho que não, viu? Não vai diminuir a ganância ou a exploração do trabalho, nada disso. Ainda não estamos prontos ou, talvez nunca estaremos prontos, para essa mudança estrutural mesmo, que é discutir o que é o trabalho, o que é consumo e por que precisa haver tanto acúmulo de riqueza na sociedade.
CONTINENTE Ainda mais em um país desigual como o nosso.
ANDRÉ DAHMER Sobre essa parte do consumo, me lembro de que, em 1980, quando abriu o primeiro shopping do Rio de Janeiro, meu pai estava lendo o jornal e falou “olha, André, vão abrir um prédio inteiro com uma loja do lado da outra, quem é que vai frequentar esse lugar?”. Ele riu, pois não fazia o menor sentido, na época, botar um monte de loja do lado de outra em um prédio. Era inconcebível, ainda mais com uma praça de alimentação com um monte de mesas juntas. Esse advento da vida do consumo pelo consumo, de você comprar para se sentir bem, ou de comprar para passar o tempo, é muito novo, ainda, e está longe do fim.
CONTINENTE Isso que você traz sobre o mundo pós-pandemia era algo que iria lhe perguntar, mas gostaria de voltar ao início de Malvados. Era 2002, os Estados Unidos haviam invadido o Afeganistão, mudando a geopolítica mundial e reforçando esse estereótipo hollywoodiano do árabe inimigo. Esse é o contexto de Malvados?
ANDRÉ DAHMER Sim, mas não por causa disso. Na verdade, a internet estava nascendo e a conexão era discada. Eu estava experimentando. Comecei a fazer umas tiras para a rede para aprender a programar em HTML. Veja só, eu queria aprender a HTML. Não existiam plataformas de publicação, não existia nem blog, nada disso, e eu tinha um amigo que era interessado também em programação e aí pensei “o que a gente pode botar no ar a primeira vez?”. E falei “vou fazer quadrinho, que é rápido de ler”. Todo meu trabalho que existe hoje foi por causa do acaso. Não teve muito planejamento. Não é como hoje, quando as pessoas de 20 anos dizem “ah, eu quero publicar em jornal”, e também nem existe mais isso. Mas eu fui para experimentar e aprender. Sempre fui autodidata, sofri muito para aprender através de terceiros, sabe? E o autodidata é o pior tipo de aprendiz. Ele tem que errar muito, tomar muito no cu para poder aprender as coisas.
CONTINENTE Mas também quando aprende...
ANDRÉ DAHMER Claro... Nossa, o erro é meu pai. Quando você erra, eu aprendi isso pra sempre. Isso está no cerne do que é o autodidata.
CONTINENTE Malvados surge, então, do acaso.
ANDRÉ DAHMER Queria aprender a programar e pronto. Então, sim, é por acaso, mas também por estar em uma família – minha mãe é do Serviço Social, minhas irmãs também, meu pai é de Humanas – em que sempre se conversou sobre política aos domingos. Inclusive, minhas irmãs me diziam: “Cala a boca que você tá falando merda, tem que estudar mais, você é artista”. Elas são todas doutoras, dirigem faculdades federais e estaduais na área delas... Eu é que sou o cara que não estudei, fui ser artista, a ovelha negra. Elas não sentem vergonha de mim, acho.
CONTINENTE Vou insistir: Malvados diz muito do nosso zeitgeist, sempre a capturar o espírito do nosso tempo; no começo, me lembrava o Garoto Enxaqueca. Com o passar do tempo, foi fazendo mais e mais sentido, como se o surreal, no Brasil, estivesse virando o real.
ANDRÉ DAHMER É, vou ter que fazer Quadrinhos dos anos 20, acho. Com tudo que está acontecendo. Às vezes olho para uma tira dessas e penso “nossa, isso já tem 10 anos”. Mas reli uma outro dia e ainda faz muito sentido.
CONTINENTE Demais! Tem uma tira dos Quadrinhos dos anos 10, postada por você em 26 de janeiro de 2018, que diz: “Olhar perdido, Mariano, aposto que estás sonhando com locais abertos de novo... Se o mundo está em rede, por que não podemos trabalhar em casa, Ângelo? Porque a tecnologia é do século XXI, mas a ideologia é do século XIX”. Nada mais coerente na era do home office na pandemia.
ANDRÉ DAHMER Por isso que disse sobre a pós-pandemia: o trabalho não vai se modernizar. Não vai ser mais presencial, pode até ser, mas mesmo que não seja presencial, os métodos de controle e de pressão sobre o trabalho serão outros. As pessoas vão trabalhar em casa, nos seus escritórios particulares, mas com câmeras de vigilância e com planilhas para preencher e com ponto para bater. Quer dizer, nada muda, na verdade.
CONTINENTE E a tecnologia será aperfeiçoada como ferramenta de controle e vigilância sobre os corpos.
ANDRÉ DAHMER Me lembro da alegria que senti no início dos anos 2000, quando estudava na PUC, só existia um computador no laboratório de internet e chamaram minha turma para visitar o espaço. Quando a gente chegou lá, o cara escreveu no Altavista, que era o buscador da época. Tudo demorava um pouco e fazia aquele barulho da conexão discada; então, ele falou: “Agora vou escrever aqui Machado de Assis”. Quando ele apertou enter, apareceram sete links sobre Machado de Assis, todos de faculdades federais. “Nossa, quer dizer que você pode pesquisar qualquer coisa que aparece o resultado?”, perguntei. Falei para ele: “Escreve aí Paulo Leminski”, pois gostava muito do Leminski, e não apareceu nada. “Talvez tenha no futuro alguma referência”, ele respondeu.
CONTINENTE Em termos históricos, duas décadas não são nada.
ANDRÉ DAHMER Sim, faz muito pouco tempo. Saí dessa aula, lembro, e fui para o centro acadêmico eufórico: “A gente vai ter todo tipo de informação na mão e as pessoas vão conhecer a verdade. Aí, através do diálogo, da conexão e da educação, vamos criar uma humanidade melhor”. E olha o que aconteceu na minha previsão: em vez da internet nos liberar através do conhecimento, foi o contrário e nós estamos vivendo em um labirinto de desinformação. Muito triste.
CONTINENTE Para encerrar, um pequeno exercício de futurologia: vamos elucubrar sobre como vai ser a vida no mundo pós-pandemia. Que horizonte é esse que se apresenta – um vislumbre soturno, de controle e de ainda mais trabalho?
ANDRÉ DAHMER Sim, sobre a questão econômica, é claro que a gente vai passar um pós-guerra mundial. Isso é óbvio: os miseráveis vão morrer de fome, os pobres vão ficar miseráveis, a classe média vai ficar pobre e, enfim, os ricos vão continuar ricos, como sempre foram. Agora, em relação à mudança de paradigma, de costume, eu não acredito, não. Porque falta muito ainda. E acredito que essa mudança não vá se dar através de uma catástrofe. Acho que a humanidade vai melhorar através da educação, do diálogo, da ciência, e isso demora muito. Eu vejo... eu sou ateu, né? E respeito muito quem tem religião. (E ser ateu é uma forma de religião; não acreditar em nada é uma crença também.) Mas falta muito para que os debates... Por exemplo, você tem a Segunda Guerra Mundial colada na Primeira Guerra, e as pessoas entenderam “nossa, uma guerra mundial é muito ruim, vamos tentar não fazer de novo”. Mas as pequenas guerras localizadas continuam a existir, até hoje e para sempre, porque existe um mercado ali.
Desde o início da quarentena, Dahmer se recolheu com a família em sítio na serra carioca. Imagem: Cristina Tepedino/Divulgação
CONTINENTE Sim, porque guerras geram, demandam e consomem dinheiro.
ANDRÉ DAHMER Sim, o cerne da questão, para mim – e aí podem me chamar de comunista depois que vocês publicarem a reportagem –, é o dinheiro. Do quanto isso pode prejudicar o andamento de um projeto de bem comum. Acredito que tem que mudar, sim. O dinheiro é uma grande abstração. É uma invenção do homem que gera um dano para a humanidade, que é a atribuição de valor. Quando você gera um papel e diz “isso aqui vale um quilo de feijão”, não, cara, no final das contas, o que vale é o feijão, que é o que a gente come. Você não come dinheiro. Então, para você chegar num nível de abstração desse de falar “isso aqui vale dois sacos de feijão” é porque a gente não entendeu nada. De como feijão é sagrado e de como comer é importante.
CONTINENTE Estamos vivendo um momento em que talvez prestemos mais atenção à importância dos alimentos. Todo dia, todo mundo em casa, assumindo o fazer comida, que muitas vezes era uma atividade terceirizada, isso faz com que tenhamos uma atenção maior a isso.
ANDRÉ DAHMER Hoje eu tenho visto as pessoas aprenderem a cozinhar e isso é uma coisa que aprendi com a minha mãe, desde cedo: como é gratificante cozinhar. Como é bom reunir pessoas em volta, cortar cebola e beber vinho, sabe? Isso é que é viver. Não é você garantir que vai comprar uma coisa e ser entregue na sua casa, uma coisa feita aos zilhões. A comida é sagrada. Fazer comida é sagrado. O lugar da comida é da celebração do fortalecimento dos laços. Gosto muito de cozinhar, não sei se cozinho muito bem, mas faço minha parte. Me garanto.
LUCIANA VERAS, jornalista, repórter especial da Continente.
*Colaborou o designer e ilustrador Janio Santos.=================================================
EXTRA: Galeria com cartoons assinados pelo entrevistado, André Dahmer.