Lançamento

Uma análise da poesia de João Cabral

Leia trechos do livro 'João Cabral de ponta a ponta', de Antonio Carlos Secchin, lançado pela Cepe Editora

TEXTO Antonio Carlos Secchin

02 de Janeiro de 2020

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto

O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto

Foto Eder Chiodetto/Folhapress

[conteúdo na íntegra | ed. 229 | janeiro de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

O POETA APONTA
(PRIMEIROS POEMAS)
Em algum momento, no decorrer de 1947, em Barcelona, o vice-cônsul João Cabral de Melo Neto, revendo papéis com os poemas que escrevera na adolescência, decidiu destruí-los. Mas não o fez de todo. Sua primeira mulher, Stella, com quem se casara no ano anterior, conseguiu recuperá-los e os transcreveu num pequeno caderno. Tocado pelo gesto da esposa, o poeta não apenas conservou o caderno: na sequência dos textos transcritos, manuscreveu novo poema, que, como os dezenove outros, permaneceu inédito por décadas.

Essa é, em linhas sumárias, a origem dos Primeiros poemas, ao mesmo tempo o mais antigo, pois comporta textos de 1937, e o mais novo livro do autor, lançado em 1990, um ano após a publicação de Sevilha andando. Na edição de sua Obra completa, de 1994, a organizadora Marly de Oliveira (segunda mulher de Cabral), optou por alocar os textos em apêndice. Na de 2008, Poesia completa e prosa, a obra, apesar da tardia publicação, figura na abertura do percurso cabralino, no posto de efetivo “marco zero” de sua produção.

O período de 1937 a 1940, coberto pelo volume (salvo o último e tardio texto), corresponde a momentos decisivos da formação literária de Cabral. Em 1937, aos 17 anos, obtém o primeiro emprego, na Associação Comercial de Pernambuco. Em 1938, reúne-se ao grupo de Willy Lewin, intelectual que, à época, exerceu sobre o jovem João decisiva influência: revelou-lhe as modernas correntes literárias francesas, em especial o Surrealismo, que tanto o impregnaria de início, e que ele tanto repudiaria tempos depois. Em 1940, viaja ao Rio de Janeiro e trava contato com dois grandes poetas, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, cujas marcas seriam visíveis em Pedra do sono, livro de estreia, publicado em 1942.

Os Primeiros poemas correspondem, de fato, a um estágio de aprendizado, em que nada ou quase nada permite entrever o futuro poeta, quaisquer que sejam os parâmetros de aferição. O poema em prosa, com quatro incidências, praticamente desapareceria das cogitações de Cabral (ele valorizaria a prosa no poema, o que é bem diverso) – para não falarmos da utilização do verso longo, ritmicamente “frouxo” e fronteiriço à prosa, próximo do modelo então praticado (ao arrepio do Modernismo de 1922) por autores como Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes. É o que sucede com Junto a ti esquecerei..., na abertura do volume, cujo desfecho afirma:

Então leremos poetas bucólicos
debaixo de uma árvore que deverá ser frondosa.
Indefinidamente rodaremos em torno dela como num carrossel,
indefinidamente estarás comigo. (p. 6)

A observar, ainda, a utilização protocolar dos adjetivos (“poetas bucólicos”, “árvore frondosa”), bem como o lugar-comum da comparação (rodar “como num carrossel”).

Os dois poemas subsequentes trazem por título Pirandello, autor que também desaparecerá do horizonte de referências cabralino. Os livros do dramaturgo italiano circularam no Brasil, traduzidos, desde a década de 1920. A apropriação do discurso pirandelliano tampouco deixa transparecer maior originalidade:

A paisagem parece um cenário de teatro.
É uma paisagem arrumada.
Os homens passam tranquilamente
com a consciência de que estão representando. (p. 6)

Uma atmosfera nitidamente antirrealista permeia as páginas dos textos em prosa dos Primeiros poemas. A montagem arbitrária da narrativa é a tônica de tais peças, elididos quaisquer nexos de causalidade. É o que se verifica em Episódios para cinema:

Eu pedia angustiadamente o auxílio do cavalo de Tom Mix. / (...) / E quando finalmente! apareceu, era Napoleão que vinha... / desta vez brandindo uma enorme laranja que me descarregou na cabeça, eu que sendo louro há anos não como laranjas. (p.7)

Obedecem ao mesmo princípio Introdução ao instante

Podiam-se notar uma ausência completa de transformações e um monarca asiático em visita a Londres.

/ (...) /
Para sempre permanecerão nos polos mais afastados leões de pedra impenetráveis como esfinges. (p. 11)

e Noturno telegráfico, outra manifestação do Surrealismo après la lettre do jovem Cabral:

Os despachos – insurmontáveis! E os enigmas. Havia mensagens irrealizadas entre outras. Gestos principalmente. Forças que compareciam: um anjo, um telefone, o silêncio. (p. 11)

Se Murilo Mendes ainda é mestre sub-reptício, a sombra de Carlos Drummond de Andrade se espraia ao longo do livro. Ora comparece em edulcorada estilização, quando Cabral reescreve o famoso Política literária do escritor mineiro –

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso, o poeta federal
tira ouro do nariz .

– esvaziando-o do componente satírico, num texto, não por acaso, intitulado C. D. A,

Uma imensa ternura disfarçada
chegara de Belo Horizonte
pelos últimos comboios
e os versos do poeta municipal
que viúvos traziam entre flores
vinham em aeroplanos
e invadiam os arranha-céus federais. (p.11)

ora a homenagem se efetiva por meio da dedicatória (em O momento sem direção): Drummond é o único autor a merecê-la. Esse poema evoca o clima bélico e os fantasmas de iminente conflagração mundial (“Meia-noite no alto das cidades ameaçadas, / assistindo-as confabular à distância”, p. 12), já presentes em publicações drummondianas desde 1935. O veio engajado encontra guarida ainda mais explícita em Guerra:

A poesia circula livremente entre os bloqueios.
Os grandes poemas são compostos em Morse.
Sobre o espaço e o tempo abolidos
generais sonham planos definitivos
entretanto forças formas brancas
pousaram nos alto-falantes das trincheiras. (p. 12)

O que se percebe, nessa arqueologia poética que podemos denominar de período pré-cabralino, é a conjugação híbrida de tendências que o poeta evitaria a partir de O engenheiro (1945): a imagem arbitrária mesclada ao brado social ostensivo, prenhe de populações indefesas e de altas patentes militares. É o caso de Poema:

Os homens trocam sorrisos.
/ (...) /
Mas nos países sem palavras
os generais incendeiam pianos
dos pianos heroicos nascem florestas
e outros lamentos são gritados
para as janelas acesas
que guardam antigos remorosos. (p. 12)

Outro notável contraste com o futuro Cabral reside na opção pela atmosfera noturna (que, aliás, se estenderia a Pedra do sono) e a consequente associação entre poesia, sono e sonho – conforme o próprio autor reiterou na plaquete Considerações sobre o poeta dormindo, de 1941. Um texto se intitula A poesia da noite. “Poesia” evoca “a voz imensa que dorme no mistério” e celebra a “atmosfera sobrenatural da poesia”, em contraste à “aparência das coisas” (p. 7). Em A hora única confluem espaço noturno, agenciamento de imagens heteróclitas, paisagens sem quaisquer traços particularizadores e emprego pouco expressivo de adjetivos:

Os homens perderam-se
depois da madrugada.
Soprou do mar, das montanhas
/ (...) /
uma viração imprevista
e a escuridão
/ (...) /
fez secar as flores colhidas
que aviões misteriosos deixaram cair
para serem distribuídos em profusão
entre as noivas de branco (p. 10)

Melhor fatura é obtida nas construções mais concisas de Janelas:

Recordações inumeráveis
correm silenciosamente
nas margens do rio
(dos olhos do homem) (p.10)

E de A asa. A observar, neste, a revelação do malogro de um duplo objetivo, que remete a implicações diversas:

Eu não alcanço a asa
a serenidade da asa
o voo da asa.

Ou a asa do retrato na parede
a asa dos sonhos
a asa dos navios.

Eu nunca penso na asa
com que jamais despertei
nenhuma manhã. (p. 15)

Nas duas primeiras estrofes, a confissão do fracasso reside na inacessibilidade de uma asa que, alheia ao poeta, forneceria não apenas (como seria previsível) lições de afastamento e liberação (voo, sonhos, navios), mas também de contenção e estaticidade (“retrato na parede”). Nos versos finais, o lamento passa a ser o “nunca pensar” na asa, antecipando, no contraste pela ausência, um universo em que mesmo o voo pudesse ser pensado em vez de apenas alcançado. Tal flanco (ainda não percorrido ao longo do clima sombrio do livro) poderia, então, desvelar a solaridade da manhã. Espaço luminoso plenamente constituído no poema que encerra o conjunto – escrito, porém, como dissemos, sete anos após os demais, numa espécie de autocrítica do autor “maduro” de 1947 frente ao iniciante de 1937-1940:

Trouxe o sol à poesia,
mas como trazê-la ao dia?

No papel mineral
qualquer geometria
fecunda a pura flora
que o pensamento cria.

Mas à floresta de gestos
que nos povoa o dia,
esse sol de palavra
é natureza fria.

Ora, no rosto que, grave,
súbito riso abria,
/ (...) /

nova espécie de sol
eu, sem contar, descobria:
não a claridade imóvel
da praia ao meio-dia,

de aérea arquitetura
ou de pura poesia:
mas o oculto calor
que as coisas todas cria. (p. 16)

“Sol”, “mineral”, “geometria”, “pensamento”, “claridade”, “praia”, “arquitetura”– eis-nos imersos no léxico que doravante, e para sempre, será o cabralino. A essa altura, o poeta já estava próximo de publicar seus três longos textos metalinguísticos enfeixados em Psicologia da composição (1948), com o elogio da frieza operacional, do cálculo e da razão como estratégias para a composição literária. O poema acena ainda para um lado transbordante da existência, externo ao texto, pois nele “o sol de palavra / é natureza fria”. Ao refletir sobre limites e cisões do binômio obra/vida, o escritor distingue dois atributos do signo “sol”. Se a luz emana da palavra, o calor, porém, provirá de um outro ser, ou melhor, de uma outra, a mulher que recolheu os papéis rejeitados por João Cabral, e que, devolvendo-os, restituiu-lhe a adolescência de sua poesia.

DRUMMOND E CABRAL: AFAGOS & ALFINETES
Uma faca salame. Corria à boca larga que era desse modo irônico, caricato, que Carlos Drummond de Andrade denominava o poema Uma faca só lâmina, de João Cabral de Melo Neto, publicado no Jornal de Letras nº 75, de setembro de 1955. Como algumas pessoas integravam o círculo comum de amizade dos dois poetas, não é difícil inferir que tal “brincadeira paródica tenha chegado ao conhecimento de Cabral. De qualquer modo, parece nítido que foi nesta década de 1950 que se encorparam as rusgas entre ambos, nunca, aliás, assumidas ou explicitadas em público. Correm versões sobre o afastamento – na fronteira do rompimento – entre dois escritores que outrora haviam sido muito unidos, a ponto de, em 1946, Drummond ter sido padrinho de casamento de Cabral com Stella, sua primeira esposa. Uma versão infundada refere que João teria colaborado para que Maria Julieta, filha única de Carlos, obtivesse um cargo no Centro de Estudos Brasileiros de Buenos Aires, órgão da Embaixada do Brasil. Isso teria desgostado Drummond, cujo apego à Julieta era notório. Ora, à época (coincidentemente, 1955), sua filha já residia há seis anos na capital argentina, para onde fora com o marido, o escritor Manuel Graña Etcheverry.


O poeta Carlos Drummond de Andrade. Foto: Divulgação

Em 1956, retomando a carreira diplomática, de que fora afastado por um rumoroso inquérito administrativo, sob a acusação de propagar ideias comunistas, João Cabral foi designado para servir em Barcelona. O contato entre ele e Drummond, a partir de então, torna-se esporádico, formal e (quase) literalmente telegráfico. Mais plausível parece ser a atribuição do afastamento a um progressivo dissenso estético, apimentado, é claro, pelas facas e salames que substituíram os salamaleques de outrora. Cabral, de discípulo da poesia drummondiana, passava a ser seu contendor, com uma dicção poética em nítido contraste com a do antigo mestre.

Nos primórdios de sua escrita, e antes de conhecer pessoalmente Drummond, em 1940, Cabral já se revelava tributário e admirador do poeta itabirano, conforme revelam dois poemas de 1938, inéditos até 1990 (incluídos na coletânea Primeiros poemas): C. D. A. e O momento sem direção. Se neste último a homenagem se expressa em forma de dedicatória, no primeiro ela se efetiva no corpo do poema, por meio da alusão a algumas peças do autor mineiro: “Uma imensa ternura disfarçada / chegara de Belo Horizonte / pelos últimos comboios / e os versos do poeta municipal / que viúvos traziam entre flores / vinham em aeroplanos / e invadiam os arranha-céus federais” (NETO, 2008, p. 10-11). Não é difícil, na seleção vocabular, rastrear os traços de Lanterna mágica I – Belo Horizonte, Cantiga de viúvo e Política literária, do primeiro livro de Drummond, Alguma poesia (1930). Curiosamente, a mesma atitude de CDA – reverenciar seu mestre na dedicatória da obra de estreia – foi adotada por João. Em Alguma poesia, lê-se “A Mário de Andrade, meu amigo” (ANDRADE, 1988, p. 3). Cabral foi além: situou Drummond no pórtico não apenas do primeiro, mas na abertura de seus três livros iniciais! No terceiro, de 1945, O engenheiro, reaproveitou na totalidade, inclusive, a fórmula drummondiana de 1930: “A Carlos Drummond de Andrade, meu amigo” (p. 42). Na estreia, com Pedra do sono (1942), a dedicatória foi compartilhada com os pais (não nomeados) de Cabral e com Willy Lewin, um dos mentores intelectuais do jovem poeta, ao lado de Joaquim Cardozo. A segunda obra (Os três mal-amados, 1943) não comporta dedicatória, mas Drummond se faz presente na epígrafe, extraída de seu poema Quadrilha: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili” (ANDRADE, 1988, p. 24). O texto, de natureza dramática, desenvolve três monólogos paralelos, para os quais os versos de Quadrilha serviram de mote, mas nas glosas nada se percebe do humor dessentimentalizado do original. Ao contrário, o que se lê são três maneiras de se lidar com a perda amorosa, configurando-se em linguagens diversas: a onírica, de João, num prolongamento da atmosfera surrealista de Pedra do sono; a construtivista, de Raimundo, preparando a futura poesia engenheira de Cabral; e a romântica, de Joaquim, esta, a mais próxima da força destruidora que Drummond empresta à paixão, mesmo com viés irônico – leia-se o Necrológio dos desiludidos do amor.

No mesmo diapasão das desditas de Joaquim, localizam-se, em O engenheiro, os versos de A Carlos Drummond de Andrade: “Não há guarda-chuva / contra o amor / que mastiga e cospe como qualquer boca, / que tritura como um desastre” (p. 55). Após tão intensas e reiteradas homenagens, Drummond desaparece de súbito dos 16 livros subsequentes de Cabral, qualquer que fosse a alternativa: dedicatória, epígrafe, título ou conteúdo de poema. Tal silêncio parece recíproco: na muito extensa obra drummondiana, uma única peça foi dedicada ao (então) amigo: Campo, chinês e sono, de A rosa do povo (1945). Na ocasião, a poesia cabralina já começava a orientar-se para o reino solar, em busca de luz e lucidez. Não se sabe se lhe terá sido agradável ver-se associado à China e ao sono.

Documentos não publicados e atitudes de acolhimento comprovam que, apesar das divergências estéticas, os gestos de amizade prosperavam, ao menos até os primeiros anos da década de 1950. Comprova-o o poema-desabafo, datado de 29/4/43, Difícil ser funcionário: “Difícil, Carlos, / Ser funcionário / Nesta segunda-feira. / Eu te telefono, Carlos, / Pedindo conselho. / (...) / E os arquivos, Carlos, / As caixas de papéis: / Túmulo para todos / Os tamanhos de meu corpo / (...) / Carlos, dessa maneira / Como colher a flor? / Eu te telefono, Carlos, / Pedindo conselho” (p. 654).

No dia 9 de maio de 1948, com o pseudônimo de Policarpo Quaresma Neto, Carlos Drummond de Andrade publica, no suplemento Letras e Artes, uma resenha sobre o livro cabralino Psicologia da composição, de 1947, impresso em Barcelona pelo próprio autor. Resguardado, talvez, pela couraça do pseudônimo, Drummond distribui afagos e desfere ressalvas na mesma proporção. No artigo, intitulado Um poeta hermético, Policarpo considera “rebarbativo”, o título do livro, e afirma que, na tentativa de dominar “a fria natureza da palavra escrita”, Cabral logra êxito “as mais das vezes”. Numa única frase, enlaça endosso e restrição: “Repelindo as pompas e louçainhas do adjetivo, [o autor] atém-se ao recurso elementar da comparação (há uma floresta de ‘como’ no livro)”. A seguir, inverte o processo: formula grave crítica, logo contraposta a uma grande virtude: “E, desinteressado de música, tomba na cacofonia. Mas seus achados não lembram os de nenhum outro poeta brasileiro e são de uma potência extraordinária”. Por fim, enfatiza o hermetismo “desta difícil e admirável poesia”, em consonância com o que já escrevera em carta de 17 de janeiro de 1942: “É certo que sua poesia tem muito hermetismo para o leitor comum, mas v. a faz assim hermética porque não pode fazê-la de outro jeito (...), que se ofereça assim mesmo para o povo” (SÜSSEKIND, 2001, p. 174).

Anos depois, em 1953, um júri, integrado por Drummond, Antonio Candido e Paulo Mendes de Almeida, conferiu a O rio, de João Cabral, o maior prêmio nacional de poesia, o José de Anchieta, no âmbito das comemorações do iminente transcurso do Quarto Centenário de São Paulo. O prêmio, no valor de 100 mil cruzeiros, correspondia na época a 2.500 dólares, no câmbio livre, ou a 3.700, no câmbio para aquisição de passagem aérea. Descontada a inflação em dólar do período, o montante equivaleria, hoje, a cerca de 24 mil dólares.

Cabral adotou para o concurso o pseudônimo de Pedro Abade, escolhido por ter sido esse frade o responsável pela única cópia conhecida do Cantar de Mío Cid, poema de sua enorme admiração. Superou 95 concorrentes, entre eles Ferreira Gullar, que, oculto sob o nome de José Dust, disputou o concurso com A luta corporal, na verdade com um fragmento, apenas, do que viria a ser o grande livro. Em carta a Cyro dos Anjos, de 6 de junho de 1953, Drummond, apesar da premiação, não se furtou a alfinetar o ex-discípulo: “Demos o prêmio (...) a João Cabral de Melo Neto. Foi justo, porque os demais candidatos não produziram coisa melhor, e me pareceu também simpático, dada a situação moral de João, perseguido no Itamaraty. Menos simpática me pareceu a atitude dele diante do prêmio. Deu umas entrevistas um tanto cheias de fumaça, gabando os defeitos do livro, que dizia intencionais” (ANJOS, 2012, p. 160-1). Não disse que o livro era bom: comentou que os outros eram piores, e acrescentou motivo extraliterário para reforçar a escolha. Outro havia sido o discurso do poeta no louvor ao livro imediatamente anterior de Cabral, que igualmente versa sobre o Rio Capibaribe, e é assim referido em crônica no Correio da Manhã de 28 de janeiro de 1951: “E há também o pequeno e secreto e admirável volume de João Cabral de Melo Neto, O cão sem plumas, em que o poeta cria uma expressão sua para cantar o doloroso Capibaribe do seu Recife natal. Vindo de Barcelona, este livrinho tem uma essência de Brasil que muita obra pretensamente nacional não seria capaz de revelar”.

Se Drummond parece não ter-se empolgado com O rio, Cabral, por seu turno, só se encantou efetivamente pela obra poética do antigo mestre até Brejo das almas (1934), vale dizer, pelo Drummond “desconstrutor”, do período modernista, não pelo poeta participante de Sentimento do mundo (1940) e Rosa do povo, e menos ainda pelo poeta que, em Claro enigma, coonesta, numa epígrafe de Paul Valéry, o desinteresse por acontecimentos. A poesia engajada, para Cabral, sofria a nefasta influência de Pablo Neruda, e o peso dessa retórica sufocaria a inventividade e a leveza do primeiro Modernismo. Em Claro enigma, por sua vez, o retorno às formas fixas (em especial ao soneto), aliado à recusa de temas afeitos à vida concreta, levava a um resultado em tudo avesso ao ideário cabralino. Curiosamente, quando João exibiu pendor estetizante (em Pedra do sono, O engenheiro e Psicologia da composição), Carlos mergulhava no social; quando no começo da década de 1950, João voltou-se para a temática social explícita, Carlos tratou de descartá-la, optando por tornar-se um “fazendeiro do ar” e aderindo, a seu modo, à estetização do verso. A consciência desse dissenso pode ser flagrada numa carta de Cabral a um poeta de quem foi amigo a vida inteira: Lêdo Ivo. Convidado, com vistas a uma publicação, a elaborar estudo introdutório de um poeta brasileiro, assim se exprimiu, em missiva londrina de 25 de junho de 1951: “É difícil dizer a quem gostaria de apresentar. Sentimentalmente, Carlos Drummond (embora pouca coisa interessante pudesse dizer sobre ele); tecnicamente, Murilo Mendes; “filosoficamente”, Vinicius ou Manuel Bandeira. Mas nenhuma das coisas que eu poderia fazer teria importância e por isso seria melhor que eu fique de fora. Sinceramente” (IVO, 2007, p. 52). Além de esquivar-se da tarefa, Cabral reduz a uma simples relação “sentimental” o que o vinculava a seu antigo mentor. Se, privadamente, confessa estar mais interessado na técnica de Murilo, em público, porém, continua a afirmar a prevalência do itabirano, como em trecho de entrevista concedida ao Diario de Pernambuco em 25 de outubro de 1953: “O autor brasileiro, realmente, a quem mais devo é Carlos Drummond de Andrade (...) meu poeta preferido”. Os dois caminhos díspares, todavia, não deixaram de se tangenciar tematicamente no período derradeiro de suas respectivas produções, quando ambos, em linguagem bem distinta, voltaram-se ao memorialismo e ao resgate da infância, na trilogia Boitempo, de Drummond, entre 1968 e 1979, e em A escola das facas (1980), de João Cabral. Olhar mais complacente e lírico no primeiro caso, distanciado e crítico no outro.

Afastados, a partir da década de 1950, por seus projetos estéticos divergentes, por algumas estocadas pessoais de parte e outra, e pelo distanciamento geográfico decorrente das missões diplomáticas do poeta pernambucano, deixaram nítido esse progressivo esgarçamento da amizade na correspondência trocada entre 1940 e 1984 – comprovado não por aquilo que foi escrito, mas por tudo que deixou de sê-lo: o clamoroso silêncio, a frieza estampada pós-1953. No total, contabilizam-se 61 documentos epistolares até o ano de 1957; daí em diante, até a morte de Drummond, em 1987, apenas mais um, datado de 23 de abril de 1984! Ainda assim, conforme anota a pesquisadora Flora Süssekind, responsável pela publicação da correspondência, não há comprovação do envio dessa derradeira carta. Seu rascunho consta do acervo de Drummond, mas o documento supostamente expedido não foi localizado no arquivo de Cabral. O larguíssimo período, quase três décadas, do silêncio de ambos é logo evocado (e atenuado): “Meu caro João: Está comigo o exemplar especial do Auto do frade, com sua dedicatória cordial. Recebi-o com alegria, pois quebra um silêncio de muitos anos, para o qual não encontro outra explicação senão... a falta de explicação. Sempre estranhei e lamentei o afastamento a que nos vimos submetidos, e que não foi motivado por qualquer desentendimento ou desavença entre nós. (...) O Auto do frade é uma criação engenhosa, que entrelaça habilmente história e poesia” (SÜSSEKIND, 2001, p. 247). No mesmo diapasão, de negar a ruptura, segue João Cabral, numa entrevista à Folha de S. Paulo, em 22 de maio de 1994: “Não houve afastamento nenhum. O que o pessoal ignora é que desde 47 eu vivi no estrangeiro (...). Eu não sou capaz de escrever carta, mas eu continuei amigo de Carlos até ele morrer”. Em termos... Embora não fosse contumaz missivista, às vezes descuidado no timing da resposta, Cabral escreveu, sim, muitas cartas, algumas delas endereçadas a Drummond, precisamente a partir de 1947. E, decerto, não permaneceram amigos até o fim.

A correspondência revela facetas interessantes, porém pouco aprofundadas, do temperamento de ambos. A começar pelo vocativo na abertura das cartas: algumas vezes “caro”, “prezado”, outras simplesmente “Carlos”, “João”. Numa única ocasião – em 30 de junho de 1948 – Drummond permite-se o arroubo de “João, querido João”. Nas 62 peças do intercâmbio, registram-se três poemas de Cabral, cartões comemorativos, numerosos telegramas ou cartas lacônicas (de até 5 linhas), eventualmente de natureza burocrática – ambos, em áreas diferentes, eram servidores públicos, e desse modo podiam franquear-se pequenos favores recíprocos, ou agir em prol de terceiros. As cartas um pouco mais extensas, de caráter pessoal ou literário, correspondem a cerca de metade do conjunto.


Posse de João Cabral de Melo Neto na Academia Brasileira
de Letras.
Foto: Divulgação

Pode-se dividir o intercâmbio epistolar em três períodos. O primeiro, com 14 cartas, se estende de 22 de fevereiro de 1940 a 15 de novembro de 1942, e corresponde à época em que João ainda morava no Recife. O segundo, que contém três poemas manuscritos (um deles, de 1942), congrega mais 25 cartas, a partir de 10 de março de 1943 a 30 de janeiro de 1947: época em que os dois poetas conviveram no Rio de Janeiro. O terceiro, com 18 cartas, entre 10 de abril de 1947 e 28 de abril de 1984 (esta, o rascunho já referido) se vincula ao período em que João Cabral se encontrava no exterior – salvo duas missivas recifenses, pois o poeta teve de retornar ao país para defender-se no processo de seu afastamento do Itamaraty. No mais, cartas provenientes da Espanha (em maioria) ou da Inglaterra.

No primeiro período, a tônica são os pedidos de ajuda a Carlos, de vária natureza: na divulgação do Congresso de Poesia do Recife; na indicação de nomes que pudessem adquirir um exemplar de luxo de Pedra do sono, para amortizar os custos da tiragem em papel comum; no fornecimento de endereços para a remessa de livro. Na mais longa carta dessa fase pré-carioca, de 22/9/1942, Cabral revela que fez tratamento para recobrar seu equilíbrio psíquico e insinua se o amigo poderia ajudá-lo a conseguir “uma colocação no Rio” (SÜSSEKIND, 2001, p. 181).

No segundo período, a correspondência, forçosamente, vaza-se em forma sintética e de teor predominantemente protocolar, pelo simples fato de que, morando na mesma cidade, e encontrando-se praticamente todos os dias em bares da Cinelândia, não necessitavam recorrer aos serviços do Correio para estabelecerem comunicação mais íntima. Excetua-se desse panorama – et por cause – a carta de 26/6/1944, quando Cabral se encontrava ausente do Rio. De Goiânia, formula uma “profissão de fé”, enfatizando o poder transformador da criação literária: “Eu a uso no outro sentido, o de necessariamente a literatura ser um veículo de alegria, não morbidez. Creio que a função mais importante da literatura não é refletir a miséria que a gente está vendo, e sim dar coragem a esses que se está vendo na miséria. Manejar a melancolia e a morbidez é perigoso porque termina sendo criado um gosto por ela. Esse é um perigo que você é talvez o único autor nosso a saber evitar” (SÜSSEKIND, 2001, p. 206).

No terceiro período, ainda que de forma incidental, revelam-se alguns traços da personalidade cabralina: seu arraigado anticlericalismo e sua simpatia pelo comunismo.

O trauma de sua experiência escolar em colégio marista comparece em mais de um poema de sua obra, e também em depoimentos e entrevistas, num viés irônico, quando não sarcástico. Em carta de 3/6/1947, de Barcelona, registra: “E os mais jovens [poetas] estão entregues à poesia em Cristo e ao inanido ar de sacristia que se respira aqui. Este é impressionante: nunca imaginei que a Igreja brasileira fosse tão ‘católica’, isto é, tão universalmente imbecil. Você não pode calcular a ascendência que têm os padres na vida pública espanhola” (SÜSSEKIND, 2001, p. 221).

Quanto à sua orientação política, informa, em 9/10/1948: “Gostaria de lhe falar de um poema que estou arquitetando e que seria uma espécie de explicação de minha adesão ao comunismo” (SÜSSEKIND, 2001, p. 228). Trata-se, muito provavelmente, do embrião de O cão sem plumas, publicado em 1950. No ano de 1951, de Londres, em 4 de junho, tece, pela última vez, um grande elogio epistolar à arte do amigo e mestre: “Você – e isso já desde alguns anos atrás – chegou àquele ponto invejável num artista, em que é possível transformar tudo em Carlos Drummond de Andrade. Até o Código Civil, se v. o reescrevesse. É a isso que se deveria chamar estilo” (SÜSSEKIND, 2001, p. 238).

Mais tarde, na virada para a década de 1960, Cabral passou a ser entronizado como o grande poeta brasileiro, enquanto, injustamente, parte da crítica, em especial a vinculada à vanguarda concretista, depreciava a produção de Drummond, atacado pelos mesmos nomes que consagravam o afilhado. Também deve ter chegado a seu conhecimento que era ele, Drummond, o poeta ironizado por João Cabral no cáustico e cifrado poema Retrato de escritor, de A educação pela pedra (1966): “Insolúvel: por muito o dissolvente; / igual, nas gotas de um pranto ao lado, / e nas águas do banho que o submerge, / em beatitude, e de que emerge engasto / (...) / mais tarde ele se passa a limpo o que ele se escreveu da dor indonésia / lida no Rio, num telegrama do Egito / (...) / (impresso, e tanto em livro-cisterna / ou jornal-rio, seu diamante é líquido)” (p. 336).

Houve, ainda, outro gesto de aproximação por parte de João Cabral, anterior ao envio de Auto do frade. Encaminhou, com dedicatória, um exemplar de Museu de tudo (1975) a Drummond, que não registrando o recebimento, pôde, assim, dizer que a edição de 1984 quebrava um silêncio de muitos anos, quando, a rigor, Cabral já tinha tentado quebrá-lo com o envio do Museu. Na dedicatória manuscrita, entre amistoso e autoirônico, escreveu o poeta: “A Carlos Drummond de Andrade, seu sempre discípulo (embora mau) João Cabral de Melo Neto” (NETO, 1975, p. 1). Carlos não se limitou ao silêncio: tratou de repassar o volume a outro escritor, assinando a transferência, para deixar claro que se tratava de gesto voluntário de descarte, e não de subtração que algum amigo de livros alheios houvesse porventura efetuado em sua biblioteca, num momento de distração do proprietário.

Em 2012, a FLIP homenageou Carlos Drummond de Andrade. Na ocasião, redigi pequeno texto, que aborda a questão aqui desenvolvida. Intitula-se Quarteto, parodicamente associado à Quadrilha de Drummond, com a inclusão de Mário de Andrade e de Manuel Bandeira. A seguir o transcrevo, à guisa de conclusão.

Mário amava Manuel que amava Carlos que amava João que não amava ninguém.

Mário se correspondia com todos, menos com João. João, com ironia, dizia ostentar orgulhoso troféu: o de único poeta brasileiro a jamais ter recebido uma carta de Mário.

Carlos julgava Manuel o maior, apesar de Manuel proclamar-se poeta menor.

Carlos se afeiçoou a João, que se dizia seu aluno. O primeiro livro de João foi dedicado a Carlos. O segundo, também. Carlos consagrou apenas um pequeno poema a João, mas foi seu padrinho nas primeiras núpcias. Também integrou o júri que em 1954 concedeu a João o mais importante prêmio literário do país.

Manuel, oriundo de Pernambuco, morou a vida quase toda no Rio de Janeiro. O paulistano Mário percorreu bastante o país, mas pouco foi ao exterior. Carlos, de Itabira do Mato Dentro, tampouco apreciava as viagens internacionais; esteve em Buenos Aires, em visita a familiares, e olhe lá. João, recifense e diplomata, correu o mundo: Europa, África, América. Mas, em sua geografia poética, sempre dava um jeito de retornar ao Nordeste e à Espanha. Não gostava do Rio, a contragosto residiu na cidade, bem diferente de Carlos, que não cessava de celebrá-la.

Mário, o arlequim modernista, morreu desgostoso poucos dias depois do Carnaval de 1945, convicto de que sua geração fracassara. Manuel viveu por 82 anos, 5 meses e 26 livros, até ir-se embora para Pasárgada, bem-amado pelo público e pela crítica. Supunha que morreria meio século antes, mas, em país como o nosso, nada chega mesmo na hora prevista. A presença de Manuel foi captada em várias sessões espirituosas nas tendas de Paraty, no ano de 2009. Carlos afastou-se de João: ex-aluno que nunca escreveu um soneto e que detestava temas abstratos, acabou criando outra escola, na qual só permitiu a entrada de bem poucas lições do antigo mestre. João decidiu especializar-se na casa de máquinas do poema. Carlos optou pelas engrenagens da máquina do mundo. As minas de João eram do mais duro minério; a Minas de Carlos, do mais puro mistério.

Mário e Manuel acabaram solteiros. Carlos deixou viúva. E João se casou com os poetas concretos, que não tinham entrado na história (SECCHIN, 2014, p. 41-2).

ANTONIO CARLOS SECCHIN é crítico literário, ensaísta e poeta. Doutor em Letras, é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ocupa, desde 2004, a cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras. Publicou João Cabral: a poesia do menos (1985), Todos os ventos (poemas reunidos, 2002), e Escritos sobre poesia & alguma ficção (2003), entre outros.

Publicidade

veja também

Bruno Moura

O cão sem plumas*

Aline Motta