Curtas

Olhando o céu, viu uma estrela

Disco de Áurea Martins e Gonzaga Leal faz uma justa homenagem a Dalva de Oliveira

TEXTO Cleodon Coelho

04 de Dezembro de 2019

O intérprete Gonzaga Leal

O intérprete Gonzaga Leal

Foto Felipe Souto Maior/Secult PE-Fundarpe

[conteúdo na íntegra | ed. 228 | dezembro de 2019]

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Quando o menino Luiz Gonzaga
nasceu, Dalva de Oliveira já era uma estrela consagrada na música brasileira. Separada de Herivelto Martins, com quem viveu um atribulado romance alimentado por escândalos dignos de tabloides ingleses, mãe de dois meninos, dona da faixa de “Rainha do Rádio” e de clássicos como Segredo, Errei sim e Que será, era a voz que todas as novas artistas queriam ter. Ou, pelo menos, imitar. Pelas ondas do rádio, o pequeno Luizinho acompanhava de longe, mais precisamente de Serra Talhada, no sertão pernambucano, a força do canto da artista. Mas a trajetória dos dois só se cruzaria novamente em 2017. Foi quando o ex-seminarista que virou o respeitado cantor Gonzaga Leal montou o espetáculo Olhando o céu, viu uma estrela, dividido com a carioca Áurea Martins, para celebrar o centenário de nascimento de Dalva. Agora, dois anos depois, a homenagem está eternizada em CD e nas plataformas digitais.

O repertório evita o caminho fácil das playlists de sucessos. Opta por um recorte da fase de “desassossego amoroso”, quando o fim do relacionamento com Herivelto rendeu uma lavagem de roupa suja pública, em forma de canções pungentes. Tem de Bom dia (“Amanheceu, que surpresa/ Me reservava a tristeza/ Nessa manhã muito fria”) a Tudo acabado (“Todo egoísmo veio de nós dois/ Destruímos hoje o que podia ser depois”), passando pela inevitável Segredo (“Seu mal é comentar o passado/ Ninguém precisa saber/ O que houve entre nós dois”), entre outras não menos cortantes. “Dalva não tinha medo de expor sua vida. Além da afinação precisa e de uma potência vocal assustadora, havia toda essa verdade no que interpretava. Não era apenas uma cantora. Era uma artista”, define Gonzaga.

O show que deu origem ao álbum estreou no intimista Teatro Arraial Ariano Suassuna, com apenas 94 poltronas disponíveis. Um ano depois, milhares de pessoas o aplaudiam a céu aberto – e debaixo de chuva – no Festival de Inverno de Garanhuns. “Quando recebi o convite, pensei logo: vão me vaiar. Não imaginava que a recepção seria tão calorosa. Ali, diante daquela multidão, percebi o quanto a história de Dalva permanece viva. Quem estava naquela praça queria sobretudo ouvir suas canções”, valida o cantor. “Depois da apresentação, Áurea me revelou ter sentido uma das maiores emoções de sua carreira.”


A cantora Áurea Martins. Foto: Felipe Souto Maior/Secult PE-Fundarpe

Artista revelada no início dos anos 1970, no quadro A grande chance do Programa Flávio Cavalcanti, uma espécie de The Voice Brasil da época, Áurea Martins gravou pouquíssimos discos ao longo da carreira, ainda que seu fã-clube conte com nomes como Fernanda Montenegro e Alcione. Gonzaga estava no Rio de Janeiro para uma tarde de autógrafos de seu álbum E o nosso mínimo é prazer, na extinta Modern Sound, que marcou época em Copacabana. No mesmo dia, ela se apresentava no bistrô da loja. Foi paixão à primeira ouvida. “Prometi a mim mesmo que um dia faria algo com ela, fosse um espetáculo ou um disco. Quando comecei a formatar essa homenagem, lembrei de seu nome imediatamente. Era a única voz com autoridade para defender os sambas-canções do repertório de Dalva com precisão. Ela desliza na melodia, faz da letra o que quer, e tudo isso sem cometer nenhuma violação”, acentua.

Em trabalhos anteriores, Gonzaga realizou outros feats, expressão tão popular atualmente para classificar o bom e velho dueto. Vozes que sempre admirou, como as de Marília Medalha e de Marília Barbosa, figuram nas fichas técnicas de vários de seus álbuns. Mas ele não se fecha para os (quase) recém-chegados. “Acho Anitta foda, é uma mulher possuída pela palavra. E Ludmilla é uma supercantora”, cita. Tanto que, em Olhando o céu, viu uma estrela, figuram dois pernambucanos da novíssima geração: Tonfil e Isadora Melo. “Gonzaga sempre teve um carinho muito especial pelo meu trabalho. Me sinto honrada em participar desse projeto, ao lado de um cara que é profundo conhecedor da música brasileira e uma pessoa de muito bom gosto”, sublinha a cantora. Cida Moreira, Roque Neto, Maestro Spok e o ator André Brasileiro completam o time do disco, sob a direção musical de Cacá Barretto e Cláudio Moura.

Filho mais velho de quatro irmãos, Gonzaga Leal foi criado para ser padre. Mas o desejo dos pais durou pouco. Ao trocar o interior pela capital, nos anos 1960, encantou-se pelo mar e pelo mundo descortinado através da televisão. “Foi um assombro”, constata. Largou o seminário e virou calouro do programa Cidade encantada, comandado por Tia Linda na TV Jornal do Commercio. Na década seguinte, começou a cantar na noite, nos áureos tempos da Adega da Mouraria, onde conviveu com nomes como Cauby Peixoto, Luiz Vieira e Emilinha Borba. Até que, nos anos 1980, de passagem pelo Rio, conheceu a psiquiatra Nise da Silveira e seu trabalho revolucionário para a saúde mental à frente do Museu de Imagens do Inconsciente. A cabeça do pernambucano deu um nó. A ponto de deixar a música de lado para estudar Terapia Ocupacional. Durante um bom tempo, dividiu-se entre o Centro de Convivência da Pessoa, equipamento que criou inspirado no trabalho da doutora Nise, e as aulas como professor da UFPE.

Mas a saudade dos palcos sempre existiu. Sentindo-se cansado do serviço público (“os alunos só queriam passar de ano, não se interessavam por nada”), tomou conhecimento de um programa de aposentadoria voluntária e deixou a universidade. Montou o show Pra quem quiser me visitar, que misturava o universo nordestino com o eruditismo de Heitor Villa-Lobos e de Carlos Gomes, com o auxílio luxuoso do violão de Canhoto da Paraíba. Foi um sucesso. Naquele momento, encontrou, enfim, o entusiasmo para encarar a música como missão. Em 2000, gravou O olhar brasileiro de Gonzaga Leal, primeiro título de uma já vasta discografia que prima pelo cuidado na feitura e na escolha do repertório. “Sinto-me orgulhoso desse itinerário. O tamanho do artista que eu quis ser, estou conquistando. E é essa jornada que me autoriza a fazer determinadas coisas. Abordar um repertório complexo como o de Dalva é um exemplo disso. É uma mistura de risco e responsabilidade”, atesta Gonzaga, responsável também por elogiados tributos aos mestres Capiba e Nelson Ferreira.

Cantora moldada pelo rádio que influenciou de Elza Soares a Maria Bethânia, Dalva de Oliveira foi atropelada pela Bossa Nova, Jovem Guarda e Tropicália. Mas em 1970, quando todos esses movimentos já haviam contribuído para a modernização da música brasileira, ela viveu uma surpreendente volta às paradas com Bandeira branca, marcha gravada à moda antiga, com arranjo de orquestra e canto rasgado. Em 30 de agosto de 1972, apenas dois anos depois de experimentar novamente o sucesso, morreu em consequência de um câncer no esôfago.

Com o passar dos anos, seu legado foi transformado em espetáculo teatral (Estrela Dalva, com Marília Pêra), enredo de escolas de samba (entre elas a Imperatriz Leopoldinense, em 1987) e em minissérie de TV (Dalva e Herivelto, uma canção de amor, de 2010, com Adriana Esteves na pele da cantora). Agora, é a vez de Gonzaga Leal reforçar sua importância. “Dalva de Oliveira está para o Brasil como Amália Rodrigues está para Portugal e Edith Piaf, para a França. Elas são da mesma linhagem. Não tenho a menor dúvida”, garante. “Adoraria tê-la conhecido. Acho que nos daríamos muito bem. Temos em comum a forma como nos entregamos à vida, sem pudor.”


Extras:

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CLEODON COELHO é pernambucano radicado no Rio de Janeiro, jornalista, roteirista e autor de José Pimentel: para além das paixões (Coleção Memória, Cepe Editora), além de outras biografias.

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