contribua com o jornalismo de qualidade
Chamam-se griots os contadores de histórias e guardiões das tradições milenares da África Ocidental. Suas áreas de atuação se expandiram para além da oralidade e do continente considerado berço da humanidade. Lúcia dos Prazeres, griô contemporânea, transmite sua sabedoria na rua, na escola e na academia, dedicando-se ao árduo trabalho de resgate histórico e perpetuação dos ensinamentos culturais ancestrais. Seu terceiro livro, Terça negra no Recife: narrativas sobre dança, música, espiritualidade e sagrado, explora as origens e mudanças feitas a partir do projeto que marca as terças-feiras no Pátio de São Pedro, área central do Recife.
O lançamento do livro ocorreu no dia 17 de dezembro, em edição especial da Terça Negra. Enquanto os tambores, vozes e passos fortes ecoavam do Pátio de São Pedro para todo o Bairro de Santo Antônio, Lúcia dos Prazeres era reverenciada por dezenas de pessoas que disputavam um espaço no Núcleo de Cultura Afro-Brasileira, onde ela apresentava ao público o seu livro. A obra dá continuidade não somente ao resgate histórico das tradições afro-brasileiras no Recife, como à luta travada pela autora contra o racismo. O título é resultado da pesquisa no seu mestrado em Ciências das Religiões pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), reunindo histórias de 12 pessoas que moldaram ou tiveram suas vidas moldadas pela noite cultural fundada pelo Movimento Negro Unificado (MNU).
“O trabalho do mestrado foi a Terça Negra por diversos motivos, mas posso dizer que ela é o maior evento criado pelo Movimento Negro Unificado nos 22 estados nos quais ele atua. Ela tem a missão de combater o racismo através da dança e da música. Nesse sentido, fui buscar pessoas para ouvir e poder passar para a frente as suas histórias”, comenta Lúcia dos Prazeres, em entrevista à Continente. Enxergando o projeto para além de um momento de apresentações, colocando-o como espaço no qual as pessoas constroem e reconstroem suas vidas e suas identidades, a pesquisadora buscou vozes de pessoas como Adeildo Araújo, um dos fundadores da Terça Negra, Vera Baroni, militante do movimento negro, Marta Almeida, coordenadora estadual do Movimento Negro e a sacerdotisa de matriz africana Mãe Elza.
A tradição da contação de histórias nasceu em casa, com seus pais. A matriarca Maria da Conceição, diariamente, reunia Lúcia e seus seis irmãos para transmitir ensinamentos, avaliar os acontecimentos do seu dia e interpretar os sonhos da noite anterior. Sentados em um tapete forrado atrás da sua casa no Morro da Conceição, a família chupava a cana cortada pelo pai e contava como havia sido seu dia. Aos 66 anos, a mestra afirma que, ao pensar em felicidade, sempre recorda desses momentos de compartilhamento de história com os familiares.
Lúcia conta, ainda, que a mãe fazia questão desses momentos por temer que os filhos enveredassem pelo roubo ou pela prostituição, orientando-os sempre ao estudo. Dessa forma, todos os filhos conseguiram acesso ao ensino superior. O fato não impediu, porém, que o racismo se manifestasse durante os passos de Lúcia rumo à universidade. Ela conta que, constantemente, encontrava uma vizinha ao sair de casa para estudar. A mulher disparava que não entendia o porquê da insistência na formação educacional, uma vez que, “ninguém precisa estudar para ser empregada doméstica”.
Persistindo no estudo, fez Eletrotécnica, passou no vestibular de Engenharia Civil da Unicap, depois Matemática, na Universidade Federal de Pernambuco e, ainda, iniciou Engenharia Elétrica na Fesp, atual UPE. “Eu era a única mulher e a única negra da sala. O pessoal ia para a janela me ver, tamanha era a minha singularidade nesse espaço. Era quase como uma luta, que durou até o terceiro ano de faculdade, quando eu engravidei. Foi uma surpresa e eu pensei que deveria aprender Pedagogia, pois iria ser mãe. Um grupo de professoras que abriu uma escola me convidou. Lá, eu tomei a decisão de deixar Engenharia, pois a escola me trazia felicidade. Era um alívio, uma coisa maravilhosa, pois criava e inventava livremente”, pontua.
Dessa forma, criou o Centro Maria da Conceição para educar os pequenos da comunidade e, da sua inquietude pela investigação e vontade de passar adiante o seu conhecimento, trouxe as marchas e ritmos dos grupos negros à academia. Terça Negra no Recife: narrativas sobre dança, música, espiritualidade e sagrado surge como ferramenta potencializadora das histórias e conexões criadas a partir da cultura e militância presentes no Pátio de São Pedro. Lúcia descobriu durante sua pesquisa, por exemplo, que a relação do local com a negritude é presente desde antes de o evento cultural sair do Pagode do Didi, local onde foram realizadas as primeiras edições, e passar a ser realizado no popular espaço recifense.
“Desde o século XIX existiam grupos negros que tocavam e cantavam do lado de fora das missas. Fazia-se uma espécie de coreto e eles tocavam um instrumento chamado charamela. Após as cerimônias, eles saíam tocando e foram chamados de charameleiros. Desses grupos surgiram compositores, organizações e músicos que expandiram sua atuação das missas para a cidade. Lá, havia a Casa de Candomblé, ou Casa de Oiá (ou Iansã, nome dado por Xangô para a divindade). Também no Pátio foram realizados encontros de vendedores ambulantes que faziam quermesse e festas de rua com o apoio da Igreja. Esse espaço sempre foi movimentado na questão cultural envolvendo a população negra. Solano Trindade viveu na Rua das Águas Verdes. Ele fazia poemas e peças de teatro contando a vida e a rotina dos ambulantes, tapioqueiras e outras pessoas que faziam parte do Pátio de São Pedro”, explica a pesquisadora.
Já assumindo o posto de escritora, que lhe foi conferido mesmo antes de se entender como uma, Lúcia dos Prazeres já pensa em dar continuidade ao seu processo de aprendizado e ensinamentos: “Quando eu comecei a escrever, surgiu a vontade de fazer doutorado. Vou partir para essa luta no ano que vem. Não por vaidade, mas para mostrar para mim, para meus filhos e para a negrada toda que a gente pode. Quando eu terminei o mestrado no ano passado, muitos se sentiram representados. Quando dou um passo, as pessoas acompanham e se sentem potentes para ocupar esses espaços”.
Ao final da entrevista, após emprestar um pouco do seu conhecimento para esta publicação, Lúcia transmitiu também a sua energia em um abraço. Mandou este repórter respirar junto com ela e assim foi criada uma conexão que não caberia explicar em nenhuma página de revista ou artigo científico, mas que só poderia ser entendida, mesmo que parcialmente, nas páginas dessa obra que reúne pesquisa e espiritualidade.
VICTOR AUGUSTO TENÓRIO é jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiário da Continente.