Transportar tal discussão para os Estados Unidos dos 1900, permeado por leis de segregação, é tarefa árdua. Mas é essa uma das propostas da nova produção da Netflix, lançada no mês que marca o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. A minissérie A vida e a história de Madam C.J. Walker (do inglês Self made) narra a trajetória de vida e empreendedorismo de Sarah Breedlove, a primeira americana negra milionária por conta própria. A obra audiovisual é baseada na biografia intitulada On her own ground, best-seller escrito pela trineta da empresária, A’Leila Bundles.
Para se encaixar em quatro episódios, a série faz um recorte temporal a partir do momento em que Sarah Breedlove começa sua aproximação com o mercado de produtos para cabelos negros – contando também com flashbacks nostálgicos de sua infância nas plantações da Luisiana do período pós-abolicionista. No início da série, devido à sua jornada de trabalho estressante como lavadeira e a um casamento abusivo, ela sofre com problemas de queda de cabelo. Condição que gera nela baixa autoestima, perceptível em sua fala: “Cabelo é poder. Você não imagina o que é perdê-lo”. Esse é o ponto de partida do desenvolvimento desta mulher para se tornar a Madame C.J. Walker, personalidade de indiscutível importância histórica, cuja trajetória é finalmente contada numa obra em audiovisual.
A história de Breedlove é narrada de maneira a abarcar um público preparado para conteúdos densos, mas também é roteirizada de forma a não afugentar aqueles em busca de entretenimento, com carga dramática pontual. Talvez seu sucesso na plataforma de streaming seja creditado a essa sua característica democrática, deglutível. A escolha da atriz principal é outro ponto chave na produção: Octavia Spencer, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante, interpreta, com sua forma assertiva, a personalidade que decidiu deixar de ser lavadeira para fundar o império de produtos e serviços capilares.
Sarah Breedlove, a mulher que inspirou a minissérie.
Imagem: Collection of The Smithsonian National Museum of African
American History And Culture/Divulgação
Mas a trama vai além de negócios e produtos para cabelo. Em seus diálogos, há sempre momentos para discursos perspicazes sobre feminismo negro. Ademais, o caráter feminista e antirracista da série se faz presente na escolha do elenco, majoritariamente negro (fato incomum em produções do gênero), e na montagem da trilha sonora – constituída exclusivamente por cantoras afrodescendentes. O repertório musical em si é uma surpresa interessante, com aparições de músicas contemporâneas, passando por ritmos como rap e R&B. Essa mescla de elementos culturais do presente aos do século passado acaba por promover reflexão sobre a vigência das discussões daquela época, como é o caso do debate sobre colorismo – encontrado no decorrer de toda a trama.
Colorismo é uma pauta consolidada dentro do movimento negro que começa a ser mais difundida na sociedade. E ter uma produção de relevante alcance como A vida e a história de Madam C.J. Walker, na qual se discute tão amplamente essa pauta, é de suma importância. A batalha contra um racismo visível-invisível, que pretere negros retintos, é o diferencial da marca criada por Sarah, cujos produtos têm como “garota propaganda” ela mesma, ignorando a tendência do mercado em escolher mulheres negras de pele clara – uma escolha vanguardista pelo movimento da representatividade, muito visto nos dias atuais. Nunca se é “muito escura para brilhar”, é o recado.
A minissérie é composta por um verdadeiro acervo de frases de impacto. Uma com merecido destaque é: “Cabelo pode ser prisão ou liberdade”. Ao decorrer do enredo, seu significado é ilustrado na prática, ao mostrar o cuidado e a valorização do cabelo afro como sinônimos de conexão afetiva entre pessoas negras. Mas, pelo fato de a sociedade ser refém de amarras do branqueamento, o relacionamento com o cabelo pode ser distorcido e contrariado, podendo até pessoas empoderadas e autoafirmadas caírem em armadilhas e gatilhos psicológicos. A série não se ausenta dessa questão e retrata a luta constante da Madame C.J. Walker em se aceitar frente às pressões sociais.
Desde seu lançamento, em março, a série original da Netflix tem recebido muitas críticas, em especial positivas, e vem sendo compartilhada e assistida. Mesmo sem ser uma representação fiel da real Madame C.J. Walker, ao ocupar espaço de destaque, a montagem serve como mostra da relevância em se dar espaço para narrativas como essa, temas constantemente ignorados pelos estúdios. Com esse sucesso, fica a expectativa da aplicação de tal modelo de produção cinematográfica na contação de outras histórias de mulheres negras, como as de Mary McLeod Bethune, Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares ou Esperança Garcia.
TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.