Nomear e descrever o insólito estado de coisas vigente não é uma tarefa simples. A pandemia da Covid-19 trouxe consigo um vocabulário peculiar: taxa de isolamento, distanciamento social, confinamento, bloqueio total ou lockdown, expressões naturalizadas pelo cotidiano de notícias como (única) forma de amortizar os efeitos devastadores da epidemia. Questionamentos à parte quanto à nomenclatura mais adequada, o fato é que, depois de desfrutar de um período de abertura e “desbravuras” globais, a ideia de reclusão e fechamento, de fronteiras inclusive, volta a figurar de forma universal no imaginário da humanidade.
Isso num período marcado pela recessão e pela reaparição de fantasmas nacionalistas e autoritários, em cenários e governos delirantes. Não que políticas de controle e exceção já não estivessem postas – para muitos grupos inclusive, exceção é regra –, mas talvez de forma menos horizontal, para usar um termo da moda. É nesse contexto em que muros são erguidos e governos gozam dos desígnios dos indivíduos, que talvez se faça relevante refletir sobre dois filmes que tocam de maneira poética e perturbadora questões tristemente candentes.
O primeiro deles, O buraco (The hole, 1998), de Tsai Ming-Liang, cineasta malaio radicado em Taiwan, não por acaso tem figurado em listas da crítica especializada sobre o tema epidemia e confinamento. Ainda sob a tela escura dos créditos iniciais, vozes descrevem um cenário de epidemia em que não haverá mais coleta de lixo, nem abastecimento de água, e os cidadãos serão obrigados a abandonar suas casas para se abrigarem “como refugiados” em tendas e colégios disponibilizados pelo governo. Em certo sentido, um deslocamento invertido das políticas de contenção da Covid-19, que a todo momento reiteram o mantra “fique em casa”.
Além do comentário quase profético da crise de imigração que se avizinhava, a própria forma de apresentação do problema parece dialogar com o contexto atual, em que carros de som (invisíveis) vocalizam a preocupação dos entes públicos – ao menos de alguns deles – em conter o contágio e evitar o colapso do sistema de saúde. Também é premonitória a nota de reação do governo à Organização Mundial da Saúde (OMS), em que afirma que mesmo desconhecendo a origem e o nome da epidemia, ela deve passar rapidamente. Quase um ato de fé, como o “milagre da cloroquina”. Se é possível traçar paralelos e encontrar ressonâncias com os dias de hoje é porque o filme dedica-se a refletir sobre um mal do espírito do fim do milênio passado, e ainda atual.
A solidão e a incomunicabilidade são temas caros e sensíveis ao cinema de Tsai Ming-Liang. E em O buraco, eles logo são postos em cena, a partir da apresentação de seus personagens, que resistem à ordem de evacuação. Um jovem de cueca e camiseta – Hsiao Kang, personagem eterno de Lee Kang-Sheng, ator fetiche do diretor – dorme no sofá. Chove forte. Sempre chove. Ele é acordado pela campainha: o encanador veio checar a possibilidade de um vazamento no apartamento. Uma mulher entra correndo no prédio, traz nas mãos um guarda-chuva molhado e pacotes de papel higiênico. Segue pelos corredores, sacos de lixo voam pela sacada e, já em seu apartamento, dedica-se a enxugar e conter o vazamento que derrete paredes e alaga sua casa. Há água por todo canto, das estopas ensopadas à torneira aberta, que enche uma chaleira na pia. A água também é presença marcante em seu filme anterior, e igualmente genial, O rio (1997), e em O sabor da melancia (2006), em que os cidadãos de Taipei tentam vencer uma crise hídrica através do consumo da fruta, rica em água.
Em entrevista concedida a Leon Kacoff na ocasião do lançamento do filme em 1998, Tsai Ming-Liang relacionava a questão da água e a chuva incessante em seu cinema como uma resposta devastadora da natureza às agressões perpetradas pelo homem em seu projeto de ocupação do espaço urbano e de milagre econômico. Para ele, “uma catástrofe que caminha junto com a destruição da natureza e dos sentimentos das pessoas”. É nesse contexto que o seu cinema encontra na solidão dos personagens um sintoma dessa degeneração e, ao mesmo tempo, uma oportunidade de eles se mostrarem em sua verdade mais íntima. Eis um traço insinuante de sua filmografia, dedicada a investigar os estilhaços de afetos decorrentes do vazio espiritual que acomete as relações pessoais nas grandes cidades.
Talvez resida aí a força e a potência de O buraco. Duas vidas solitárias transformadas pela abertura de um buraco entre o piso e o teto de suas casas, um poro de vazão em suas retidões. Janela que se abre para o mundo; já que lá fora, o mundo é vazio e a cidade, fantasma.
O deserto humano se evidencia num mercado abandonado, onde o protagonista é o único vendedor que mantém o box aberto para uma clientela inexistente. A não ser pela presença de agentes sanitários de desinfecção, de um desencontro fortuito com a vizinha e das tentativas de interação com um gato. É nesse cenário, inclusive, que o caráter insólito e kafkiano da epidemia é revelado: os infectados rastejam em busca de lugares privados de luz, tal como uma barata. Esgotos, depósitos, embaixo da cama, tornam-se esconderijos propícios.
Curiosamente, esses são os únicos momentos externos às dependências do prédio. É na clausura dos apartamentos, nas refeições solitárias de macarrão instantâneo e na escuta dos noticiários da TV que a atmosfera do filme se constrói. Tudo dentro de uma carpintaria minimalista de Tsai Ming-Liang. Os planos abertos, estáticos e longos, que priorizam a perspectiva única da cena, constituem uma arquitetura rarefeita e realista de espaço e tempo narrativos. A quebra se dá nos momentos em que a protagonista (Yang Kuei Mei) encarna as canções de Grace Chang, ícone dos anos 1950, em números musicais repletos de luzes e cores que explodem na tela. Não deixa de ser interessante e atual ver elevadores, escadas e corredores abandonados de um prédio transformarem-se em espaços de sublimação num contexto de quarentena. Mistura de tempos distintos, heterocronias.
Cenas do filme O buraco (1998). Imagens: Reprodução
Para o diretor, as inserções evidenciam “o contraste entre o apocalipse do mundo real e a alegria artificial dos números musicais e suas coreografias ordinárias”. Há, portanto, para além do deleite estético de uma homenagem, um elemento de tensão. E é nessa ambivalência entre atração e repulsa, proximidade e distância– emocional e física –, leveza e gravidade, que o filme opera sua poética, ao unir duas almas fraturadas e separadas por um piso; ou seria um teto? Depende de onde se olha. Uma paisagem afetiva que enseja transformar a contiguidade de dois apartamentos em continuidade; comunicar partes incomunicantes.
Inicialmente a relação com o buraco é conflituosa, seja pela perda de privacidade, seja por transtornos decorrentes da questão sanitária. O homem do andar de cima alarga o buraco deixado pelo encanador numa espécie de ímpeto voyeurístico. A mulher do andar de baixo busca formas de lidar com as baratas e bloquear a perfuração, em meio às pilhas de estoque de papel higiênico. Há a compreensão de que este seria o filme menos sexual de Tsai Ming-Liang – a sexualidade é recorrente em seus filmes como uma espécie de zona fora do alcance repressor das tiranias. Porém, é possível pensar uma conotação sexual numa narrativa em que duas pessoas se relacionam a partir de um orifício. A insinuação é ainda mais sugestiva quando Kang derrama um copo de água – novamente a água, um fluido – para retirar a fita adesiva colada pela mulher no intuito de obstruir o buraco.
À violência masculina dessa ação, contudo, logo será sobreposta nova camada de leitura, mais generosa inclusive, que irá culminar num gesto fulgurante, capaz de redimensionar o ato de estender a mão a alguém. Uma gestualidade poética que a princípio parece contestar o fatalismo de Agamben, no texto Notas sobre os gestos, de que o cinema mudo encerraria “o círculo mágico no qual a humanidade procurou pela última vez evocar aquilo que lhe estava escapando das mãos para sempre”; leia-se: os gestos.
Parece inevitável pensar o cinema de Tsai Ming-Liang por uma dramaturgia dos gestos e por uma poética do indizível. Afora as canções, não há diálogos, o verbo é quase ausente, restrito aos noticiários da TV. Nada se sabe sobre o que levou os personagens ao estado em que se encontram. O que restam são corpos que vagam por escombros emocionais de uma cidade vazia. E, aqui, a gestualidade – coreográfica inclusive –, presa ao registro inerte de algo que desapareceu, como uma máscara mortuária em sua imobilidade, revive.
GESTOS
Mas o próprio Agamben, para fazer justiça ao seu pensamento, também parece interessado num efeito retórico. Ao reconhecer uma polaridade contraditória entre a anulação do gesto e uma força dinâmica (o fragmento de um gesto interrompido) que atravessa as imagens e os tempos, ele acaba por colocá-lo como figura central do cinema. “O elemento do cinema é o gesto e não a imagem”, ainda que incompleto ou reificado. E essa admissão traz como consequência uma dimensão ética e política, além de estética, para o cinema. É nesse sentido, e por um caminho tortuoso até, que a aproximação com o filme Possuídos, péssima tradução para Bug (2006), de William Friedkin, torna-se possível. Novamente estamos diante de uma narrativa de duas pessoas unidas na clausura, em que os gestos assumem protagonismo, ainda que para atestar sua anulação ou fragmentação. Tiques, ataxias, espasmos, reflexos, coceiras, corpos mutilados e violados, um inventário de movimentos involuntários e indesejados que parecem compor uma sinfonia delirante sobre paranoia e (des)controle – de corpos, sobretudo.
Um plano aéreo de aproximação de um motel à beira da estrada ao som de hélices de helicópteros que se confundem com as paletas de um ventilador. O que parece uma homenagem a Apocalypse now introduz a ideia de vigilância ou ameaça externa, associando-a a um elemento interno do quarto de motel. Isso porque, a despeito das reaparições desse voo como leitmotiv, e de poucas cenas de apresentação das personagens num bar, no supermercado ou na área externa do motel, é no confinamento do quarto que a narrativa se desenvolve. Agnes – Ashley Judd, em sua melhor atuação – é uma garçonete atormentada por um trauma do passado e pelos telefonemas silenciosos do ex-companheiro abusivo, recém-saído da prisão. A decupagem fragmentária, alternando primeiros planos em movimentos vacilantes, do seu rosto, do telefone que toca, do carrinho de supermercado, com planos de situação parece reconstituir o estado de nervos da personagem. Uma mulher solitária e emocionalmente vulnerável, cuja resiliência a impulsiona a tocar a vida e enfrentar os fantasmas do passado.
É nesse contexto que ela encontra Peter Evans – Michael Shannon numa encarnação da loucura –, uma companhia incomum e esteio mútuo para o desamparo. Ele não tem para onde ir. A princípio é apenas um cara estranho apresentado por uma amiga, que se atribui a faculdade de perceber coisas que não estão aparentes; seja na descoberta de elementos escondidos na tela de um quadro, ou em medidas de segurança que insinuam um traço paranoico. É munido desse “dom” que Peter acessa o trauma de Agnes, despertando um estado compassivo de cumplicidade, sexual inclusive.
A desconcertante cena da cópula – e aqui faz todo sentido o emprego da palavra – apresenta o elemento estranho que originalmente dá nome ao filme. Se, antes, a sugestão era sonora e nos ângulos recônditos de câmera, é depois do sexo que Peter é picado por um inseto pela primeira vez. Um afídeo, espécie de pulgão, vaticina para a ainda descrente Agnes, que se esforça em enxergá-lo. O episódio, além de cingir a cumplicidade do casal, parece acionar uma espiral crescente e sem volta de incômodo que vai atingir níveis estratosféricos. Talvez seja o filme mais perturbador – e subestimado – de William Friedkin; o que não é pouco, em se tratando do diretor de O exorcista (1973) e, mais recentemente, Killer Joe - Matador de aluguel (2011).
À essa altura, já sabemos que Peter é um soldado que serviu na Guerra do Golfo – novamente o veterano de guerra com transtornos psíquicos, triste sintoma da cultura belicista dos EUA. Depois de um período hospitalizado, ele acredita ter sido submetido a experimentos laboratoriais pelo exército, o que justifica o comportamento persecutório. Tecnologia da informação, substâncias químicas, máquinas que velam o sono, instrumentos que constituiriam o aparato de manipulação tecnológica, econômica e midiática da população. É munido do discurso da biotecnologia que ele vai relacionar a infestação ou epidemia dos insetos e uma dor de dente aos mecanismos e experimentos de controle social a que fora submetido. Insolitamente, o filme – uma alegoria da paranoia americana da ameaça externa e do terrorismo pós 11 de Setembro – parece ecoar de forma retumbante num presente marcado pela epidemia e pela naturalização de políticas sociais de controle. Sobretudo se considerarmos que os instrumentos de vigilância atingiram eficácia e sofisticação nunca antes experimentadas.
Se ainda não contamos com microchips localizadores intradérmicos ou subcutâneos, como o personagem faz crer, a pandemia tem revelado dispositivos eficazes de controle social. Desde aplicativos de celulares – capazes de oferecer localização, reconhecimento facial e alarmes para o cruzamento de fronteiras reais e imaginárias – até os drones, que desempenham ações sanitárias de distribuição de remédios e fiscalização. É interessante pensar que as tomadas aéreas que insinuavam a vigilância por helicópteros, hoje poderiam facilmente remeter às suas versões menores e não tripuladas, numa época em que drones tornaram-se armas letais capazes de fiscalizar fronteiras e abater inimigos na geopolítica mundial.
Nada disso, todavia, é aqui exposto no sentido de promover o relaxamento das políticas de distanciamento social, ou mesmo o descredenciamento da ciência. Pelo contrário, é mais um alerta diante das incertezas de um mundo em pandemia, que assiste atônito ao recrudescimento de discursos delirantes de arroubos autoritários. Uma tentativa de vislumbrar um horizonte de expectativa menos nebuloso, em que o discurso científico não é desconsiderado, tampouco se presta a fins totalitários.
Possuídos, Bug (2006), de William Friedkin, alerta para o caráter contagioso da paranoia. Imagens: Reprodução
Em alguma medida, e extemporaneamente, Bug consegue encarnar, de maneira inquietante, o desconforto e um dilema reverso do cenário pandêmico. No filme, o confronto entre ciência e delírio se dá no campo da visibilidade; entre aqueles capazes de enxergar o que não está aparente (os insetos), e os que evocam a sua invisibilidade e a ciência na tentativa de despertar o casal do pesadelo delirante. A presença do microscópio é sintomática. O slogan do filme, à época do lançamento, alertava para o caráter contagioso da paranoia. Isso porque, sob o risco da solidão, Agnes contamina-se na cumplicidade do devaneio conspiratório de Peter – a condição cruel de uma personagem fadada a ser violentada ao lado dos homens é um ponto crítico do filme.
Fazendo um paralelo, hoje também vivenciamos um conflito de visibilidade, porém de modo inverso, em que a ciência e a razão tentam nos convencer do risco iminente de uma ameaça invisível. Ameaça que nos leva a adotar medidas restritivas e procedimentos rigorosos e obsessivos de higiene e proteção, tal como os alucinados do filme. É trágico o reconhecimento com a cena em que uma simples entrega de pizza desencadeia todo um protocolo de segurança, num quarto transfigurado pelo isolamento com papel alumínio e luzes azuis. Por outro lado, aqueles que não veem a ameaça ou que a subestimam, seja porque a negam ou porque adotam o “corajoso” discurso do enfrentamento, aglomeram-se em manifestações de ideias delirantes e aparentemente contagiosas.
No filme, quanto maior é o envolvimento e a cumplicidade com o delírio, mais drástico é o nível de lacerações, tiques e descontroles corpóreos causados pela praga dos insetos – invisíveis aos olhos do mundo, mas não daqueles destinados a vê-la. Assim como os corpos rastejantes e infectados de O buraco, os movimentos desgovernados de Peter e Agnes já não lhes pertencem. São corpos violados e mutilados pela violência, reféns de estereotipias, espasmos e reflexos. Corpos que perderam seus gestos. E buscarão libertar-se.
MARCELO COSTA, professor da Facom-UFBA e um dos coordenadores do grupo de pesquisa Arqueologia do Sensível.
Imagem: Reprodução