Modo diferente de se expor: exponho-me não ao desnudar o que vivi, mas ao imaginar outros tão distintos e distantes de mim. É o jogo perigoso a que ele se dispõe e expõe ao narrar dois percursos, talvez dois parênteses, em duas vidas: recortes de seis meses da vida de Leonel, dançarino contemporâneo, gay, mestiço, que vai de Curitiba a Utrecht em busca da realização como artista; e os mesmos seis meses de Stefan, corredor e professor de educação física, gay, que vai de Utrecht a Curitiba para fugir de um trauma. O investimento nesses protagonistas e no entorno que os envolve e também expele (a amizade de Stefan com o segurança haitiano Desimond; a de Leonel com a professora marroquina Fadilah, entre tantos encontros e memórias) exige exercitar pontos de vista, linguagens, visões de mundo muito distintas entre si – e, imagino, do próprio autor.
Ao contrapor discursos e olhares – em geral muito críveis – sem adotar explicitamente um ou outro, Vertigem do chão nos desloca constantemente e oferece lentes alternativas para o que passa no livro e fora dele. Evidente: não é novidade o que faz Tridapalli, mas tem gosto de diferente no cenário atual. Usar literatura, ficção, imaginação (e pesquisa, parece haver muita pesquisa na obra) para investigar e tentar sentir outros: corpos, espaços, tempos, modos de pensar, estar e ver o mundo. Fazer ficção e com ela oferecer perspectivas sobre a realidade, assumindo todos os riscos da eterna utopia de tentar colocar-se, mesmo que parcialmente, sob outras peles. Mas fosse essa a marca de Vertigem do chão e talvez eu não estivesse falando dele aqui.
2) Interessante notar que a multiplicidade da obra não se dá através de um mosaico de narradores. Surge numa costura delicada, discurso indireto livre, a voz condutora que se multifaceta orquestrando uma profusão de vozes. Em vez de um autor regendo vários narradores, uma espécie de narrador homem-banda ou DJ que vai de uma voz à outra ao sabor da narração.
Assim como os personagens estão em trânsito (de um país a outro, uma realidade a outra, nos mapas das cidades profundamente explorados no texto), transitamos nós por diversas consciências, às vezes com tal sutileza que podemos não perceber o fluir de uma voz a outra, de uma gramática pessoal a outra. Mas está lá, no “piazão” surgido numa frase, o emergir da fala curitibana.
E “uma arte não hierárquica, todos os membros atores e autores, (...) não ao virtuosismo técnico e sim às questões suscitadas e resolvidas no próprio corpo” evidencia o jargão das artes conceituais e performáticas. Discurso conceitual que pode fluir para “Tanto tempo maldizendo o pé pronado – anos fortalecendo o músculo vasto medial oblíquo para estabilizar a patela da região medial da coxa” e a objetividade da preparação física, ou para trechos que marcam o pensamento do conservadorismo e racismo holandês, ou o conflito da desenraizada professora muçulmana, ou a homofobia reinante entre machos alfa brasileiros. Talvez possa se dizer que Tridapalli transita por linguagens para nos oferecer o estranhamento do deslocamento que seus personagens experimentam não só entre lugares, mas entre euforia, medo, ansiedade e desencanto.
3) Não há só uma metáfora possível em Vertigem do chão. Deslocamento, sim, é uma delas. Pode-se dizer que o livro é uma transição. Passagem entre dois momentos dos protagonistas.
Mas há também o corpo. Físico e simbólico. Não à toa, os protagonistas vivem intensamente seus corpos na dança e na prática da corrida. Dualidade na relação com o corpo que já nos oferece duas leituras: Leonel reflete incessantemente, investiga “o prazer de entender o corpo na dança como a um só tempo objeto e sujeito”. O corpo de Leonel: subjetividade, espaço de improviso e descoberta. Já Stefan tem no corpo a máquina sempre em aperfeiçoamento. O corpo tem função: percorrer e chegar com eficiência, “se algo podia estragar o humor de Stefan durante uma corrida, era o sinal de GPS perdido. Caía por terra a exatidão das distâncias e com ela o pace”.
Corpo, porém, é metáfora ampla: fala de todos nós. Leonel está em um museu de Utrecht com Fadilah.
Discutem imigração, fechamento de fronteira, rechaço ao imigrante. Ela diz que “se o prefeito fosse mesmo tão iluminista, poderia, a rigor, perguntar quem disse que o mundo sempre teve fronteiras. Tão iluministas que eram os holandeses, por que não faziam valer o pensamento de Rousseau, que amaldiçoou o primeiro sujeito que pôs uma cerca em volta de um pedaço de terra”.
Fronteira: muro, parede, cerca. Fronteiras físicas e mentais. O corpo como fronteira é imagem que se reforça nessa leitura. Cada corpo vai revelando pequenas cercas, defesas, discretos não ultrapasse: Leonel e a vergonha da cicatriz provocada pelo pai homofóbico; Stefan e o pânico e a depressão; e os preconceitos – a mente faz parte do corpo, não está fora dele – que escapam personagem a personagem. O corpo que é cerca e afasta, igualmente nos aprisiona em pequenas ideias. Corpos como fronteiras, como cercados que nos impedem de sair na direção do outro, do estranho. Reconhecer meu corpo diferente do outro é fonte inesgotável de discriminação, injustiça e opressão (de brancos com negros, europeus com muçulmanos, migrantes de países desenvolvidos com migrantes de países periféricos, ricos com pobres) e de rechaços ao longo do livro. “O corpo – real, capaz de afetar outros corpos, perigoso.” Cerca viva.
4) “O holandês Stefan Bisschop e o brasileiro Leonel da Silva estão sentados no mesmo banco em frente ao chafariz de águas desmaiadas da Praça Santos Andrade, no centro de Curitiba. A distância entre eles não pode ser medida em centímetros. É de seis meses.” Entre tantas imagens e recursos técnicos que trazem potência narrativa e simbólica para Vertigem do chão, talvez o mais inquietante se anuncie nas linhas acima. É o início do livro e já sugere uma relação constante entre espaço e tempo. O tempo assume função de espaço no romance. O tempo é um lugar desejado ou desprezado.
Há um jogo de espelhos invertidos entre Leonel e Stefan. Quase uma troca de lugares. Se, nas primeiras linhas de uma espécie de prólogo-epílogo (narra o início de uma das jornadas e o fim de outra sem apontar qual é qual), lemos que os dois estão separados por seis meses – tempo como régua –; nos capítulos seguintes, eles passam a viver em sincronia cronológica: quando Stefan parte da Holanda para o Brasil, Leonel parte do Brasil para a Holanda. Quando Stefan chega no hostel em Curitiba, Leonel chega à casa que o abrigará em Utrecht. Concomitantemente, porém, em diferentes fusos e momentos. Mas o ponto central é: ao viajarem, não estão deixando um país, uma cidade. Querem é sair de um tempo: do presente e do passado onde se sentem estrangeiros. “O futuro era o único lugar possível para a fuga.” Embora a 10 mil quilômetros um do outro, dividem um espaço cuja matéria são os segundos, minutos, dias.
Essa estrutura de tempo compartilhado entre personagens em latitudes diferentes traz um desafio para a escrita de Tridapalli: narrar a simultaneidade. A solução do autor, mais do que dar conta do problema, cria um novo significante. Converte a estrutura em mais um modo de relacionar tempo e espaço. Vertigem do chão estrutura-se sobre um recurso que faz lembrar Senhorita Cora, de Cortázar. Mas, no romance, o recurso assume forma própria, torna-se poderoso significante que espelha a relação dos personagens e reforça o que é narrado. Se Leonel e Stefan habitam o mesmo local em tempos diferentes e o mesmo tempo em locais diferentes; e se experimentam coincidências em suas decisões, no nível da escrita do texto ocorre o mesmo: habitam a mesma frase em tempos diferentes.
Uma explicitação disso é o trecho em que Leonel, perdido em Utrecht, procura a casa onde se hospedará, e para onde Stefan mandou suas malas de táxi e vai correndo do aeroporto ao hostel em Curitiba: “Tirou a mochila e tocou as palmas das mãos no chão, depois cruzou-a nas costas. O mundo acontecia diante dos olhos de Leonel, o alienígena. Demorou-se ali, esquecido do frio agora sem neve, até as orelhas começaram a doer demais. O suor escorria, calor e frio, enjoo, barriga vazia e o coração acelerado. Da corrida, era claro. Um estranhamento completo de tudo, o que estava fazendo lá, que lugar era aquele, não via um rosto desde o aeroporto”. Veja: O suor escorria, calor e frio, enjoo, barriga vazia e o coração acelerado é uma frase-passagem ocupada simultaneamente pelos dois personagens, mas em tempos distintos em seus enredos. O que é fim, na cena de Leonel, é início, na de Stefan. Assim como Curitiba é o que fica para trás, para um, e o horizonte que se abre, para o outro. Em seus próprios tempos, ambos habitam o mesmo espaço da página, mesmas palavras, manchas de tinta. Estão no mesmo tempo da leitura, em latitudes diferentes.
Frases-passagem como essa estruturam o texto e potencializam significados. E convivem com outro recurso que reforça o projeto estético. Em vez de coabitar uma frase, às vezes Leonel e Stefan se fundem numa pessoa: a terceira do plural: “Uma voz do outro lado do interfone disse algo que Stefan não entendeu, Leonel tampouco. Alguém no mundo que não fossem carimbos, pedintes, fantasmas ou portas com sensores daria a eles a garantia de que existiam. Interpelados pela pergunta-ruído, fariam sair algum fio de voz, som minimamente articulado que desencadeasse a ação”.
O tempo é um dos grandes eixos articuladores do livro. Ambos os personagens estão em crise com a passagem dos anos, a paralisia da vida em um tempo. “Em breve chegariam aos trinta anos e a maioria dos manuais dizia: começariam a perder massa muscular e ganhar gordura. Os quarenta centímetros da panturrilha de Stefan se transformariam em quê? Os oitenta centímetros enxutos da circunferência abdominal de Leonel? Tantos anos de cuidado com o corpo para que o corpo os levasse aonde mesmo? Quem eram na ordem do dia, no estado das coisas, na hierarquia do mundo?” Desejam fugir do passado e ir para o futuro. Mas, se possível, sem avançar demais no tempo do calendário. Ir para o futuro sem envelhecer muito. Mudar de geografia para fugir de um tempo.
5) Ainda sobre o tempo: Não há como voltar para casa, lembrança que o livro nos coloca. Não há como sair e retornar para o mesmo lugar, pois o lugar também é o tempo em que lá se estava. O tempo é um mapa, sugere-nos Vertigem do chão. Curitiba e Utrecht não mudaram de latitude e longitude. O Marrocos de Fadilah e o Haiti de Desimond permanecem nos pontos do globo. Mas mudaram de tempo. Já não são os lugares abandonados, serão espaços por reinaugurar, se houver a tentativa (frustrada) do regresso.
6) E essa vertigem, a Vertigem do chão? A epígrafe de Terry Pratchett sugere uma chave: “‘Eu não vou montar em um tapete mágico!’, ele sussurrou. ‘Tenho medo do chão’. ‘Você quer dizer de altura’, disse Conina [...] ‘Eu sei o que quero dizer! É o chão que nos mata!’”
Mas é impossível não fazer outras leituras. Leonel e Stefan, a dança e a corrida, recordam que nossa relação com o chão é de constante desequilíbrio. “Correr é alternar equilíbrio e desequilíbrio, um pé brevemente plantado lança o corpo para o voo enquanto o outro se joga para a frente em busca de sustentação” e “a dança lidava com a relação dialógica entre equilíbrio e desequilíbrio”. Dançar, correr, o simples caminhar: só existimos em desequilíbrio. Equilíbrio é estar parado, estável. Intervalo entre dois desequilíbrios? Nossa relação com o chão e o mundo seria a constante vertigem, eterno desequilíbrio. O único corpo em perfeito equilíbrio será o corpo morto, onde o movimento cessou, nada se desloca, o ar não vai e vem, o sangue não pulsa? Talvez a grande ilusão (vertigem) dos protagonistas, mesmo vivendo o desequilíbrio como prática diária, seja buscar um equilíbrio permanente.
Outro chão, outras vertigens: a inevitável relação com o chão a que não pertenço: a casa alheia, o país desconhecido, a calçada esburacada a 10 mil quilômetros do calçamento perfeito de Utrecht. Como pisar um chão que me deixa inseguro sem ser notado. Quando piso o solo desconhecido, é inevitável a pergunta: por que é tão fácil perceber que sou estrangeiro? Será o modo como me desloco em constante vertigem, aprendendo a pisar este chão?
Capa da obra lançada pela Editora Moinhos,
no final de 2019. Imagem: Reprodução
7) Uma última – mas não a última – proposição entre tempo, espaço, chão, vertigens: em um parque, Leonel dança um espetáculo solo, de olhos vendados. Não sabe se é visto. A pergunta: se ninguém viu, o espetáculo existiu? O livro nunca lido existe? O filme nunca visto? Há todo um clichê aí sobre a inevitável relação arte-público acontecer no outro. Há também uma discussão que lembra ideias conceitualistas colocadas nos anos 1960 por artistas como Lawrence Wiener e Sol LeWitt: em um resumo grosseiro, a obra de arte, para existir, bastaria ser pensada. A execução seria uma etapa dispensável. Nesse prisma, a performance de Leonel existiu. Se discordamos da noção conceitualista, a performance pode nunca ter havido.
Mas quero crer que essa discussão e a cena do livro trazem algo mais para pensar: parece que o livro subitamente se hiperpresentifica ao discutir a existência em relação. Embora lançado em 2019, Vertigem do chão pensa sobre 2020: nessa cena e nos encontros e rejeições entre seres sempre estrangeiros uns aos outros, sublinha o bicho relacional que é a espécie humana – para bem e para mal.
Escrevo este texto em pleno isolamento social. Populações inteiras de países como Itália e Espanha proibidas de sair de casa. Momento que decreta: mesmo quando não nos olhamos, falamos, reparamos e simplesmente nos aglomeramos em centros urbanos, estamos em relação. Sempre nos influenciamos. Não acabamos em nossos corpos. Nossos corpos, na obra de Tridapalli e na realidade, talvez sejam fronteiras maltraçadas e malprotegidas, facilmente invadidas por amor, medo, vírus. Ou talvez desejem ser invadidas pelo olhar, pensamento, curiosidade de um qualquer, como no caso de Leonel.
REGINALDO PUJOL FILHO, escritor gaúcho, autor de Não, não é bem isso e Só faltou o título.
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