Lançamento

As pequenas narrativas

Leia algumas crônicas do livro 'A primeira vez – Crônicas + 101 diálogos improváveis', de Joca Souza Leão, lançado pela Cepe Editora

TEXTO Joca Souza Leão

06 de Novembro de 2019

Imagem Ricardo Melo

[conteúdo na íntegra | ed. 227 | novembro de 2019]

contribua com o jornalismo de qualidade

BARBAS DE MOLHO

Anos 1960/1970. Jovens de classe média, estudantes, simpatizantes e militantes de esquerda; uns com pretensão intelectual, outros com vocação. Calça jeans, camiseta, cabelo grande e a barba possível. Quem tinha barba fechada (“barba de santo bom, como São Pedro” – dizia-se), melhor; quem tinha barba rala (“barba de santo safado”), como a minha, azar.

Mas eis que, de uns tempos pra cá, encontro cada vez menos barbados da minha geração por aí. Os sessentões e setentinhas estão quase todos de cara limpa, tão lisinhas quanto bunda de menino novo. E algumas barbas, portentosas naquele tempo, foram reduzidas a pequenos cavanhaques.

Anos 1980. O Brasil saindo da ditadura militar. Os passaportes brasileiros ainda tinham um baita carimbo na primeira página: “Não é válido para Cuba”. Roberto d'Ávila pauta Fidel Castro para o Conexão Internacional, da extinta TV Manchete. (Tô dizendo essas coisas para que os jovens leitores entendam o tamanho da encrenca). O d’Ávila havia sido o primeiro repórter a entrevistar, para a televisão, Arraes, Brizola, Prestes, Darcy, Boal e outros brasileiros quando ainda viviam no exílio. Dessa vez, convoca um exército do bem para ajudá-lo na empreitada. Políticos, artistas e intelectuais. Todos amigos de Fidel. De Gabriel García Márquez a Chico Buarque. Até que consegue marcar a entrevista.

Aos poucos, o entrevistado vai cedendo ao tom ameno de uma boa conversa. D’Ávila pergunta-lhe por que alguns ex-combatentes não ostentavam mais suas barbas. “Motivos ideológicos?” Fidel ri. Diz que na Sierra Maestra não havia barbearia nem onde comprar navalha. Durante a luta, passaram a ser chamados los barbudos. Vitoriosos, a barba se tornou símbolo da revolução. Sugere que a preserva também porque “se perde muito tempo, cerca de 15 minutos por dia, para fazer a barba, o que representa muitas horas desperdiçadas ao longo da vida”.

Mas reconhece que há um inconveniente: los pelos de la barba son los primeros en volverse blancos.

Velhice. Taí, caro leitor, porque muita gente da minha, diga-se, brava geração cedeu nos últimos tempos às caras lisas e aos pequenos cavanhaques.

Eu, inclusive.


Ernesto Che Guevara e Fidel Castro. Foto: Reprodução

BUNDA PRA CIMA, NÃO
Taí uma coisa que você nunca vai ouvir um coroa dizendo que os de antigamente eram melhores do que os de hoje: tira-gosto de bar.

Nos anos 1950/1960, no Bar Savoy – o do poema de Carlos Pena Filho (“são trinta copos de chope, são trinta homens sentados...”) – tira-gosto era ovo cozido (com sal, num pires, pro freguês, após tirar a casca, salgar) e coxinha (enfadada, seca, por vezes dormida). Lembro vagamente de um sanduíche de pernil. Mas, quem tinha coragem? Carne de porco sem refrigeração? O diabo é que comia. Talvez tivesse queijo prato e presunto em cubinhos, no palito. Não lembro. (Cartas à redação.)

Se o local fosse bar e restaurante, havia a chance de sair um filezinho ao palito com fritas (pelo preço do filé servido como refeição) e frango à passarinho.

Caldinho de feijão foi uma grande novidade. (Acho até que foi inventado aqui no Recife nos anos 1960. A pesquisar). Não tinha em todo canto e quando tinha não era todo dia. Só o caldinho. Sem charque, paio, torresmo, nada. Servido em xícara de café pequeno. “Dentro do Recife” – como era chamado o bairro antigamente – uma barraca servia em xicrinha de plástico de casa de boneca; o caldinho ganhou fama, fazia fila na rua, acho que Alfredo Lisboa.

Um dia, Vinte e Oito (que ganhou o apelido porque fora, no passado, o guarda nº 28 do Porto) apareceu com uma novidade no Bar Chip Shandler: uma sanduicheira elétrica doméstica. Demorava a esquentar e só fazia um sanduíche por vez. Pão francês e queijo do reino. Sucesso absoluto. E estava inventado o que agora chamam Tostex.

Em boteco de subúrbio e barraca de cachaça, tira-gosto era caju, umbu, cajá, charque crua e passarinha (baço de boi salgado). A gente ia a um restaurante popular e pedia, pra dividir como tira-gosto, rabada, sarapatel ou dobradinha.

Hoje, o bar é uma festa. Os tira-gostos são servidos em espetos, quando grelhados, e tabuleiros. Casquinho de Dona Margarida, coxinha e coxão; empada de camarão, palmito e queijo do reino, pastel, bolinho de bacalhau, quibe e agulha frita... tudo quentinho, feito na hora. Nos espetos, recém-saídos da brasa, codorna, galeto, costela, picanha, linguiça de frango, porco e bode... tudo com farofa e vinagrete no capricho. Caldinho? Feijão, camarão, peixe, sururu... até de rabada e cozido.

Olho na balança, freguês, pra não engordar, e olho no bolso pra não gastar demais. Que é tudo bom, é. E que é caro, também.

Só tem um porém. O garçom traz a empada ainda na fôrma, quentinha, dourada, com uma cara ótima. Na hora de servir, desenforma com habilidade, segurando a fôrma quente com duas colheres e dando umas batidinhas para soltar. Mas, na hora de servir, serve a empada emborcada. Seria o mesmo, leitor, que servir pizza com o queijo pra baixo.

– Seu garçom, uma empada! Mas, por favor, de cara pra cima e bunda pra baixo.



POR UMA PEINHA DE NADA
Como você e todo mundo, caro leitor, eu também sei pouco, muito pouco, sobre a Islândia. Mas, por algum motivo, não sei qual, sabia-lhe a capital e, até mesmo, como se escreve: Reykjavík.

Dessa Islândia de ouvir-dizer, fiquei sabendo um pouco mais com a transmissão da televisão portuguesa do jogo da Eurocopa, em que os islandeses bateram os ingleses por 2 a 1.

“A Islândia tem pouco mais de 300 mil habitantes e cerca de dez por cento deles, 30 mil, estão aqui em Nice, na França, dando um verdadeiro show de alegria e civilidade, torcendo por sua boa, ótima seleção”, dizia o speaker, num jogo que narrava sem nenhuma imparcialidade, mas declarada torcida. E quem nas arquibancadas não torcia pela Islândia? No final, até os ingleses.

No intervalo, a TV portuguesa exibiu um pequeno documentário sobre a Islândia. Cidades e vilarejos com casinhas seculares, sem prédios, sem congestionamentos e sem poluição, grandes parques e lagos. E você, caro leitor, não imagina como são feias as lourinhas islandesas.

“Aqui, havia uma cadeia pública. Fecharam-na por falta de presos. Não há desempregados nem desabrigados na Islândia. Todos têm direito à educação e à saúde pública plena e universal. É o país com o maior índice de felicidade do mundo” – disse com convicção o narrador do documentário.

Bem, não é novidade pra ninguém que o futebol por aqui, no Brasil, aí pelo meio do ano, ia de mal a pior. A gente já tinha até esquecido o 7 a 1 da Alemanha em 2014, o Mineiratzen. Mas, e a era Dunga? Dunga não dava pra esquecer, né? Ele não deixava. Falava.

Como eu não tinha como trocar Dunga, cogitei, confesso, trocar de time. Sempre achei essa história de “pátria de chuteiras” uma das invencionices geniais de Nelson Rodrigues. (Patriotada. E não patriotismo. Patriotismo é saúde pública e educação.) Na Copa, meu time era o Brasil. Agora, pensei, será a Islândia, porque ela tá dando show de bola dentro e fora dos gramados.

Escrevi ao primeiro-ministro da Islândia. Expliquei a situação e pedi autorização para torcer oficialmente pela seleção deles, mesmo que ela não viesse a ser classificada para a Copa de 2018. “Torcerei na Eurocopa e nos jogos amistosos.”

Sua Excelência foi diligente e gentil. Agradeceu. Mas dispensou minha torcida. Nórdico, mas também político, disse que era fã do futebol brasileiro. Citou Pelé e Neymar. E, em bom e claro íslenska, recomendou-me paciência. E vaticinou: “Dunga vai passar”.

Não é que passou? E eu quase viro a casaca. Foi por uma peinha de nada.

JANELAS NO OITÃO
A borboleta amarela, na crônica de Rubem Braga, voou para o oitão da Biblioteca Nacional. “Oitão, uma bonita palavra. Usa-se muito no Recife; lá, todo mundo diz: no oitão da igreja, no oitão do Teatro Santa Isabel... Aqui (no Rio) a gente diz do lado. Dá no mesmo, porém oitão é mais bonito.” E precisa mais? Se precisasse, eu diria, além de mais bonito, é mais preciso.

Mas oitão também é o espaço entre duas casas. Nem todas têm oitão. Algumas são geminadas (parede-meia), coladas umas às outras, como a maioria das casas antigas do Recife e Olinda.

Há casas com um oitão e casas com dois oitões. Sempre, o da direita, à direita de quem olha para a casa, mais largo, é passagem de carro para a garagem que fica no quintal. E também passagem para os visitantes que têm intimidade com o dono ou a dona da casa: “Ele entra pela porta da cozinha”. Os que não têm intimidade são, diz-se, de cerimônia. Se anunciam, batem palma ou tocam a campainha, e entram pela porta da frente. Até pouco tempo, pelo menos, era assim.

Aqui (não sei se no resto do Nordeste) e em Portugal ainda se fala oitão. Não fala tanto, mas fala. Quem mora em apartamento, mesmo, não chama o espaço entre um edifício e outro de oitão. Chama de área. Mas, se for explicar a alguém onde fica a Rua Direita, ensinará, certamente, que fica no oitão da Igreja do Livramento. Ou não?

Rio de Janeiro, inverno, anos 1970. Peguei um táxi no Leme. “Botafogo, por favor.” Para facilitar a vida do motorista, um português de meia-idade, bigode eciano – vasto e levemente arqueado nas pontas –, disse-lhe, além do endereço, uma referência: “Essa rua fica no oitão da Mesbla.” “És patrício?” “Não. Pernambucano.” “Primeira vez que estou a ouvir um brasileiro a falar oitão, ó pá!” Bem, o fato é que a rua, meio escondida e pouco conhecida, foi facilmente localizada pelo portuga.

Terraço do apartamento da escritora Dayse Mayer. Ivanildo Sampaio no seu vinho e eu no meu uisquinho de sempre. Paula Costa e Silva, portuguesa, professora de Direito e colega da anfitriã na Universidade de Lisboa, tomando um vinho do Porto vintage. Na conversa, não lembro mais sobre o quê, falei oitão. “Não ouço a palavra oitão há anos” – disse Paula. “Algumas palavras, que ainda são usadas cá no Recife, estão a cair em desuso em Portugal.” E citou algumas, das quais lembro de duas, além de oitão: alcatifa (que tá virando ou já virou carpete) e encarnado (o “encarnado, preto e branco” do meu tricolor; que para os alvirrubros e rubro-negros é vermelho).

Por amostração, como dizem meus netos, recitei para Paula (ainda não disse que era bonita a rapariga, ó pá!) versos de Mauro Mota:

Ó velhos chalés de 1830, / eterniza-se entre as paredes o eco das vozes de invisíveis habitantes. / Mãos de sombras femininas abrem de leve janelas no oitão.

UMA CRÔNICA AMENA
Pensei. Amanhã, vou escrever uma crônica amena. Acordo cedo, dou uma espiada nos jornais e, quem sabe, numa notícia ou notinha, numa “coisa miúda”, sem importância, encontro um assunto. Sento e escrevo. Falo à fresca. Sem engomar os verbos. Com um pé na rua. Afinal, a crônica é menos o que se conta; mais, muito mais o jeito que se conta.

Mas, tá difícil escrever amenidades no Brasil. E tá difícil escrever porque tá difícil encontrar coisa amena nos jornais. E nos noticiários de rádio e TV, então nem pensar!

“Os jornais publicaram uma longa lista de nomes de homens e mulheres – principalmente mulheres – que se dedicam à prática da quiromancia, da cartomancia e do sonambulismo. (...) A polícia, depois de organizar o catálogo estatístico dessa gente, vai persegui-la sem piedade.” Olavo Bilac. Na crônica, Bilac espana o Parnasianismo, a linguagem rebuscada e o vocabulário culto. Inspiração? Notícia de jornal. E assume a defesa das cartomantes. “O que a polícia vai fazer é pôr a sua mão imprudente numa tradição multissecular, numa eterna e indestrutível mentira, criada pelo medo ou pela curiosidade dos primeiros homens e sustentada pela irremediável tolice de todos os outros que lhe sucederam.”

E que tal José de Alencar? Escreveu sobre a máquina de costura (“Máquinas de coser”). Longa crônica. E, lá pras tantas, nos conta Zé de Alencar que, “já no Paraíso, Eva criara, com as folhas da figueira, diversas modas, que infelizmente caíram em completo desuso.” Infelizmente, Zé? Precárias folhinhas de figueira, né? E há quem pense que você, nosso romântico maior, só pensava em lábios de mel.

Machado de Assis disse que não sabia dizer em que ano, mas que havia toda a probabilidade de a crônica ter nascido com duas velhinhas. “Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia.” Conversa vai, conversa vem, e as duas passaram a falar “do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.”

Bons tempos. Polícia e jornais se ocupando com cartomantes. E vizinhas fofocando à porta de casa.

Quem nos dera!

GORDO, GORDINHO, GORDÃO
José Almino Alencar perguntou a João Cabral de Melo Neto se alguém já anotara quantas vezes ele usou a palavra guenzo em seus poemas. “A minha primeira mulher não sabia o que era guenzo. Aliás, a minha segunda mulher também não sabe o que é guenzo.” E, com um riso maroto, João concluiu: “E eu sou guenzo”.

Quando menino, chamei e ouvi chamarem muito magrelo de guenzo. Sem ofensa. Tanto que não lembro de guenzo ofendido. Mas, faz tempo, não ouço ninguém chamar alguém de guenzo.

Perguntei aos meus filhos João e Joana se sabiam o que era guenzo. Sabiam. “Muito magro, seco, meio curvo de tão magro...”. Mas meus netos Maria Júlia e Pedro, doze e nove anos, não sabiam. Nunca ouviram falar.

Regionalismo nordestino, dizem alguns dicionários. Mas, atribuem magreza à doença. Nada a ver. Pelo menos pra gente daqui, do Recife. (Segundo o historiador Felipe Alencastro, palavra de origem africana, do kimbundo.)

João Cabral “se autoqualifica de menino guenzo que ouvia (...) relatos sobre o interior e o sertão”, anotou Zé Almino. E lhe cita estes versos: (...) menino sem relevo, / em que algo se notava/ era seu tímido guenzo, / seu contemplativo longo, / seu mais livro que brinquedo / (...) lhe dando o Sertão, seu osso, / deu-lhe o gosto do esqueleto.

A conversa com João Cabral e o livro Gordos e magros, no qual José Lins do Rego usou esses adjetivos para caracterizar e diferenciar escritores, renderam a Zé Almino uma crônica e, agora, o título do seu novo livro: Gordos, magros e guenzos.

Se Guimarães Rosa, diz Zé, é um “escritor que não recua diante das repetições, das adjetivações, sem, contudo, jamais ‘jogar palavra fora’, (...) seu contemporâneo Graciliano Ramos evita os qualificativos, fixa-se na descrição seca dos personagens e contextos (...). Definitivamente, um escritor magro”.

Já Gilberto Freyre, segundo Zé, “é um escritor gordo por excelência”. Em Sobrados e mocambos, Gilberto se refere “às palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes” e “sobrados magros e verticais”.

Se me chamam de gordinho, tudo bem. Se quem chama for mulher, então, melhor ainda, ouço-o carinhoso. Agora, se for estacionar o carro e o flanelinha disser “Aqui, gordão!”. Mais do que na balança e nos buracos do cinturão, sempre me fiei no aumentativo e diminutivo, “ão” e “inho”.

Aí, sim, é hora de conferir na balança.

GENETON FAZ FALTA
Acho que duas coisas, pelo menos, estão faltando no jornalismo brasileiro: querer saber e saber perguntar.

Anos 1970. Bar Mustang. Chega um menino magro, muito magro, e barbudo. Se tem 18 anos, não parece. Alguém o saúda. “Senta aí, Geneton!” Homero Fonseca me diz: “Cara genial. Só é um pouco tímido.” Se ele falou alguma coisa, não ouvi. Mas acho que chegou mudo e saiu calado.

Se bem me lembro, a primeira vez que o vi na televisão foi entrevistando Gilberto Freyre. A pergunta: “O senhor se considera um gênio?” Gilberto ter-se na conta de gênio não era exatamente uma novidade. Se nunca havia dito, assim, com todas as letras, era porque nunca lhe havia sido perguntado. “Sim, considero-me um gênio”.

Ainda no Recife, entrevistas históricas. Algumas estão na internet. Ariano, Dom Hélder, Arraes, Roberto Carlos, Luiz Gonzaga... O menino “perguntador”, como ele se dizia, era, também, editor. E editor de mão cheia. Não sei se aprendeu com alguém ou se aprendeu fazendo. Mas sei que fez escola.


Ana Maria Magalhães com Geneton, nas filmagens de Cordilheiras no mar, 2015. Foto: Divulgação

A estampa do repórter (pinta de árabe, voz normal, nada grave ou empostada, além de algum sotaque nordestino) estava mais para a TV Al Jazeera do que para o chamado “padrão global”. Mas a fama de pauteiro, perguntador e editor chegou ao Rio, sede da Globo.

Nos Estados Unidos, entrevistou um tripulante do avião que soltou a bomba atômica sobre Hiroshima. E, após perguntar o óbvio, perguntou o que nunca lhe havia sido perguntado. “Qual objeto pessoal você levou a bordo?” “Uma Bíblia.”

O general Newton Cruz tentou intimidá-lo. Mas o repórter não temia cara feia. Olho no olho, perguntou: “Se o senhor sabia que os militares iam explodir uma bomba no Riocentro, por que não evitou?”

A série de entrevistas com o jornalista Joel Silveira foi memorável. Antológica. Na última visita a Joel, a câmera focaliza o apartamento vazio. As perguntas ficam no ar, sem respostas. Joel havia morrido.

O mineiro Carlos Drummond de Andrade não era de dar entrevistas. Nem o pernambucano Geneton Moraes Neto era de desistir. Descobriu que o poeta gostava de falar ao telefone. Preparou 70 perguntas. E ligou. Ao longo de 10 dias. Foi a última entrevista de Drummond. Publicada no Jornal do Brasil. E no livro Dossiê Drummond.

“Eu acho que, pelo menos, contribuí para a memória brasileira.”

PEQUENOS NADAS
Sou cronista pela preguiça. Não a minha. Mas a da crônica. Até já pensei em escrever outras coisas. Romance, não. Aí, a preguiça é minha. Só de pensar. Tentei contos. Mas, quem pensa que conto é serviço maneiro, coisa de romancista preguiçoso, tá muito enganado. Pra começo de conversa, tem que ser vários contos para que o livro se ponha de pé, como queria Raquel de Queiroz.

Esta história quem me contou foi Zé Cláudio. O pintor baiano-argentino Carybé passou uns dias hospedado na cobertura do cronista Rubem Braga em Ipanema. Saía de manhã, Rubem na rede. Voltava à noite, Rubem na rede. Armada no famoso “quintal aéreo”, pois no topo do edifício, com plantas e árvores de tudo quanto era fruta, frequentado por sabiás, bem-te-vis e borboletas.

E, assim, passaram-se quatro ou cinco dias. Rubem na rede. Na despedida, Carybé foi agradecer a hospedagem. Rubem na rede. “E dizem, Rubem, que Dorival Caymmi é que é preguiçoso. Mas, diante de você, Caymmi é operário padrão.” Isso, com Rubem Braga, viu? O maior cronista brasileiro. Entre os grandes, o único puro-sangue. Só escreveu crônicas. Até como reportagens.

Rubem dizia ser um homem quieto que gostava de ficar sentado num banco, calado, “anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umas coisas que não valiam a pena lembrar”.

Humberto Werneck contou outro dia, numa crônica no Estadão, que, certa feita, com preguiça de escrever, Rubem pediu a Fernando Sabino uma crônica emprestada. Sabino emprestou. Rubem deu umas mexidas pra ficar com o jeito dele, assinou e publicou. Tempos depois, foi a vez de Sabino pedir uma crônica emprestada. Rubem emprestou. Só que, esquecido, emprestou a mesma. Isso. A mesma que Sabino lhe havia emprestado. Não deu pra Sabino republicar. Preguiça com preguiça se paga.

Que a crônica é gênero que se aproveita da preguiça (e vice-versa) é certo. Mas, preguiçosa é a crônica. Não o cronista. Rubem escreveu mais de 15 mil, em 62 anos. Ou seja, uma para cada dia e meio. Tempo e texto para vários romances, muitas novelas, contos, então, nem se fala.

Mas, numa rede armada num jardim, só brotam crônicas, poemas e letras de música, que já nascem empinados, com vontade própria. Os motes, quase sempre, chegam inteiros, mansos, leves e soltos, flutuando sobre a rede como uma nuvem... um devaneio... um sonho... Há que se cuidar para que a vigília não os ponha a perder.

Aqui, arremedo o verso de Manuel Bandeira: como a vida, a crônica é feita de pequenos nadas.

BYE BYE, BRASIL
Quando minha mãe vinha do Rio e o voo fazia escala em Vitória, a gente já sabia. Na bagagem de mão, chocolates Garoto. Em casa, só chegavam as embalagens vazias.

A Garoto, capixaba, era famosa. Hoje, só existe uma marca de chocolate nacional. Sabe-se lá até quando.

Aqui, no Recife, tinha três fábricas: Renda Priori, Beija-flor e Helvética. Quando fui morar na Inglaterra, Elza, mãe de Roberto Rosa Borges, pediu-me para levar “uma encomendinha”. Chocolates. “Roberto diz que são melhores do que os ingleses.” E deviam ser mesmo. Sem as porcarias químicas que botam em tudo.

O pernambucano guaraná Fratelli Vita brigava com a Coca-Cola pela liderança do mercado. A laranjada Cliper dava de 10 a zero na americana Crush. E os biscoitos e bolachas creme craque da Pilar batiam os da Nestlé e da Duchen.

Disco era Rozenblit; suco de fruta, Maguary; camisa, Torre; lençol, Capibaribe; cobertor, Tacaruna; tecidos, Lojas Paulista (Casas Pernambucanas no resto do país); banco, Banorte; seguros, Phoenix Pernambucana; sapólio, Sapolux; pente, Jangada; café, São Paulo; queijo, Santa Maria; goiabada e extrato de tomate, Peixe; supermercado, Comprebem; torneira, Sem-fim; óleo vegetal, Benedito; sanduíche da Pérola; sorveteria, Gemba; sorvete de carrocinha, Daqui e Xaxá; achocolatado, Cilpinho; cicatrizante, Elixir Sanativo; galo na testa, a paraibana Água Rabelo. Música era de Capiba e Nelson Ferreira; poesia, Bandeira, Cabral e Pena; pintura, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres; teatro, Hermilo Borba... e por aí ia, pernambucanamente, o Recife.

Hoje, as multinacionais têm filiais em São Paulo e, aqui, as filiais das filiais. Há quem ache que isso é bom. Sinal dos tempos. Inevitável. Globalização. Essas coisas. Quem pensa diferente é atrasado, jurássico e, se brincar, comunista. Tá bom. Aceito a condição de vanguarda do atraso. Mas, respondam duas coisas. Os empregos ficam onde? E pra onde vai a parte do leão? (Aliás, Leão era a marca de uma compota de abacaxi divina, produzida em Olinda). As multinacionais compram uma marca daqui, fecham a fábrica e aumentam a produção de outra, no quinto dos infernos.

Ninguém na Noruega tá pensando em vender a Petrobras de lá. Ao contrário. Entra governo, sai governo e o fundo soberano tá lá, intocável, três trilhões de dólares para garantir saúde e educação, depois que o petróleo acabar. Saúde e educação públicas, diga-se. (Os americanos são ricos, mas não têm saúde pública. Nenhuma. O Obamacare foi uma tentativa. Mas ficou no caminho, tropeçou em Trump).

“Ah!, mas empresa pública, aqui, só tem ladrão” – dirão os modernos. Oi!, gente boa, e as Odebrecht da vida têm o quê? E as multinacionais G&E, Philips e Johnson & Johnson, que assaltaram a saúde pública brasileira, têm o quê? Mesmo assim, querem privatizar o que sobrou. Até o Parque do Ibirapuera.

Vai dizer à rainha Elisabeth que querem privatizar o Hyde Park, pra ver o que ela diz.

God save the Queen!

SE TEM ASA, PRA QUE QUER CASA?
Tudo começou com um mistério. Apareceram umas setas, como que desenhadas, no balcão do meu terraço. Em sequência, uma após a outra. “Que danado é isso?” Como nunca acreditei em disco voador, talvez tivesse chegado a hora de começar a acreditar.

Pedi a Lurdes para lavar com mangueira e escovão. Dia seguinte, tavam as setas lá. Como já disse, desenhadas. Brancas. “Tão de sacanagem comigo”, pensei. Mas quem? E, sobretudo, como o sacana chega até aqui, ao 11º andar, desenha as setas e se manda? E por que setas que não indicam nem levam a lugar algum?

Até que, passados três dias, Lurdes desvendou o mistério. “Seu João Augusto, venha ver uma coisa aqui.” Fui. E vi. Dois urubus solenemente pousados no balcão do meu terraço. E as setas? Simples. Os bichos cagavam e caminhavam sobre a merda. Impressionante. As pegadas secas ficavam como setas desenhadas.

É isso. Um urubu pousou na sorte de Augusto dos Anjos. E dois urubus deram de pousar no meu terraço. Quanto à sorte, poeta, continuo sem ter do que me queixar.

Mas, o que esses bichos têm de bonitos voando num céu azul, planando, peneirando, lá no alto, têm de feios vistos de perto. Cabeças-pretas. Assim são chamados os nossos urubus, brasileiros. Eita bichinho feio danado! Onde não tem pena, é enrugado. E, como a gente sabe o que eles comem, não há boa vontade ecológica que lhes empreste simpatia. Além de feios, nojentos.

Lurdes disse que, no interior, a família dela botava uma bandeira na cumeeira da casa pros bichos não pousarem. Fez uma bandeira com um lençol velho, cabo de vassoura, e fincou num jarro, no terraço. Mas os bichos voltaram. Acho que passaram a usar a bandeira como os pilotos usam biruta de aeroporto, para saber a direção do vento.

Andei lendo sobre urubus. Macho e fêmea têm uma convivência solidária. E as mesmas, mesmíssimas funções em relação ao casal e à prole. Voam sempre juntos e são monogâmicos. Ou seja, meus indesejáveis visitantes são casados até que a morte os separe. Amém! Mas longe do meu terraço, né?

Tanto telhado com sombra e água fresca (de caixa sem tampa) por aí, tanta torre de igreja, tanta antena de TV, tanta árvore, tanto poste e luminária, tanto mausoléu grande e alto logo ali, em Santo Amaro, tanto esqueleto de edifício por todo canto! E eles aqui, no meu terraço.

O que fazer, caro leitor? Alguma ideia? Eu, sinceramente, não sei. Machucá-los, claro, tá fora de questão. Espantar, a gente espanta. Joga água, bate palma, panela, grita xôôôôôô urubu, mas não resolve. Eles vão no susto. Mas voltam. Se urubu do interior já é malandro, urbano, então, nem se fala. Só me resta invocar São Jackson do Pandeiro:

Urubu tem asa
Pra que urubu quer casa?
Ai, ai, ai
Pra que urubu quer casa?

Urubu tem asa
Pra que urubu quer casa?
Ai, ai, ai
Pra que urubu quer casa?

IDOSO-NOVATO
O idoso-novato é um cara que ainda não se acostumou a ser chamado de senhor. Alguns levam tempo. Anos, até.

Pela lei, caro leitor, a partir dos 60 anos, você será – ou foi – considerado idoso. Mas, como o ministro que taí acha que a gente tá vivendo demais, talvez aproveite a embalagem da reforma da Previdência para aumentar a idade. “Ônibus, metrô, cinema e teatro mais baratos? Atendimento preferencial em estabelecimentos públicos e privados? Estacionamentos especiais? Esses velhinhos tão pensando que são o quê, além de fardos?”

Outro dia, o escritor Zuenir Ventura estava na fila do Detran, no Rio. Fila era modo de dizer. Uma zorra. Alguém gritou: “Seu guarda, aqui atrás tem um velhinho!” Zuenir olhou pra trás. Não tinha atrás. O velhinho anunciado era ele mesmo. Idoso-novato. Resistente. (E bota resistente nisso.)

A velhinha roqueira Rita Lee diz na sua autobiografia: “Quando alguém afirma com (discutível) convicção que a idade está na cabeça, meu fígado e minha coluna dão risadinhas sarcásticas”.

Não vá nessa, amigo leitor, de confiar no espelho. A imagem refletida não é a sua semelhança; mas a sua lembrança. Na dúvida, dê uma espiada no RG. É só subtrair o ano corrente do ano em que você nasceu. Essa conta sempre dá certo.

Mas, ao final das contas, o idoso-novato pode fazer quase tudo. Comer, beber, namorar... O perigo mora no “quase”.

Idades não se discutem, amizade. Mas, assim como as bruxas, que existem, existem. Seguro morreu de velho. E idoso-novato morre quase sempre de teimosia, trela ou força dos seus – nem sempre bons – hábitos.

Conheci um idoso-novato que, como fez a vida toda, continuava a se vestir em pé. Não que resistisse à recomendação de sentar. Mas esquecia. Um dia, a força do hábito o venceu. Enganchou na cueca o dedo mindinho do pé. Caiu e bateu a testa na quina da cama. Um menino. Não tinha 70.

Enquanto der, meu caro idoso-novato, relaxe e goze. Estacionamento especial, caixa preferencial, cinema e teatro pela metade do preço.

Aproveite.

Antes que acabem com a festa.

JOCA SOUZA LEÃO nasceu no Recife, em 1946. É publicitário e cronista. Trabalhou com propaganda durante mais de 40 anos, ganhando inúmeros prêmios como redator. Deixou de atuar na publicidade para dedicar-se à crônica. Publicou Pano rápido (2011), Crônicas (2013), Crônicas e 50 histórias miúdas (2016), todos pela Cepe Editora.

veja também

Vocês não entenderam 'The Wall'?

No Ar Coquetel Molotov 2019

Gabriel Pardal