O repertório evita o caminho fácil das playlists de sucessos. Opta por um recorte da fase de “desassossego amoroso”, quando o fim do relacionamento com Herivelto rendeu uma lavagem de roupa suja pública, em forma de canções pungentes. Tem de Bom dia (“Amanheceu, que surpresa/ Me reservava a tristeza/ Nessa manhã muito fria”) a Tudo acabado (“Todo egoísmo veio de nós dois/ Destruímos hoje o que podia ser depois”), passando pela inevitável Segredo (“Seu mal é comentar o passado/ Ninguém precisa saber/ O que houve entre nós dois”), entre outras não menos cortantes. “Dalva não tinha medo de expor sua vida. Além da afinação precisa e de uma potência vocal assustadora, havia toda essa verdade no que interpretava. Não era apenas uma cantora. Era uma artista”, define Gonzaga.
O show que deu origem ao álbum estreou no intimista Teatro Arraial Ariano Suassuna, com apenas 94 poltronas disponíveis. Um ano depois, milhares de pessoas o aplaudiam a céu aberto – e debaixo de chuva – no Festival de Inverno de Garanhuns. “Quando recebi o convite, pensei logo: vão me vaiar. Não imaginava que a recepção seria tão calorosa. Ali, diante daquela multidão, percebi o quanto a história de Dalva permanece viva. Quem estava naquela praça queria sobretudo ouvir suas canções”, valida o cantor. “Depois da apresentação, Áurea me revelou ter sentido uma das maiores emoções de sua carreira.”
A cantora Áurea Martins. Foto: Felipe Souto Maior/Secult PE-Fundarpe
Artista revelada no início dos anos 1970, no quadro A grande chance do Programa Flávio Cavalcanti, uma espécie de The Voice Brasil da época, Áurea Martins gravou pouquíssimos discos ao longo da carreira, ainda que seu fã-clube conte com nomes como Fernanda Montenegro e Alcione. Gonzaga estava no Rio de Janeiro para uma tarde de autógrafos de seu álbum E o nosso mínimo é prazer, na extinta Modern Sound, que marcou época em Copacabana. No mesmo dia, ela se apresentava no bistrô da loja. Foi paixão à primeira ouvida. “Prometi a mim mesmo que um dia faria algo com ela, fosse um espetáculo ou um disco. Quando comecei a formatar essa homenagem, lembrei de seu nome imediatamente. Era a única voz com autoridade para defender os sambas-canções do repertório de Dalva com precisão. Ela desliza na melodia, faz da letra o que quer, e tudo isso sem cometer nenhuma violação”, acentua.
Em trabalhos anteriores, Gonzaga realizou outros feats, expressão tão popular atualmente para classificar o bom e velho dueto. Vozes que sempre admirou, como as de Marília Medalha e de Marília Barbosa, figuram nas fichas técnicas de vários de seus álbuns. Mas ele não se fecha para os (quase) recém-chegados. “Acho Anitta foda, é uma mulher possuída pela palavra. E Ludmilla é uma supercantora”, cita. Tanto que, em Olhando o céu, viu uma estrela, figuram dois pernambucanos da novíssima geração: Tonfil e Isadora Melo. “Gonzaga sempre teve um carinho muito especial pelo meu trabalho. Me sinto honrada em participar desse projeto, ao lado de um cara que é profundo conhecedor da música brasileira e uma pessoa de muito bom gosto”, sublinha a cantora. Cida Moreira, Roque Neto, Maestro Spok e o ator André Brasileiro completam o time do disco, sob a direção musical de Cacá Barretto e Cláudio Moura.
Filho mais velho de quatro irmãos, Gonzaga Leal foi criado para ser padre. Mas o desejo dos pais durou pouco. Ao trocar o interior pela capital, nos anos 1960, encantou-se pelo mar e pelo mundo descortinado através da televisão. “Foi um assombro”, constata. Largou o seminário e virou calouro do programa Cidade encantada, comandado por Tia Linda na TV Jornal do Commercio. Na década seguinte, começou a cantar na noite, nos áureos tempos da Adega da Mouraria, onde conviveu com nomes como Cauby Peixoto, Luiz Vieira e Emilinha Borba. Até que, nos anos 1980, de passagem pelo Rio, conheceu a psiquiatra Nise da Silveira e seu trabalho revolucionário para a saúde mental à frente do Museu de Imagens do Inconsciente. A cabeça do pernambucano deu um nó. A ponto de deixar a música de lado para estudar Terapia Ocupacional. Durante um bom tempo, dividiu-se entre o Centro de Convivência da Pessoa, equipamento que criou inspirado no trabalho da doutora Nise, e as aulas como professor da UFPE.
Mas a saudade dos palcos sempre existiu. Sentindo-se cansado do serviço público (“os alunos só queriam passar de ano, não se interessavam por nada”), tomou conhecimento de um programa de aposentadoria voluntária e deixou a universidade. Montou o show Pra quem quiser me visitar, que misturava o universo nordestino com o eruditismo de Heitor Villa-Lobos e de Carlos Gomes, com o auxílio luxuoso do violão de Canhoto da Paraíba. Foi um sucesso. Naquele momento, encontrou, enfim, o entusiasmo para encarar a música como missão. Em 2000, gravou O olhar brasileiro de Gonzaga Leal, primeiro título de uma já vasta discografia que prima pelo cuidado na feitura e na escolha do repertório. “Sinto-me orgulhoso desse itinerário. O tamanho do artista que eu quis ser, estou conquistando. E é essa jornada que me autoriza a fazer determinadas coisas. Abordar um repertório complexo como o de Dalva é um exemplo disso. É uma mistura de risco e responsabilidade”, atesta Gonzaga, responsável também por elogiados tributos aos mestres Capiba e Nelson Ferreira.
Cantora moldada pelo rádio que influenciou de Elza Soares a Maria Bethânia, Dalva de Oliveira foi atropelada pela Bossa Nova, Jovem Guarda e Tropicália. Mas em 1970, quando todos esses movimentos já haviam contribuído para a modernização da música brasileira, ela viveu uma surpreendente volta às paradas com Bandeira branca, marcha gravada à moda antiga, com arranjo de orquestra e canto rasgado. Em 30 de agosto de 1972, apenas dois anos depois de experimentar novamente o sucesso, morreu em consequência de um câncer no esôfago.
Com o passar dos anos, seu legado foi transformado em espetáculo teatral (Estrela Dalva, com Marília Pêra), enredo de escolas de samba (entre elas a Imperatriz Leopoldinense, em 1987) e em minissérie de TV (Dalva e Herivelto, uma canção de amor, de 2010, com Adriana Esteves na pele da cantora). Agora, é a vez de Gonzaga Leal reforçar sua importância. “Dalva de Oliveira está para o Brasil como Amália Rodrigues está para Portugal e Edith Piaf, para a França. Elas são da mesma linhagem. Não tenho a menor dúvida”, garante. “Adoraria tê-la conhecido. Acho que nos daríamos muito bem. Temos em comum a forma como nos entregamos à vida, sem pudor.”
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CLEODON COELHO é pernambucano radicado no Rio de Janeiro, jornalista, roteirista e autor de José Pimentel: para além das paixões (Coleção Memória, Cepe Editora), além de outras biografias.