Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo
(Evelyn Beatrice Hall, resumindo o pensamento de Voltaire na biografia The life of Voltaire)
Em março de 2003, soldados britânicos foram atacados pelo fogo amigo de um avião americano na Guerra do Iraque. Um dos sobreviventes afirmou que o piloto não reconheceu a identificação especial das forças de coalizão e nem uma bandeira da Grã-Bretanha em um dos veículos do comboio. Em junho de 2018, um adolescente foi morto no Complexo da Maré no Rio de Janeiro, mesmo usando uniforme escolar, durante uma operação policial. A bandeira da Inglaterra, o símbolo das forças de coalizão no Iraque e a logomarca do uniforme escolar da rede pública de ensino do Rio de janeiro não foram suficientes para conter o fogo amigo.
Há 70 mil anos, a revolução cognitiva fez com que nossa espécie conseguisse criar laços e grupos muito maiores e poderosos graças ao poder do mito e do símbolo. Cristãos de origens e línguas diferentes são capazes de dar a vida um pelo outro no campo de batalha, pelo simples fato de reconhecerem a cruz na armadura do soldado que deve ser salvo, e a estrela com lua crescente na bandeira do inimigo otomano.
Mitos e símbolos podem ser arquétipos universais, mas, em geral, são criados pelo homem. É sempre muito difícil dissolver um mito incrustado no inconsciente coletivo, no entanto, vivemos numa era muito especial no que se diz respeito à desmistificação dessas alegorias.
No dia 19 de abril de 2020, o Parque de Esculturas Francisco Brennand, localizado em frente ao Marco Zero do Recife, amanheceu pichado. O museu a céu aberto é um dos principais pontos turísticos da cidade e é visitado por pessoas de todo o mundo, mas é também frequentado por milhares de recifenses de todas as classes sociais e é um dos poucos locais da cidade onde se pode respirar ao mesmo tempo arte e natureza.
Nas últimas décadas, o Recife vem passando por uma triste rotina de apagamento cultural e histórico. Esse processo gerou movimentos fantásticos, como o ativismo em prol da preservação do prédio do Edifício Caiçara, ícone da arquitetura moderna dos anos 1930, na Avenida Boa Viagem e o grandioso movimento Ocupe Estelita, que inspirou o Brasil inteiro, gerando, por exemplo, esses versos na música do rapper Criolo: “E se não resistir e desocupar. Entregar tudo pra ele então, o que será?”, do disco Convoque seu Buda.
Francisco Brennand foi desenhista, pintor, tapeceiro, ilustrador e gravador, mas ficou conhecido internacionalmente por suas esculturas de cerâmica. A palavra mais importante na biografia de um artista, e que deve ser perseguida por todo pesquisador e crítico de sua obra, é a Motivação. E nesse quesito aqui, meus amigos, temos um artista invejável. Ele se isolou da sociedade em sua oficina, cercada pela floresta, e construiu um universo mítico que foi, e é, cenário para uma experiência arquetípica, ancestral, mitológica, sagrada e atemporal. Ir à Oficina de Brennand no ônibus da escola foi uma das experiências mais marcantes da minha infância e da maioria das crianças, independentemente de classe social. A motivação do artista sempre foi ressignificar os mitos ancestrais e criar esse universo mágico único e abri-lo ao público.
A obra de Brennand é radicalmente sincretista e pagã, e ele levou isso às últimas consequências, passou a assinar suas obras com o arco de Oxóssi, orixá protetor da floresta. O paganismo (tradição religiosa ancestral ligada às forças da natureza) e o sincretismo presentes em sua obra mais conhecida são um contraponto à religiosidade católica presente na sociedade mais tradicional de Pernambuco. O arco de Oxóssi é uma prestação de contas à elite que demonizou as religiões de matriz africana vinda de dentro da própria elite. É uma flecha na cara da hipocrisia.
Francisco vem de uma das famílias mais tradicionais do Recife, e certamente candomblé, paganismo e simbologia sexual mística não fazem parte dessa história. À sua maneira ele foi, sim, um revolucionário, e criou um dos mais impressionantes museus a céu aberto do mundo, que seria desdobrado décadas depois no Parque de Esculturas do Marco Zero.
É interessante lembrar que Francisco tem um primo que também fez uma obra faraônica na Várzea. Um pastiche de castelo europeu cheio de réplicas de obras de arte de gosto questionável e uma coleção de armas brancas enorme. O lado bom é que a instituição tem a maior coleção mundial do pintor holandês Frans Post. Mas, enquanto a homenagem à morte – presente nas espadas e armaduras dessa construção eurocêntrica – está intacta, a obra de Francisco em homenagem à natureza, à filosofia ancestral primitiva e mística, com uma estética modernista brasileira, foi atropelada pelos artistas que dizem fazer a revolução desse país sem rumo.
Por outro lado, é importante ressaltar que Brennand é, para muitos, a representação do patriarcado aristocrata, graças ao estigma que foi nascer numa das famílias mais tradicionais da cidade. É impossível não associar o artista à aristocracia, já que ele herdou do pai a fábrica de cerâmica desativada e, para muitos, representa o domínio cultural da elite sobre o povo.
Se a Coluna de cristal foi inaugurada num momento de comemoração aos 500 anos de Descobrimento do Brasil, que produziu uma ocupação exploradora e genocida, a obra de Brennand não necessariamente enaltece esse aspecto. Pelo contrário, o título da obra central, Coluna de cristal, com uma flor em seu topo, foi uma homenagem ao amigo Burle Marx, que descobriu nas florestas equatoriais uma flor e a nomeou flor de cristal.
Mas, um símbolo de vida e criação, arte botânica claramente ligada ao modernismo tropical, foi vista como um ícone fálico e, supostamente por conta disso, teria sofrido tentativa de censura por parte da esposa do então prefeito da cidade, à época da construção. O caso teve desdobramentos, transformando-se num folclore digno de filmes de faroeste, quando o jornalista Orismar Rodrigues fez uma matéria expondo a situação. Num ato digno de um coronel do século XIX, o então prefeito invadiu, armado, a redação do jornal em que o colunista trabalhava e o ameaçou de morte.
Como diz o ditado, “a maldade está na cabeça de cada um”, e se, de um lado, temos o puritanismo paranoico da tentativa de censura de uma elite intolerante, do outro, observamos a intransigência de um grupo radical que não sabe separar o sobrenome da obra, a persona do artista.
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Uma obra de arte deveria ser um símbolo de proteção suficiente por si só, impedindo qualquer tipo de ataque, por ser sagrada. O pixo nas esculturas do molhe anula a paisagem. Antes da arte, vem a vida, e a vida deveria ser mais importante que a arte. Numa cidade cercada por prédios revestidos de pastilhas brancas, que mais parecem grandes banheiros verticais, e farmácias surgindo a cada esquina em cima dos restos mortais de prédios históricos, ver um espaço dedicado à arte interagindo com a natureza, local de respiro visual de pessoas de todas as classes sociais, ser totalmente anulado pela pichação é um tiro no pé.
É cuspir para cima.
É fogo amigo.
Ação de pichadores no Pavilhão da Bienal, no Parque Ibirapuera (SP), na edição de 2008 da mostra de arte. Foto: Amilcar Packer/Divulgação
Na lei da rua, grafiteiro não atropela outro grafite; pichador não atropela outro pixo; grafiteiro não atropela pixo e pichador não atropela grafite. Quem faz isso vai ser cobrado. Vários movimentos identificam a pichação como arte urbana e essa separação entre grafite e pixo é questionável.
“O pixo é um terrorismo visual”, diz a filósofa Marcia Tiburi. À primeira vista, parecem apenas rabiscos para olhos destreinados, mas toda a manifestação artística feita com a palavra recebe o nome de literatura, então temos nos muros a literatura bárbara. Bárbaro significa pessoa não civilizada. Para os gregos, quem não era grego era um bárbaro. Quem picha deixa claro que não faz parte daquela estética grega de beleza da fachada branca. É um estrangeiro em sua própria cidade. Com outros códigos, dialetos e grafia. “Muro branco, cidade calada.” Diz a frase nas ruas.
O grafite, em sua gênese, ocupou esse espaço transgressor de denúncia política. Hoje é aceito e “domesticado” pela sociedade. A arte que surgiu no Brasil em meados dos anos 1960 para denunciar a ditadura militar é a mesma feita hoje para “afastar” os pichadores, pois, pichador não atropela grafite.
É a lei da rua.
Em 2008, pichadores invadiram a 28ª Bienal Internacional de São Paulo (que naquele ano foi chamada de Bienal do Vazio e deixou o espaço expositivo literalmente desocupado) e picharam o Pavilhão do Ibirapuera. Uma das artistas do movimento, Caroline Pivetta, foi presa por conta da ação e declarou: “A gente não queria estragar as obras deles [da Bienal], mesmo porque não tinha obra lá. A gente é que fez a obra”. Essa declaração do momento mais icônico da história da arte brasileira, no quesito pichação X arte tradicional, faz um resumo do meu pensamento: pichador não atropela obra de arte, pichação é arte revolucionária e, sim, o pichador quer que sua ação seja considerada arte.
Na edição seguinte da Bienal, a de 2010, intitulada Há sempre um copo de mar para um homem navegar, os pichadores tiveram um espaço reservado para intervenção. À época, um dos curadores da mostra, Moacir dos Anjos, em resposta à pergunta “Pixo, então, é arte?”, feita em entrevista dada à Folha de S.Paulo respondeu: “Nesse sentido que falei, sim. A questão é outra: Se o pixo é exposto numa bienal, permanece sendo arte? É com essa aparente contradição que teremos de lidar. Pois se o que faz o pixo ser arte é o fato de ele desconcertar os sentidos, o que acontece se o pixo é trazido para o ambiente controlado do chamado ‘campo’ da arte? Mantém a potência ou se torna ilustração de si mesmo?”.
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Essa dialética é a chave para se entender a questão. Pichar as esculturas de Brennand é trair o movimento. A arte está acima da persona do artista. Não é possível se revoltar com João Doria, quando ele manda pintar de cinza os pixos e grafites da cidade de São Paulo, num dia, e, no outro, atropelar e anular uma obra de arte pública frequentada por todas as classes sociais, que tem como motivação celebrar as forças ancestrais da natureza.
Antes que questionem meu lugar de fala, nos anos 1990, eu fui grafiteiro e vi o grafite nascer no Recife. Em 1996, vi todos os pichadores da cidade aparecem num curso de grafite promovido pela dupla Moacir Lago e Guga Baygon, da antiga Subgraf. Juntei-me à Rafa B, que hoje continua grafitando e é tatuador, e pintamos muitos muros pelo Recife e até em outras capitais do Nordeste.
Anos depois, em 2016, inaugurei uma exposição em São Paulo, na Galeria Oscar Cruz, chamada Textos bárbaros. Nela, mostrei pinturas, objetos e desenhos feitos a partir de uma profunda pesquisa sobre o universo do grafite e da pichação. No material de divulgação, publicamos textos como esses:
“Andy Warhol disse nos anos 1980 que: ‘A coisa mais bonita em Tóquio é o McDonald’s. A coisa mais bonita em Florença é o McDonald’s. Pequim e Moscou ainda não tem nada que seja bonito’”.
“Na minha opinião o que define civilização, no sentido de metrópole desenvolvida, visualmente falando, são as pichações dos muros. Uma cidade de muros brancos não tem nada que seja bonito. Não tem voz.”
Temos, então, um assunto bastante complexo e multifacetado, em que não existe uma verdade, e essa dialética abre nossas cabeças, independentemente de que lado do muro estamos. Se a classe dominante admira e compartilha imagens do artista ativista Banksy em Londres, tem que entender que pichar a porta do banco é, sim, arte revolucionária.
TFP (2016), objeto criado por Bruno Vilela a partir de pesquisa
sobre universo do grafite e da pichação.
Imagem: Bruno Vilela/Divulgação
Por outro lado, o pichador não deveria se indignar com momentos degradantes da história do Brasil – como, por exemplo, ver políticos fascistas quebrando a placa em homenagem a Marielle Franco –, ou a destruição do Sítio Histórico de Nimrud e de obras de arte ancestrais no Museu De Mosul – ambos no Iraque – pelos terroristas do Estado islâmico (ataques que foram considerados pela Unesco como crimes de guerra), e, ao mesmo tempo, destruir um espaço lúdico, dedicado à natureza e à contemplação, um respiro contra a opressão visual dessa recente arquitetura tosca da nossa cidade, devastada pela total falta de sensibilidade e cultura.
Estamos vivendo uma guerra cultural e cada lado mantém seus códigos e símbolos. Uma guerra da sensibilidade e da ciência contra a violência e a ignorância. Nosso símbolo de luta contra o obscurantismo não pode ser destruir obras de arte.
BRUNO VILELA, artista visual.
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necessariamente a opinião da revista Continente.