Resenha

Fora das roupas, dentro das almas

'Uma história da tatuagem no Brasil' traz relatos em torno das ilustrações que colocamos na nossa pele

TEXTO RENATO LINS

04 de Dezembro de 2019

Tatuagens feitas nos braços em circunstâncias diversas, como dentro de um cruzador e na prisão, na década de 1930

Tatuagens feitas nos braços em circunstâncias diversas, como dentro de um cruzador e na prisão, na década de 1930

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 228 | dezembro de 2019]

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Uma história
da tatuagem no Brasil, livro da historiadora paulista Silvana Jeha, publicado pela Veneta, é trabalho importante para todos os que se interessam pela arte da tatuagem. Com variado acervo de imagens e baseado em um rigoroso trabalho de pesquisa, além de dotado de um texto, às vezes, de qualidade quase poética, nasce com o status de obra de referência no seu campo de pesquisa. Mas o livro vai além: ao mapear os caminhos da tatuagem nos tristes trópicos, traça também as coordenadas do cotidiano de sua gente, em especial das putas, escravos, marinheiros, presos e outros marginalizados na vida e na História, desprovidos de tanto, mas orgulhosos das marcas na pele.

Com tema tão vasto, Uma história da tatuagem no Brasil não pode escapar aos recortes temporais e do universo de pesquisa. Silvana Jeha concentra sua atenção no período entre o século XIX – quando se amplia, nos documentos oficiais e na imprensa, o registro das marcas nos corpos de prisioneiros e escravos – até meados dos anos 1970, início do boom da tatuagem, que dura até hoje. Da diversificada população brasileira, ficam de fora os povos que aqui habitavam antes da chegada europeia. A historiadora explica assim a ausência: “Como nas chamadas religiões afro-brasileiras, eu os considero os donos da casa. É preciso pedir licença. A tatuagem indígena merece um livro à parte, com a participação dos que ainda se tatuam”.

Esse, também, é um livro sobre a tatuagem urbana: nas cidades portuárias e capitais do Império e da nascente República, centros da vida econômica, política e administrativa, consolida-se o aparato estatal responsável por catalogar as marcas nos corpos de seus administrados. Mecanismo de controle foucaultiano, os registros das tatuagens servem para monitorar e estigmatizar as populações trabalhadoras e marginalizadas. Surgem, assim, acervos como o do Museu Penitenciário Paulista, em São Paulo, com milhares de fotografias de tatuagens das décadas de 1920 e 1930, considerado por Silvana Jeha “a carne, o sangue e a pele deste livro”.


Sofro sorrindo, frase tatuada no braço da pernambucana Marluce.
Imagem: Paulo Melo Jr./Reprodução

É pelos portos que chegam os milhões de africanos escravizados. Muitos trazem consigo as tatuagens/escarificações que sinalizam as identidades religiosas, territoriais ou étnicas de origem, junto com aquelas impostas a ferro e fogo como selo de propriedade pelos vários donos entre o aprisionamento e o destino no engenho ou na fazenda de café. Aqui, outras poderão ser acrescentadas: as que representam as “nações” a que pertencem no novo solo, relacionadas à zona de embarque para a travessia do Atlântico, e as que sofrem como castigo (verdadeiras mutilações) por tentativas de fuga e demais rebeldias.

Silvana Jeha trata a zona portuária como locus privilegiado da difusão da tatuagem no Brasil. Nos bordéis, armazéns, pensões, escritórios comerciais e botequins, os escravos fugidos ou libertos encontram trabalho e refúgio. Aí se misturam com outros segmentos marginalizados – incluindo aquele decisivo para a história da tatuagem: os marinheiros. São eles que, a partir do Mediterrâneo, espalham a versão ocidental dessa arte pelos sete mares. Um deles, o capitão inglês James Cook, em 1708, é o primeiro a usar, em um relato, a palavra tattow, derivada do termo taitiano tatau, empregado para designar as marcas na pele feitas com objetos cortantes ou pigmentos. No decorrer do século XIX, a derivação inglesa ganha popularidade e passa a nomear essa prática, cujo início se perde no tempo.

De porto em porto, os marinheiros ostentam suas tatuagens. Divulgam, também, as maneiras de fazê-las: com apetrechos cortantes como agulhas, espinhos ou cacos de vidro e com fuligem, graxa, nanquim, anil, tinta azul e outros materiais passíveis de serem usados para pigmentar. Arte que se profissionalizou há pouco no mundo, a tatuagem durante muito tempo depende, em larga medida, do trabalho amador desses marítimos. No cais cosmopolita, frequentado por gente de todo o mundo, eles espalham (e recebem) como um vírus a mania da tatuagem. Daí porque Silvana Jeha prefere falar de uma história da tatuagem no Brasil e não apenas daquela feita pelos brasileiros.


Os três riscos no rosto seriam marca nagô e as três protuberâncias
acima deles, possivelmente, jeje. Imagem: Reprodução

Se era através do corpo dos escravos, marinheiros e demais frequentadores da zona portuária que o restante da população tomava conhecimento da existência das tatuagens, a situação começa a mudar com o surgimento da imprensa. No início, restrita aos anúncios de capturas de escravos fugidos como sinais de reconhecimento, a tatuagem migra para as páginas policiais, com direito a fotos e ilustrações, e para as crônicas de jornalistas e escritores como João do Rio, fino observador das transformações cariocas dos primórdios do século XX. Silvana Jeha retira farto material dos periódicos e das crônicas e contos assinados por mestres como Machado de Assis, Mário de Andrade e, mais tarde, Plínio Marcos. Seu trabalho de garimpagem se estende, também, à música, com citações de canções de Nelson Cavaquinho (tatuado no ombro com o nome de Lígia, uma de suas paixões), Chico Buarque, Rincon Sapiência e Elza Soares.

Trabalhadas com a mesma atenção ao detalhe do material encontrado nos arquivos estatais oficiais e semioficiais, essas fontes permitem a Uma história da tatuagem no Brasil tanto ampliar seu foco para as transformações mais gerais da sociedade quanto reduzi-lo, para centrar atenção nas particularidades iluminadoras das vidas de tatuados e tatuadores.

Cada capítulo se encerra com uma coleção de relatos que, parecem, às vezes, saídos de um romance de aventuras ou dos quadrinhos de Corto Maltese. Como o de Tatoo Lucky, codinome do dinamarquês Knud Gregersen, lendário tatuador do Porto de Santos, que, após percorrer a pé vários países da Europa, embarca para o norte da África e atravessa o Atlântico rumo a América do Sul. Ou, em tom mais trágico, o da prostituta pernambucana Marluce, que trabalhou no Bairro do Recife na década de 1970, tatuada com um lema de comovedora singeleza: “sofro sorrindo”. Ao qual acrescentou as iniciais “RR” – de Roger de Renor, o ativista cultural da Soparia e de O Som da Rural, seu amigo nos anos finais de vida.

E o que leva toda essa gente a se tatuar? Cada motivo traz consigo um conjunto diferenciado de símbolos. Há os que buscam proteção. Caso daqueles que estampam nas costas imagens de Jesus Cristo para amenizar a dureza da mão do carrasco na hora do castigo. Há os que buscam perpetuar o amor que ficou para trás no porto estrangeiro ou no passado. São os que escrevem na pele o nome do amante perdido. Há, também, os que exibem com orgulho o símbolo de seu país ou do partido político de escolha, sem temer as consequências. E há, ainda, quem queira simplesmente seduzir, erotizando seu corpo com um símbolo insinuante.


Capa do livro, editado pela Veneta. Imagem: Divulgação

Como destaca Silvana Jeha, recuperando um conceito talhado por Roland Barthes, “as tatuagens são biografemas, e o que se infere a partir de seus registros são lembranças, amores, ficções, verdades, cacos das vidas para compor esse grande mosaico de corpo humano feito de carne, pele, picadas, cortes, pigmentos e muito sentimento”.

Certa vez o medievalista francês George Duby disse que, “diante da história seca, fria, impassível”, preferia “a história apaixonada. Me parece que é mais verdadeira”. Silvana Jeha seguiu essa predileção e escreveu um grande livro.

Renato Lins, jornalista e DJ.

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