contribua com o jornalismo de qualidade Uma história da tatuagem no Brasil, livro da historiadora paulista Silvana Jeha, publicado pela Veneta, é trabalho importante para todos os que se interessam pela arte da tatuagem. Com variado acervo de imagens e baseado em um rigoroso trabalho de pesquisa, além de dotado de um texto, às vezes, de qualidade quase poética, nasce com o status de obra de referência no seu campo de pesquisa. Mas o livro vai além: ao mapear os caminhos da tatuagem nos tristes trópicos, traça também as coordenadas do cotidiano de sua gente, em especial das putas, escravos, marinheiros, presos e outros marginalizados na vida e na História, desprovidos de tanto, mas orgulhosos das marcas na pele.
Com tema tão vasto, Uma história da tatuagem no Brasil não pode escapar aos recortes temporais e do universo de pesquisa. Silvana Jeha concentra sua atenção no período entre o século XIX – quando se amplia, nos documentos oficiais e na imprensa, o registro das marcas nos corpos de prisioneiros e escravos – até meados dos anos 1970, início do boom da tatuagem, que dura até hoje. Da diversificada população brasileira, ficam de fora os povos que aqui habitavam antes da chegada europeia. A historiadora explica assim a ausência: “Como nas chamadas religiões afro-brasileiras, eu os considero os donos da casa. É preciso pedir licença. A tatuagem indígena merece um livro à parte, com a participação dos que ainda se tatuam”.
Esse, também, é um livro sobre a tatuagem urbana: nas cidades portuárias e capitais do Império e da nascente República, centros da vida econômica, política e administrativa, consolida-se o aparato estatal responsável por catalogar as marcas nos corpos de seus administrados. Mecanismo de controle foucaultiano, os registros das tatuagens servem para monitorar e estigmatizar as populações trabalhadoras e marginalizadas. Surgem, assim, acervos como o do Museu Penitenciário Paulista, em São Paulo, com milhares de fotografias de tatuagens das décadas de 1920 e 1930, considerado por Silvana Jeha “a carne, o sangue e a pele deste livro”.
Sofro sorrindo, frase tatuada no braço da pernambucana Marluce. Imagem: Paulo Melo Jr./Reprodução
É pelos portos que chegam os milhões de africanos escravizados. Muitos trazem consigo as tatuagens/escarificações que sinalizam as identidades religiosas, territoriais ou étnicas de origem, junto com aquelas impostas a ferro e fogo como selo de propriedade pelos vários donos entre o aprisionamento e o destino no engenho ou na fazenda de café. Aqui, outras poderão ser acrescentadas: as que representam as “nações” a que pertencem no novo solo, relacionadas à zona de embarque para a travessia do Atlântico, e as que sofrem como castigo (verdadeiras mutilações) por tentativas de fuga e demais rebeldias.
Silvana Jeha trata a zona portuária como locus privilegiado da difusão da tatuagem no Brasil. Nos bordéis, armazéns, pensões, escritórios comerciais e botequins, os escravos fugidos ou libertos encontram trabalho e refúgio. Aí se misturam com outros segmentos marginalizados – incluindo aquele decisivo para a história da tatuagem: os marinheiros. São eles que, a partir do Mediterrâneo, espalham a versão ocidental dessa arte pelos sete mares. Um deles, o capitão inglês James Cook, em 1708, é o primeiro a usar, em um relato, a palavra tattow, derivada do termo taitiano tatau, empregado para designar as marcas na pele feitas com objetos cortantes ou pigmentos. No decorrer do século XIX, a derivação inglesa ganha popularidade e passa a nomear essa prática, cujo início se perde no tempo.
De porto em porto, os marinheiros ostentam suas tatuagens. Divulgam, também, as maneiras de fazê-las: com apetrechos cortantes como agulhas, espinhos ou cacos de vidro e com fuligem, graxa, nanquim, anil, tinta azul e outros materiais passíveis de serem usados para pigmentar. Arte que se profissionalizou há pouco no mundo, a tatuagem durante muito tempo depende, em larga medida, do trabalho amador desses marítimos. No cais cosmopolita, frequentado por gente de todo o mundo, eles espalham (e recebem) como um vírus a mania da tatuagem. Daí porque Silvana Jeha prefere falar de uma história da tatuagem no Brasil e não apenas daquela feita pelos brasileiros.
Os três riscos no rosto seriam marca nagô e as três protuberâncias acima deles, possivelmente, jeje. Imagem: Reprodução
Se era através do corpo dos escravos, marinheiros e demais frequentadores da zona portuária que o restante da população tomava conhecimento da existência das tatuagens, a situação começa a mudar com o surgimento da imprensa. No início, restrita aos anúncios de capturas de escravos fugidos como sinais de reconhecimento, a tatuagem migra para as páginas policiais, com direito a fotos e ilustrações, e para as crônicas de jornalistas e escritores como João do Rio, fino observador das transformações cariocas dos primórdios do século XX. Silvana Jeha retira farto material dos periódicos e das crônicas e contos assinados por mestres como Machado de Assis, Mário de Andrade e, mais tarde, Plínio Marcos. Seu trabalho de garimpagem se estende, também, à música, com citações de canções de Nelson Cavaquinho (tatuado no ombro com o nome de Lígia, uma de suas paixões), Chico Buarque, Rincon Sapiência e Elza Soares.
Trabalhadas com a mesma atenção ao detalhe do material encontrado nos arquivos estatais oficiais e semioficiais, essas fontes permitem a Uma história da tatuagem no Brasil tanto ampliar seu foco para as transformações mais gerais da sociedade quanto reduzi-lo, para centrar atenção nas particularidades iluminadoras das vidas de tatuados e tatuadores.
Cada capítulo se encerra com uma coleção de relatos que, parecem, às vezes, saídos de um romance de aventuras ou dos quadrinhos de Corto Maltese. Como o de Tatoo Lucky, codinome do dinamarquês Knud Gregersen, lendário tatuador do Porto de Santos, que, após percorrer a pé vários países da Europa, embarca para o norte da África e atravessa o Atlântico rumo a América do Sul. Ou, em tom mais trágico, o da prostituta pernambucana Marluce, que trabalhou no Bairro do Recife na década de 1970, tatuada com um lema de comovedora singeleza: “sofro sorrindo”. Ao qual acrescentou as iniciais “RR” – de Roger de Renor, o ativista cultural da Soparia e de O Som da Rural, seu amigo nos anos finais de vida.
E o que leva toda essa gente a se tatuar? Cada motivo traz consigo um conjunto diferenciado de símbolos. Há os que buscam proteção. Caso daqueles que estampam nas costas imagens de Jesus Cristo para amenizar a dureza da mão do carrasco na hora do castigo. Há os que buscam perpetuar o amor que ficou para trás no porto estrangeiro ou no passado. São os que escrevem na pele o nome do amante perdido. Há, também, os que exibem com orgulho o símbolo de seu país ou do partido político de escolha, sem temer as consequências. E há, ainda, quem queira simplesmente seduzir, erotizando seu corpo com um símbolo insinuante.
Capa do livro, editado pela Veneta. Imagem: Divulgação
Como destaca Silvana Jeha, recuperando um conceito talhado por Roland Barthes, “as tatuagens são biografemas, e o que se infere a partir de seus registros são lembranças, amores, ficções, verdades, cacos das vidas para compor esse grande mosaico de corpo humano feito de carne, pele, picadas, cortes, pigmentos e muito sentimento”.
Certa vez o medievalista francês George Duby disse que, “diante da história seca, fria, impassível”, preferia “a história apaixonada. Me parece que é mais verdadeira”. Silvana Jeha seguiu essa predileção e escreveu um grande livro.