No princípio era o caos e a urgência; vieram então as semanas de medo, mergulhando aos poucos num silêncio moribundo; reina agora a paz da cidade morta. (Samir Machado de Machado)
Um país sem governo, no meio de uma pandemia sem perspectiva de cura, com a população sendo dizimada rapidamente. Parte das pessoas, cientes da situação, buscam refúgio em local seguro, ou sucumbem à anarquia. A outra parte permanece em estado letárgico – despertando unicamente para atacar os que continuam sãos – capazes apenas de obedecer comandos vindos de um líder contrário às medidas de segurança e que se apropria de um discurso religioso. As ruas estão vazias, o perigo é constante, o sistema de saúde está colapsado, e muitos perderam familiares e amigos. E, antes de tudo virar caos, havia aqueles que subestimavam a crise, não reconhecendo seu potencial catastrófico.
Esse panorama não vem dos noticiários, mas, sim, do novo título da Companhia das Letras, Corpos secos. O romance distópico, publicado sob o selo da Alfaguara, vem sendo escrito desde julho de 2018, antes mesmo do resultado da última eleição presidencial brasileira. O lançamento, realizado no final de março deste ano, estava previsto de acordo com os prazos de publicação do livro. Porém, a história ficcional sobre uma pandemia acabou sendo atravessada pela realidade.
Capa do livro. Imagem: Divulgação
Funcionando quase como um déjà-vu literário, a edição, muito bem- amarrada por Luara França, é assinada por quatro autores brasileiros de experiências literárias distintas. Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natália Borges Polesso e Samir Machado de Machado se revezam na escrita dos capítulos para contar as histórias, respectivamente, dos cinco personagens principais: Murilo, uma criança obrigada a amadurecer rapidamente; Regina, esposa frustrada e vaidosa de um fazendeiro; os gêmeos Constância e Conrado, uma engenheira de alimentos e uma drag queen vegana, de personalidades diferentes e objetivo em comum; e Mateus, a única pessoa imune à doença. É notável o cuidado em trazer representatividade de gênero e sexualidade para as páginas. Em especial, é interessante, e até irônico, que a possível cura dependa de um personagem gay, isso num país onde, na vida real, só recentemente se liberou a doação de sangue por homossexuais.
Para cumprir o desafio de alinhar as ideias de quatro mentes em um único resultado final, foi necessário o desenvolvimento de uma metodologia de redação, de forma a respeitar a liberdade criativa dos escritores. O passo inicial foi elaborar um roteiro estabelecendo os trajetos dos personagens. Escritos individualmente, periodicamente os textos produzidos por cada autor eram compartilhados com os demais para todos lerem e adaptarem suas narrativas ao contexto geral – um método colaborativo semelhante ao processo criativo no teatro, onde um ator pode influenciar a performance do outro no palco. Por conta de cada escritor ficar responsável por quatro capítulos e pela escolha do modelo de sua narrativa – se na primeira ou terceira pessoa –, é possível perceber, pelas diferenças de estilo, a transição entre um personagem e outro.
Estratégia efetiva para enriquecer a história, devido à diversidade de pontos de vista presentes. Os protagonistas partem de cenários brasileiros diferentes, todos sob uma mesma incumbência: buscar refúgio em Florianópolis para sobreviver ao apocalipse zumbi. Mas esse termo, importado do folclore caribenho e já tão apropriado pela indústria literária e cinematográfica estrangeira, não é mencionado em nenhum momento na obra. Os mortos-vivos do livro recebem um nome mais nacional, corpos secos, em referência à lenda brasileira do Corpo-Seco, presente no imaginário, sobretudo, do Sul, Sudeste e do Centro-Oeste. De acordo com ela, houve um homem tão ruim em vida que, ao morrer, nem céu nem inferno o aceitaram; assim, erguido em putrefação do seu caixão, ele vive nos ermos e nas estradas, sugando a seiva de vida daqueles que ataca.
Porém, os corpos secos do livro divergem da personagem popular que os inspirou. Com uma abordagem mais científica, os sequinhos – como também são chamados – surgem por meio da contaminação das pessoas com o vírus Baculovirus anticarsia, causador da Síndrome Matheson-França. O nome da doença é um dos vários easter eggs encontrados na obra, pois “Matheson” faz menção a Richard Matheson, autor de Eu sou a lenda, livro de terror sci-fi sobre apocalipse vampiro utilizado como principal referência pelos autores de Corpos secos.
Por não ser datada, a história se aproxima mais da atualidade. Principalmente ao mencionar hábitos e símbolos presentes no Brasil de 2020, como a prática do crossfit, as correntes de WhatsApp, o cantor Roberto Carlos, a preocupação com padrões de beleza, mesmo diante do fim do mundo, e a percepção de que uma crise afeta de forma diferente ricos e pobres. Em certo nível, Corpos secos carrega, em suas 192 páginas, uma amostra da nossa vida contemporânea, dificultando uma leitura imparcial e sem envolvimento emocional. Indo além do entretenimento, a obra levanta reflexões sobre questões políticas, sociais e ambientais, já que o próprio aparecimento do vírus é atribuído ao uso descontrolado de agrotóxicos.
Ao contrário do que aparenta, não é uma narrativa sobre mortos-vivos. É muito mais sobre quem ficou e tem de encarar um mundo em desordem. A ficção termina por escancarar as verdades da natureza humana. Como um bom thriller, há cenas tensas e de ação, algumas clichês, como o momento clássico do carro demorar para dar partida em meio a uma perseguição ou quando acaba a munição num momento crucial. Porém, esses elementos não banalizam Corpos secos, não o tornam “mais do mesmo”. Seu diferencial é o pano de fundo brasileiro, criado para suprir a curiosidade de quem já assistiu a filmes americanos de apocalipse e sempre se perguntou: como seria no Brasil?
Algumas passagens podem ser vistas como grotescas e com elevado teor de violência. Mas existem também momentos de esperança, cooperação e superação. Por meio desses extremos, acompanhamos a evolução dos personagens. No final do livro, eles não são os mesmos. Todos mudam de alguma forma. Ainda é incerta a continuação da história para um segundo volume; porém, com menos de dois meses de lançamento, os direitos de adaptação para TV e cinema do livro já foram vendidos.
Personagens queridos são perdidos ao longo do caminho, e a obra deixa pontos em aberto. Uma possível justificativa para essas lacunas é a ausência de um narrador onipresente e onisciente. Dessa forma, toda informação passada ao leitor é proveniente dos conhecimentos prévios e relatos dos próprios personagens. Outra consideração é a falta de paisagens além do triângulo Sul, Sudeste e Centro-Oeste – levantando questionamentos sobre a incidência da síndrome no Nordeste e no Norte.
Quem procura uma leitura densa, recheada de lições de vida, talvez não supra as expectativas. Quem encarar a obra como um reflexo da nossa sociedade, decerto está num caminho mais coincidente com a proposta. Em Corpos secos lemos as histórias de pessoas normais tentando sobreviver e lidar com as perdas, sem idealizações, sem heróis. Não há receita de sucesso para o apocalipse. Para os leitores, é uma experiência inovadora ver quatro autores especulando o real através da literatura. Sem floreios e pretensões sociológicas, a publicação é uma forma de mergulhar numa realidade distante e ao mesmo tempo tão nossa.
TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.