Ingeborg Bachmann: ‘O tempo adiado’
Considerada uma das maiores vozes da língua alemã no século XX, escritora austríaca tem poemas lançados pela Editora Todavia, primeiro passo à compreensão de uma vasta obra
TEXTO Kelvin Falcão Klein
05 de Maio de 2020
A poeta austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973)
Foto Reprodução
[conteúdo na íntegra | ed. 233 | maio de 2020]
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A polícia bate na porta: a poeta Ingeborg Bachmann, um pouco sonolenta, levanta e se prepara para atender ao chamado. Estamos em 1954 e, ao contrário do que se poderia imaginar, não se trata de uma batida da polícia secreta nos tantos países totalitários da época. Uma vizinha de Bachmann denunciou às autoridades o ruído causado pela poeta durante a madrugada: o barulho ritmado das teclas da máquina de escrever ecoa na noite e interrompe o sono dos justos. A poeta diz aos policiais que as ideias só vêm à noite e que o barulho da praça durante o dia atrapalha seu trabalho. “Mas em que diabos a signorina trabalha à noite?”, perguntam os policiais. Ela entra no apartamento e volta com uma folha datilografada, um poema em alemão que testemunha seu ofício. “Ah, é poeta!”, respondem os policiais. Tudo se resolve, mas Bachmann ainda escuta os policiais comentando quando se afastam: “Poemas tão curtos para tanto barulho!”.
A anedota é reveladora de uma série de elementos fundamentais para a vida e a poética de Ingeborg Bachmann. Em primeiro lugar, a mudança para Roma em busca de novos ares e novas perspectivas, algo que acontece em 1953, quando ela tinha 26 anos e já tinha recebido na Alemanha o prêmio literário do Grupo 47. Em segundo lugar, o anúncio de uma vida pouco regrada, trocando o dia pela noite em prol de uma rotina intensa de trabalho – que, com o passar dos anos, será impulsionada por drogas e remédios, até levar à morte 20 anos depois, em 1973. Por fim, e mais importante, mostra como a poética de Bachmann – o universo criativo que formou em poemas, libretos, romances, cartas e em tantos outros suportes – é indissociável dos dispositivos que a tornam possível: o lápis, a caneta e o papel; a máquina de escrever, a imprensa, o livro, o rádio.
Os policiais romanos tinham razão: chama a atenção do leitor a economia da linguagem de Bachmann, seu esforço em dizer muito com poucas palavras. “Há fogo sob a terra,/ e fogo é pureza./ Há fogo sob a terra,/ e pedra que não pesa”, escreve ela no poema Canções de uma ilha, na tradução admirável de Claudia Cavalcanti, responsável pela seleção e pelo prefácio da coletânea O tempo adiado e outros poemas, recentemente lançada pela Editora Todavia. Ou ainda o poema Dias de branco: “Nestes dias não me dói/ poder esquecer/ e ter de lembrar./ Amo. Até o ardor branco/ amo e agradeço com saudações inglesas./ Aprendi-as no voo./ Nestes dias penso no albatroz,/ com quem subi/ e sobrevoei/ até uma terra vazia”.
As poucas palavras, claras e diretas, ampliam o horizonte de referência do poema de forma sutil, mas decisiva. Enunciar que há “fogo sob a terra” poucos anos depois do fim de uma guerra é, ao mesmo tempo, poético e político. Da mesma forma, evocar em um poema alemão a ideia de “pureza” (aliada, de resto, à imagem do fogo) é também carregado de sentido, e feito de modo deliberado por Bachmann. Na mesma perspectiva, é bastante significativo apresentar a tensão entre “lembrar” e “esquecer” dentro do poema, e a sinalização histórica ganha substância com o aparecimento das “saudações inglesas”. O “albatroz”, por sua vez, remete ao arquiconhecido poema de Charles Baudelaire de mesmo nome: o poeta se identifica com o pássaro, desajeitado no chão, incrivelmente habilidoso nas alturas. Foi com o “albatroz” que a voz do poema de Bachmann subiu às alturas – quem é esse albatroz? A poesia, a linguagem, a leitura? Onde fica essa “terra vazia” que a voz poética sobrevoa? Será a Áustria da poeta, a França de Baudelaire, a Europa, o mundo?
O INÍCIO
Bachmann nasce em 1926 na cidade de Klagenfurt, na Áustria, e já na infância precisa lidar com a adesão do pai ao partido nazista. “Meus sonhos sempre foram feitos de mares, areia e navios”, escreve ela em um texto breve (intitulado Biografia) feito para um programa de rádio. “Mas então veio a guerra, e empurrou o mundo onírico e fantástico para trás do real, no qual não se tem o que sonhar, mas o que decidir.”
A trajetória de estudos da poeta foi sólida: cursou Filosofia, Psicologia, Filologia Alemã e Direito, passando pelas universidades de Innsbruck, Graz e Viena – nessa última defende uma tese chamada A recepção crítica da filosofia existencialista de Martin Heidegger.
Muito cedo, logo depois do fim da guerra, Bachmann começa a trabalhar em programas de rádio. Trata-se de um contexto no qual prolifera aquilo que Friedrich Kittler chama de um “uso indevido do equipamento militar”: as guerras mundiais geram um salto exponencial no desenvolvimento técnico e, com o fim dos conflitos, uma série de dispositivos se disseminam para o uso comum. Bachmann começa como roteirista de programas de rádio e em breve começa a escrever suas próprias peças, contos, poemas e romances. Entra em contato com o Grupo 47 (atuante entre 1947 e 1967), importante círculo literário que reúne figuras como Heinrich Böll, Paul Celan, Gisela Elsner, Hans Magnus Enzensberger, Günter Grass e Peter Handke. A jovem poeta irrompe em meio a esse grupo, recebe o prêmio anual em 1953 e logo parte para Roma, onde começa trabalhando como correspondente radiofônica.
Sua postura, desde cedo, foi a de combinar intensidade e distanciamento, ocupando diferentes posições simultaneamente e recusando rótulos fixos. Quando falava do interior da filosofia, era para questioná-la (a partir de Heidegger e Wittgenstein); quando falava do interior da literatura, era para testar suas fronteiras e suas possibilidades, avançando sobre gêneros diversos e sempre explorando as lacunas e as aporias do idioma alemão. Em um poema do período 1957-1961, intitulado Exílio, Bachmann escreve: “Eu com a língua alemã/ com essa nuvem à minha volta/ que considero casa/ vago por todas as línguas/ Oh, como ela se obscurece/ os sons da chuva os sombrios/ só poucos caem/ Em zonas mais claras ela carrega então o morto para o alto”.
O poema evoca a célebre frase de Heidegger (presente na entrevista póstuma ao Der Spiegel), quando afirma “que não se pensa senão na sua língua, na sua própria língua”, defendendo “o lugar insubstituível do grego e do alemão como línguas do pensamento”. Bachmann, por sua vez, vaga “por todas as línguas” com essa “nuvem”, que é também “casa”, a “língua alemã”. “Como ela se obscurece”, continua a poeta, talvez fazendo referência a esse deliberado jogo de intensificação da dificuldade do alemão por parte de escritores e poetas. Diante desse consenso, Bachmann opõe uma resistência e busca dizer as coisas de outras formas – vagando “por todas as línguas”.
Em uma entrevista que dá poucos meses antes de morrer, Bachmann relembra sua tese sobre Heidegger e nos permite observar como seu desejo de oposição (e de abertura de novos caminhos) já estava ativo desde cedo: “Digo sempre que fiz a tese contra Heidegger. Naquela época, com vinte e dois anos, pensei: agora vou derrubar esse homem”, ela declara, e continua: “O entusiasmo e a alegria eram muito grandes aos vinte e dois anos, tanto atacando quanto admirando. É claro, não derrubei Heidegger. Mas naquele tempo eu estava realmente convicta que ele não sobreviveria à tese. Mas ele conhece o trabalho, é uma das poucas pessoas que conhece a tese. E teve um estranho desejo, sem saber nada antes; para o seu aniversário de setenta anos desejava de sua editora, para a composição do volume de textos em sua homenagem [que é lançado em 1959], uma poesia minha e uma de Paul Celan. E nós dois dissemos não”.
É preciso reparar nesse paradoxo tão peculiar e tão típico de Bachmann: ela recusa a Heidegger um poema específico, um poema endereçado diretamente a ele e à publicação que comemora seu aniversário de 70 anos; por outro lado, boa parte de sua produção poética é realizada em confronto com a presença e o pensamento de Heidegger. Outro poema do mesmo período, 1957-1961, Vá, pensamento, é indício desse movimento duplo de repulsa e atração: “Vá, pensamento, enquanto uma palavra clara pronta para o voo/ é tua asa, te ergue e vai para/ onde os metais leves se embalam,/ onde o vento é cortante/ em um novo entendimento,/ onde armas falam/ de forma única./ Defende-nos lá!”.
Mais uma vez aparecem as alturas, o voo e a asa – imagens próximas àquela da “nuvem” da língua alemã no poema Exílio e do albatroz em Dias de branco (que também fala em voo). Bachmann faz a junção desse campo privilegiado de significados poéticos – o poeta como pássaro altivo, a partir de Baudelaire, mas já rastreável no primeiro romantismo alemão de finais do século XVIII – com a reflexão de Heidegger sobre as origens do pensamento, da linguagem e da abstração.
A coletânea O tempo adiado e outros poemas tem tradução
de Claudia Cavalcanti. Imagem: Reprodução
Como escreve Claudia Cavalcanti em seu posfácio: “Contradições insolúveis são a matéria básica da poesia de Ingeborg Bachmann, em que o eu lírico se vê ‘diante do espelho de gelo’, como em Dias de branco, e busca a palavra, quer derretê-lo. Essas contradições se manifestam em versos que, ao mesmo tempo, não pertencem a determinada escola literária, mas volta e meia remetem a outros autores; parecem livros, embora nada neles sobre; esperançosos, ainda que céticos; e, nitidamente, são versos com energia sensual e intelectual que se dirige ao outro – são versos fronteiriços”. Diante disso, e lendo e relendo seus poemas, fica claro que os caminhos de interpretação em direção a Bachmann são sempre provisórios e tentativos.
A MÁQUINA
Podemos voltar à máquina de escrever, fonte de discórdia na madrugada romana e suporte privilegiado de Bachmann para seu trabalho. Vilém Flusser, em seu livro Gestos, ajuda a resgatar essa experiência de escrita que já é estranha para muitos. A máquina de escrever, afirma Flusser, é a materialização de uma dimensão muito específica da vida ocidental no século XX; ela dá ritmo ao deslizamento da escrita da esquerda para a direita, ao mesmo tempo facilitando e estranhando o gesto da escrita. A máquina de escrever é uma transgressão do gesto particular da escrita, que agora não depende da caligrafia (ou seja, da pessoalidade) e, sim, de uma capacidade de externalizar o esforço da criação. A perturbação do sono da vizinha de Bachmann é, de certa forma, a conclusão lógica da ação do dispositivo que permite a externalização da escrita.
Essa externalização da escrita faz parte do universo poético de Bachmann, de seu esforço de observar a linguagem, cada letra, palavra e verso que surgem no papel por meio do esforço de bater nas teclas. “Devo/ aprisionar uma ideia,/ conduzi-la até uma célula iluminada da frase?/ alimentar olho e ouvido/ com bocados de palavras da melhor qualidade?/ analisar a libido de uma vogal,/ investigar o valor erótico de nossas consoantes?”, ela se pergunta, em um poema chamado Sem delicadezas, do período 1964-1967.
Antes de fazer o poema, Bachmann está diante da linguagem, de uma “ideia”, e se questiona: vale a pena aprisionar essa ideia dentro de uma “célula iluminada da frase”? Em seguida: vale a pena “alimentar olho e ouvido” com essa trabalhosa transformação de linguagem em ideia e de ideia em poesia? “Olho e ouvido” são mobilizados em conjunto certamente porque a palavra tanto se ouve (quando dita) quanto se vê (quando escrita) – mas não poderia estar aqui em questão também o bater à máquina, que repercute no ouvido e, ao mesmo tempo, na visão da letra que surge no papel?
A máquina de escrever trabalha com a imediaticidade do traço: um toque gera no mesmo instante uma letra grafada no papel. Ao contrário da letra manuscrita, a letra gerada pela máquina é padronizada, carrega a aura de algo firme, reto e fixo – uma tipografia organizada, rígida, imune às instabilidades dos dedos, da mão, do pulso. “Vocês, palavras, levantem, sigam-me!,/ e quando já tivermos ido mais longe,/ longe demais, iremos ainda/ mais longe, isso não tem fim”, escreve Bachmann, no poema Vocês, palavras. E continua: “A palavra/ tão somente/ atrairá para si outras palavras,/ a frase outra frase./ Assim o mundo gostaria,/ definitivamente,/ de se impor,/ de já ser dito./ Não o digam”.
O poema tem essa natureza sincopada que tanto chamou a atenção dos policiais romanos. Parece fazer o relatório de uma sessão de encantamento da linguagem, cada quebra de linha entrando em harmonia com o bater ritmado dos dedos nas teclas da máquina. As palavras “seguem” e “levantam” à medida que vão aparecendo no papel, palavras atraindo outras palavras (pela insistência na repetição do gesto) e frases atraindo outras frases.
O ritmo de um poema se decide na tensão entre dois opostos, entre a emergência de uma “ideia” e a materialização de letras, palavras e frases em um suporte. Em vários momentos de sua trajetória, Bachmann ensaiou uma ruptura com a poesia: já em 1956, quando estava envolvida com os artigos que escrevia como correspondente na rádio; em 1959, quando começa a se dedicar aos Seminários de Frankfurt, cinco conferências que pronuncia na Universidade de Frankfurt; em 1960-1961, quando elabora seu discurso de recebimento do Prêmio Georg Büchner. “Escrever poemas parece ser o mais difícil”, afirma ela em Biografia, “porque neles os problemas de forma, tema e vocabulário devem ser solucionados juntos, obedecem ao ritmo do tempo, e ainda assim devem ordenar a riqueza das coisas antigas e novas em nós, onde moram passado, presente e futuro”.
É preciso enfatizar a complexidade desse comentário e a clareza com a qual é expresso: a poesia obedece ao “ritmo do tempo” (ou seja, àquele encadeamento letra/palavra/frase que Bachmann expõe em Vocês, palavras) e, ao mesmo tempo, precisa dar conta de “passado, presente e futuro”, por vezes condensados em uma mesma imagem – como no caso do albatroz, que evoca o Baudelaire do passado, o Heidegger do presente e a Ingeborg Bachmann que se anuncia e que hoje lemos.
Essa dinâmica está presente de forma privilegiada em um poema do período 1964-1967, De verdade, dedicado a Anna Akhmátova: “Quem nunca se abateu pela palavra,/ e digo-lhes,/ quem só sabe cuidar de si/ e com as palavras –/ desse não há como cuidar./ Pelo caminho curto não,/ e não pelo longo./ Tornar sustentável uma única frase,/ resistir no assombro de palavras./ Esta frase não escreve aquele/ que não a assina”. O desenvolvimento do percurso poético de Bachmann apresenta a reconsideração da relação entre espírito e letra: rompendo com o privilégio do “pensamento” e da “vontade”, a poeta defende que a letra precede e funda o espírito.
O tempo adiado e outros poemas oferece um primeiro passo em direção a uma obra vasta e complexa, ainda que apenas arranhe a superfície – sua obra completa tem 30 volumes, incluindo correspondência e textos inacabados. A esperança é que tenhamos acesso, em português e no Brasil, ao restante de sua produção, desde os romances (para além de Malina, cuja edição está esgotada), passando pelas conferências, artigos, peças radiofônicas e alcançando o restante dos poemas. Como não podia deixar de ser, Bachmann tem versos também para essa esperança: “Haja o que houver: sabes tua hora,/ meu pássaro, pega teu véu/ e voa até mim pela névoa”. Estamos aguardando do outro lado.
KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).