Artigo

Sumir do mapa e outros scripts

Táticas de resistir à instalação da central nuclear em Itacuruba

TEXTO Whodson Silva

04 de Março de 2020

Reminiscência dos povoados do Rio São Francisco que foram inundados quando da construção da Usina Hidroelétrica de Itaparica

Reminiscência dos povoados do Rio São Francisco que foram inundados quando da construção da Usina Hidroelétrica de Itaparica

Foto Luiz Netto

[conteúdo na íntegra | ed. 231 março de 2020]

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CENÁRIO DE UM DESCASO PLANEJADO
Itacuruba está no mapa! Situada em Pernambuco, na microrregião do Sertão de Itaparica, às margens do Rio São Francisco. Na pedra miúda, como indica sua tradução do tupi, estima-se cinco mil habitantes envoltos em dinâmicas e em poéticas de uma singular cidade de interior, onde o céu é idealmente límpido para contemplar objetos não identificados. Tal característica circunscreve Itacuruba não só no mapa terrestre, mas também no mapa mundial astronômico, como sugerido pelo Observatório Astronômico do Sertão de Itaparica (Oasi), que, desde 2011 operando no município, decidiu homenageá-lo dando seu nome ao Asteroide 10468.

No entanto, a condição de polo astronômico não faz desse lugar uma rota, tampouco um destino de muitas pessoas; as próprias missões observacionais do Oasi são conduzidas de forma remota, por astrônomos do Observatório Nacional (ON), no Rio de Janeiro. Ainda não existe linha de ônibus interestadual ou intermunicipal com destino a Itacuruba, tendo em vista que uma estrada de 12 km é o único acesso pavimentado de seu centro urbano à rodovia federal mais próxima. Caso não disponha de carro particular, a mobilidade se dá através do micro-ônibus de um dos moradores, que realiza duas viagens por dia para o município vizinho, exceto nos finais de semana.

Isolamento arquitetado numa espécie de cidade cenográfica, a “nova” Itacuruba foi desenhada e construída pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), para abrigar, a partir de 1988, parte da população compulsoriamente reassentada da Itacuruba “velha”, que teve sua sede municipal e terras agricultáveis inundadas pela Usina Hidrelétrica (UHE) de Itaparica. Como no enredo do Vale do Javé, este município sertanejo foi submerso à revelia das memórias, das histórias e dos patrimônios “não científicos” de seus narradores, expressos como “beneficiários” de um projeto de desenvolvimento cujo slogan era: “mudar para melhor”.

A mudança logo foi percebida: “sem casa, sem terra, sem ter o que fazer, o povo de Itacuruba como é que vai viver?”. Essa pergunta, à época, repetidamente proferida como palavra de ordem contrária ao empreendimento, se posterga até os dias de hoje entre os habitantes do novo município. O questionamento de “como viver” sem as estruturas das relações familiares, territoriais e de trabalho, agora submersas, traduziu-se em problemas da saúde coletiva de Itacuruba, que, em 2006, concentrou, segundo o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), a maior taxa de suicídio no Brasil, como apontado no documentário De profundis.

Esses foram prejuízos consagrados nas instruções do planejamento da UHE Itaparica, como apontou o antropólogo Parry Scott, em 2009. Para ele, o “descaso planejado” conjecturado por esse megaprojeto energético implicou na criação de um padrão de táticas de obstruir, adiar ou arbitrariamente negar os direitos e os interesses de segmentos sociais impactados, que se constituíram numa esfera residual, uma segunda ordem nos desenhos gerais do projeto.

Localiza-se aqui, em Itacuruba, uma arena de confrontos – de um lado, mulheres e homens no sertão de Pernambuco e, do outro, os projetos de desenvolvimento do Estado. Não por acaso, o novo município é indicado, nesse momento, como sítio prioritário para a construção de uma central nuclear com seis usinas nucleares. Na trama de um atualizado descaso planejado, afincam-se diversificadas táticas de matar, de morrer e de resistir, onde atores sociais protagonizam repetidas cenas de um filme que tem Itacuruba novamente como o cenário.

CONTRAMÃO DA DISCUSSÃO
Um fluxo inabitual de carros, pessoas e helicópteros sobrevoando a região logo foi percebido e comentado entre os moradores da “nova” Itacuruba. Contudo, somente um ano após a movimentação, em 2011, descobriram, por meio de uma notícia na internet, que ela decorria da realização do estudo de sítio para a construção de uma nova central nuclear no país. Nesse momento, a população entendera que “a rota da expansão da energia nuclear brasileira”, documento publicado anexo à notícia, passava justamente por cima dela, assim sendo, é vez de organizar o confronto.

A “Central Nuclear do Nordeste” é um megaprojeto energético que prevê a construção de seis usinas nucleares nas margens do Rio São Francisco, com capacidade de geração total de 6.600 megawatts elétrico. Para o governo federal, o objetivo é atender à demanda de energia para o crescimento econômico do setor produtivo brasileiro, condensando, na mesma pasta, os interesses e os investimentos das iniciativas privada e estrangeira, que, de forma piramidal, são situadas em posições de domínio, destarte a qualificação que detêm sobre a natureza tecnológica do projeto.

Temporalmente, é a partir da década de 1980 que se veicula, nos Diários Oficiais da Assembleia Legislativa de Pernambuco, o interesse federativo de instalar usinas nucleares no Sertão de Itaparica, como ocorrera em 1987, com a tentativa de depositar nessa região os rejeitos radioativos do acidente brasileiro envolvendo o césio-137. O debate parlamentar nesse período culminou no art. 216 da Constituição de Pernambuco, que proíbe a instalação de usinas nucleares no território estadual enquanto não se esgotar toda a capacidade de produzir energia oriunda de outras fontes.




Cartografia social elaborada pelos povos tradicionais de Itacuruba.
Imagens: Projeto Nova Cartografia Social em Pernambuco/Divulgação

Em 2009, no entanto, a Eletronuclear inaugura no Recife um escritório de representação no Nordeste, a fim de iniciar os estudos de sítio para abrigar novas usinas nucleares, como previsto no Plano Nacional de Energia 2030 (PNE 2030). Concomitante à publicização de que Itacuruba é a área prioritária dentre as identificadas no estudo, ocorre, em 2011, o desastre nuclear em Fukushima, no Japão, que se torna o maior acidente desde o de Chernobyl, em 1986, e reverbera internacionalmente em debates sobre os riscos da tecnologia nuclear que, naquele momento, levou o Programa Nuclear Brasileiro (PNB) à retaguarda.

Na contramão da discussão energética mundial, que acentua formas de energia renováveis e regressão das políticas nucleares, em 2019, o Ministério de Minas e Energia (MME) anuncia as seguintes pautas: a privatização na exploração de urânio, elemento radioativo que, enriquecido, produz energia nos reatores nucleares; a retomada das obras de Angra III, paradas desde 2015, em razão de investigações por esquemas de corrupção; e a construção de novas usinas nucleares, que progride na escolha de Itacuruba como o sítio preferido. Tais perspectivas tendem a ser confirmadas no Plano Nacional de Energia 2050 (PNE 2050), publicação aguardada para breve.

A opção por Itacuruba revela, por outro lado, maneiras de subjugar um Sertão cristalizado como “naturalmente” seco, vazio e miserável. Justifica-se a escolha do município em razão do solo estável, da oferta de água do Rio São Francisco para resfriar os reatores, da proximidade de linhas de transmissão de energia e da baixa densidade demográfica, visto que, após o censo brasileiro de 2010, Itacuruba passa a ser estigmatizada midiaticamente como habitada por “um pouco mais de quatro mil almas”.

Previamente registrados como inexistes nas áreas de interesse do projeto, os povos e comunidades tradicionais em Itacuruba evidenciam, contraditoriamente ao sertão de vazios, a presença histórica, material e simbólica numa região vivida por três comunidades quilombolas – Negros de Gilu, Poço dos Cavalos e Ingazeira – e por três povos indígenas – Pankará do Serrote dos Campos, Tuxá Campos e os Pajeú de Itacuruba. Esses seis grupos, organizados em movimentos sociais, têm estabelecido a proteção de suas territorialidades específicas, para assegurar suas reproduções físicas e sociais frente à instalação de um novo megaprojeto.

Na direção oposta de indígenas e quilombolas, está a Central Nuclear do Nordeste, expressa por um consórcio que articula diferentes grupos de poder, regido pelas relações geopolíticas estabelecidas entre o Estado e os capitais internacional, nacional e regional. Esse grupo, no campo social do confronto, controla os principais meios de coerção, formulando táticas que operacionalizam a estratégia de colocar em segunda ordem os interesses da população atingida pelo megaprojeto.

“Matutos”, “dissimulados” e “desinformados” são alguns dos adjetivos utilizados por técnicos e planejadores do empreendimento para negar e desfocar as presenças e existências dos povos e comunidades tradicionais em Itacuruba. Em resposta, estes elencam um repertório de ações coletivas que denunciam as violações de direitos humanos e demonstram como, nos contextos locais, se produzem estratégias de autonomia e resistência.

FORMAS DE MATAR, MORRER E RESISTIR
Entre outros scripts, Itacuruba poderá sumir do mapa. A proposta de mudança no Pacto Federativo sugere que os municípios com menos de cinco mil habitantes e arrecadação própria inferior a 10% da receita total sejam incorporados pelos municípios vizinhos; no caso de Itacuruba, por Floresta ou Belém do São Francisco. A pedra, julgada por ser miúda, repentinamente pode desaparecer! No campo da instalação da central nuclear, essa é mais uma tática de desmoralização dos povos e comunidades tradicionais, bem como de fomento de desajustes sociais.

Passo a passo, se estabelece um padrão de mecanismos para coibir os atores sociais de ocuparem os espaços de decisão, restringindo-os a uma dança das cadeiras na busca de informações. Primeiro, em 2011, o MME não oferece maiores explicações sobre as áreas de interesse da central nuclear; já em 2019, num primeiro momento, veicula-se na mídia que o assunto era fake news, seguidamente, Itacuruba é indicada como o “possível” sítio, e que só após a decisão oficial de instalar ali o empreendimento, se procederá a “Consulta Livre, Prévia e Informada”, conforme previsto na legislação federal e internacional.

O silêncio é uma complexa tática de provocar o sofrimento social entre essas pessoas, que, sem o acesso às informações, vivenciam sensações de ansiedade e de medo do que poderá acontecer. Acrescenta-se a remoção, no site da Eletronuclear, da apresentação do empreendimento e a ausência de publicação, na íntegra, do estudo de sítio. Logo, em nenhum momento o MME contatou a população a ser impactada, mesmo quando solicitado. Em outra direção, o silêncio é um elemento discursivo na produção da invisibilidade dos povos e comunidades tradicionais, que são vistos como fadados ao passado e inexistentes nessa região no tempo presente.

Tática paralela é a negação do direito de reconhecer-se enquanto indígena ou quilombola, fazendo com que estes não sejam contemplados por legislações específicas no contexto da instalação do megaprojeto. A saber, a Fundação Nacional do Índio (Funai), em 2019, trocou antropólogos por “pessoas de confiança” e sem expertise na condução de estudos de identificação e delimitação de terras indígenas em Itacuruba e região circunvizinha. Em outro plano jurídico, porém simultâneo, tramitam propostas de emenda às legislações estadual e nacional, que respectivamente, pretendem alterar o artigo 216, em Pernambuco, no nível federal modificar os artigos 21 e 177, o que permitiria ao setor privado construir e operar reatores nucleares.

No que tange especificamente à geração de energia pela matriz nuclear, existe uma ampla discussão que aponta que esta é cara, poluente e perigosa. Cara, por considerar os altos custos desde a instalação ao descomissionamento; poluente, por envolver também o ciclo de seu combustível e a produção de rejeitos radioativos, que precisam ficar isolados durante anos; e, perigosa, por expor a sociedade a riscos de acidentes com alta radioatividade. O ocultamento dessas problemáticas e a banalização dos riscos socioambientais são, dentre essas tramas de táticas, mais um script, tal qual “sumir do mapa”.

Em contrapartida, quem nasce em Itacuruba é gente! Com história, nome e etnônimo. A presença dos povos e comunidades tradicionais em Itacuruba revela uma ampla rede que compõe a diversidade de relações socioculturais e continuidades históricas nessa região. “Estamos aqui!”, “Sempre estivemos!” são afirmações que evidenciam que as existências em Itacuruba pressupõem formas de resistências, justamente, para que essas diversificadas formas de existir sejam garantidas.

É “fortalecendo a cultura, a fé e a religião”, como afirma Cícera Pankará, é na luta pela demarcação dos territórios tradicionalmente ocupados e pela preservação do Rio São Francisco que há variadas táticas de resistir e que, numa esfera maior, compõem os repertórios de confrontos antinucleares no sertão de Pernambuco.

Se, de fato, a usina for construída, provavelmente, nós teremos de ser retirados do território ou ficaremos numa área de segurança máxima, qual das duas decisões a gente tem que tomar? O que vamos fazer? Para que caminho a gente vai seguir? Se não é nenhuma das que a gente quer, nenhuma das possibilidades a gente quer, então é esse o grande impasse que a gente tem. Ou nós ficamos dentro de uma área de segurança máxima ou a gente é retirado de um território pelo que a gente vem lutando, o território tradicional. E aí, mais uma vez, nós vamos negar aos nossos filhos e aos nossos netos o território, a cultura, a tradição se nós já passamos por isso? Por isso que a gente continua denunciando! (Lucélia Pankará)


Em 2012, a população de Itacuruba já realizava manifestações contra o projeto de instalação de uma usina nuclear na cidade. Foto: João Zinclar/Acervo João Zinclar - ajz.campinas.br

"NADA PRA NÓS, SEM NÓS"
Se sumir é uma tática de desmobilização, estar nele é uma tática de resistência. O mapa, podendo assumir naturezas distintas, tem a capacidade de definir o que se quer que exista enquanto constituição formal e política. Apresenta-se, então, como um instrumento de reconhecimento da presença e da existência de algo, de alguém ou de alguma coisa, em dado recorte físico e geográfico. “Estar no mapa”, portanto, refere-se às relações de poder simbólico, territorial e, consequentemente, de luta por direitos.

“Nada pra nós, sem nós” – como afirma Valdeci, quilombola de Poço dos Cavalos. Aqui está o sentido de elaborar seus próprios mapas, evidenciar as existências coletivas, as potencialidades locais, bem como denunciar a violência do silêncio provocada e reproduzida pelos projetos de desenvolvimento do Estado. Figurar o mapa, portanto, é dizer que estamos aqui e precisamos ser considerados.

A projeção de uma central nuclear no Nordeste não é um fato isolado e localizado, pelo contrário, envolve uma série de elementos, atores, instituições e conflitos que permeiam diferentes níveis e contextos de poder. Se, por um lado, a conjuntura sociopolítica do campo do desenvolvimento energético no Brasil caminha para a materialização do empreendimento nuclear em Itacuruba, de outro, atiça as mobilizações e confrontos políticos antinucleares.

As mobilizações antinucleares de povos e comunidades tradicionais têm estabelecido uma construção argumentativa que impede que o projeto da Central Nuclear do Nordeste seja tratado a partir da ideia de uma tábula rasa. E, nessa direção, é importante considerar que os aspectos sociais e ambientais no entorno de um megaprojeto energético não devem ser tratados separadamente ou por último; pelo contrário, devem estar em pé de igualdade com os fatores técnicos e econômicos no próprio processo de planejamento.

A questão nuclear em Itacuruba aponta um campo social no qual é possível visualizar o acirramento de políticas governamentais que impulsionam a implantação de grandes projetos e objetivam, ao mesmo tempo, retroceder os direitos conquistados pelos segmentos sociais, assim como impactar o meio ambiente em escalas sem precedentes.

WHODSON SILVA, antropólogo, pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e integrante do Laboratório de Estudos sobre Ação Coletiva e Cultura da Universidade de Pernambuco.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.
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