Conhecida por sua diversidade, é uma região que preserva elementos culturais e linguísticos que alimentam, de modo às vezes insuspeito, o restante do Brasil. Entre suas principais riquezas simbólicas está um patrimônio cultural complexo, carregado de nuances, seres míticos e histórias extraordinárias.
Histórias que carregam não apenas a origem do mundo, mas também os gestos da vida cotidiana. Não foi à toa que Claude Lévi-Strauss fez das cosmologias ameríndias, recolhidas por etnógrafos e viajantes entre tribos da Amazônia, a principal matéria para compor os quatro volumes da série Mitológicas (formada pelos livros Do mel às cinzas, Origem dos modos à mesa, O cru e o cozido e O homem nu), um clássico da Antropologia.
Foi justamente nas tradições e narrativas amazônicas herdadas dos índios e caboclos que Thiago Thiago de Mello foi buscar inspirações para compor Amazônia subterrânea. Uma imersão na poética e no imaginário da região em que nasceu.
Filho do poeta amazonense Thiago de Mello, ele expressa o cuidado com as palavras e o elo com a natureza que lhe servia de quintal nas brincadeiras de criança na beira do Rio Andirá, na vila de Freguesia do Andirá, município de Barreirinha. Criado solto, jogando bola na lama com os caboclos, desde pequeno ouvia histórias de assombrações no meio da noite e essas histórias lhe impregnaram a imaginação.
Doutor em Ciências Sociais pela UERJ, com ênfase em Antropologia e Sociologia da Cultura, o compositor optou por não encarar o trabalho de produzir um disco sobre as lendas amazônicas como objeto de estudo intelectual, mas, sim, como uma volta ao seio da família, que sempre viveu no Norte do Brasil. “Mergulhar na Amazônia e na história da minha família tem me ajudado a me encontrar como pessoa e artista brasileiro”, disse Thiago à Continente. “Eu me considero um caboclo, como meus irmãos de Barreirinha e Freguesia.”
Thiago Thiago de Mello é acompanhado por seu pai, o poeta amazonense
Thiago de Mello, em apresentação. Imagem: Marcelo Fredá/Divulgação
Até hoje, compor sobre a Amazônia é o que dá sentido à sua produção. “Parto de algum lugar da minha imaginação e, em seguida, começo o trabalho de pesquisa. Busco ouvir artistas da região e ler prosa e poesia. Folheio dicionários, converso com os caboclos em minhas viagens a Barreirinha e Freguesia do Andirá. Ouço os antigos, aprendo palavras novas. Faço amizades com artistas do Amapá, do Pará, Porto Velho, Amazonas. Eles me mostram a Amazônia através de seus olhares e suas canções.”
Um método que demanda variados níveis de esforço, atenção e sensibilidade, mas que pode se mostrar recompensador. “Ouvir um caboclo antigo pode ser mais abrangente e revelador do que ouvir uma palestra na universidade. Penso que esses saberes em diálogo dão frutos raros, poderosíssimos”, avalia.
As raízes familiares possuem grande relevância na tessitura do disco. Desde que começou a pesquisar sobre isso para a feitura de Amazônia subterrânea, Thiago tem feito descobertas. Além de se reconectar com sua ancestralidade e achar seu lugar numa família repleta de Thiagos (o bisavô, o avô, o pai e o irmão têm o mesmo nome), ele teve a oportunidade de estreitar os laços criativos com o pai escritor. Amadeu Thiago de Mello é ícone da literatura nacional, traduzido para mais de 30 idiomas. Passou um período exilado no Chile, depois de ter sido preso durante a ditadura militar, tornou-se amigo de Pablo Neruda e teve alguns de seus versos traduzidos pelo poeta chileno.
Os ensinamentos do pai, passados ao longo da vida, foram fundamentais para o que viria a se tornar Amazônia subterrânea: o modo de declamar poemas, o incentivo à leitura e ao mergulho na alma dos poemas. Thiago lembra o contato com o fazer poético do pai em contato com a natureza circundante, as árvores, os peixes, o Rio Andirá, a casa onde morava – e que até hoje é mantida pela família, a 350 km de Manaus (distância que leva 24 horas de barco para ser percorrida). Todos, elementos que contribuíram para que, das escavações poéticas e musicais empreendidas por ele, surgisse um trabalho sólido, coeso e relevante.
Ele e seu pai já fizeram várias parcerias criativas. Quatro delas presentes no disco: Confesso que tenho medo, Me desprendi do sol, O cheiro da Mariana e O vento leva a canoa, que conta com um trecho extraído da gravação de um show de Manduka (mais um Thiago da linhagem familiar) no Teatro Amazonas, em 1982, onde o pai declama o poema Como um rio. “Talvez não haja nada mais contemporâneo no disco do que ele falando esse poema. Parece que ele está falando agora, tamanha a atemporalidade”, diz o filho, orgulhoso.
VIAGEM AO CENTRO DO MUNDO
A base que dá vida à Amazônia subterrânea é composta por Thiago Thiago de Mello (violão de nylon e violão de aço), Diogo Sili (produção, guitarras, ukulele bass, viola caipira e violão de nylon) e Bernardo Aguiar (produção, percussões orgânicas e eletrônicas). O processo de composição, gravação e finalização foi demorado e remonta ao ano de 2015, quando os três músicos se juntaram pela primeira vez. O álbum conta ainda com as participações especiais de Lui Coimbra (violoncelo, em A voz dos ancestrais), Carlos Malta (flautas, em Última tradição) e da banda Pietá (Cangaço caboclo).
Os arranjos mesclam popular, erudito e experimentalismo, com percussões calcadas em ritmos tradicionais, sobrepostas por camadas criadas a partir do jogo entre violões limpos e distorcidos. A experiência é ampliada pelo excelente trabalho de mixagem feito pelo percussionista Marcos Suzano. O resultado dessa mistura é perceptível na faixa de abertura, O cheiro da Mariana, com mudanças rítmicas e efeitos que vão ponteando os versos melancólicos escritos pelo Thiago pai, cantados pelo Thiago filho: “Canoa no rio escuro/ Dorme em meu peito/ A encardida lamparina da esperança”.
Capa do disco Amazônia subterrânea, assinada pelo artista
gráfico Mauricio Negro. Imagem: Reprodução
No entanto, é em A vingança de cunhã que o trabalho se mostra em toda a sua exuberância. Gravada anteriormente pela banda Escambo, da qual Thiago fazia parte, pelo grupo carioca Pietá e por Frederico Demarca e Marília Schanuel, no disco Santa Rita, a canção é um cortejo sonoro e visual, com linguagem exuberante: “Desconjuro no fundo do furo/ Desnorteio buscando o luar./ Desgraçada aventureira/ que me veio amaldiçoar, não troço mais graça alvissareira,/ nem vou mais malinar”. Com clima denso, entrecortado pelas intervenções da viola caipira, dos pedais e da percussão marcada, a canção provoca sensação de hipnotismo frente a interpretação de uma narrativa próxima das grandes fábulas mundiais, de Esopo à Lafontaine.
Nessa mesma linha, Estrela d’água reporta à lenda indígena do surgimento da vitória-régia. Ela conta que, quando Jacy (a Lua) surgia no céu, iluminava o rosto das belas cunhatãs (moças) e, sempre que ia embora, levava consigo as mais bonitas com ela, transformando-as em estrelas. A guerreira Naiá queria ter o mesmo destino das moças escolhidas. Sem sorte, resolveu então caminhar pela aldeia em completo jejum, à espera da sua iluminação. Um dia, enquanto descansava às margens de um lago, Naiá viu Jacy refletida nas águas. Foi quando lançou-se no lago e se afogou. Com pena do triste destino da moça, Jacy a transformou numa flor cujas flores só se abrem durante a noite. Assim nasceu a vitória-régia, a estrela das águas. Lírica e cativante, a canção nos guia por essa jornada de modo etnopoético.
A opção por utilizar da linguagem popular, cotidiana, com sua opulência fonética, oferece um tempero especial à experiência de audição do álbum. Certezas inacreditáveis abre com o relato do caboclo Luiz Carlos, amigo da família de Thiago, que descreve como ele e o sogro ficaram presos na mata 40 anos atrás, vítimas das traquinagens do Curupira. Um relato que ganha cores especiais quando contado por quem acredita na verdade do que vivenciou, deixando de lado o ceticismo de quem desconhece as florestas: “Na correnteza/ deixei a certeza/ de nunca crer/ no que não se vê./ E acreditando/ fui relampiando,/ me desafiando/ a poder enxergar./ Esse segredo/ não é arremedo./ Eu juro tão cedo/ jamais duvidar do que há!”.
Amazônia subterrânea é uma lição de alteridade, uma investida aguerrida contra o processo de desmistificação da vida, empreendido pela sociedade do cansaço e do desempenho. Uma jornada ao centro mundo, na busca por vestígios, não de uma civilização perdida, mas de uma que permanece presente entre caboclos e ribeirinhos.
Guiado pela certeza de que progresso e tradição não são processos antagônicos, Thiago Thiago de Mello desenterra tesouros da memória coletiva amazônica e mostra que é possível falar do sobrenatural sem se afastar da racionalidade. Afinal, nas palavras de Gilberto Freyre, “não há contradição radical entre sociologia e história, mesmo quando a história deixa de ser de revoluções para tornar-se de assombrações”.
JOCÊ RODRIGUES, jornalista, colabora com publicações culturais brasileiras.