Artigo

O processo de tornar o forró patrimônio cultural

Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) deu início neste ano à elaboração do Dossiê de Registro das Matrizes Tradicionais do Forró

TEXTO PAULA MASCARENHAS

ILUSTRAÇÃO KARINA FREITAS

11 de Outubro de 2019

Ilustração Karina Freitas

[conteúdo na íntegra | ed. 226 | outubro de 2019]

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“Agora as leis estão reconhecendo a riqueza do forró, mas ele sempre foi nosso patrimônio cultural. E quem decide isso é o povo, nenhuma lei ou decreto.” A fala de Leda Alves, estudiosa da cultura popular e atual Secretária de Cultura do Recife, rememora a resistência da comunidade forrozeira na preservação de um dos mais autênticos gêneros musicais brasileiros e nordestinos. Em maio deste ano, diversos agentes culturais, gestores públicos, artistas e pesquisadores do país compartilharam suas experiências e sua relação com o forró durante o seminário Forró e Patrimônio Cultural, evento que aconteceu no Recife para anunciar e celebrar que o gênero irá se tornar Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

Após anos de iniciativas, projetos e lutas perante o poder público para a efetiva salvaguarda do forró, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) deu início, agora em 2019, à elaboração do Dossiê de Registro das Matrizes Tradicionais do Forró, procedimento técnico necessário para a inscrição do gênero no Livro das Formas de Expressão do Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O Dossiê resultará de uma extensa pesquisa textual, audiovisual e fotográfica para catalogar e apresentar, junto ao Iphan, os aspectos históricos, sociais, culturais e musicais que envolvem as matrizes tradicionais do forró.

Assim, para dar início a essa pesquisa, o Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan (DPIIphan), em parceria com a Associação Respeita Januário (ARJ) e outras entidades do país ligadas ao forró, promoveu o seminário Forró e Patrimônio Cultural, discutindo diretamente com a comunidade forrozeira os desafios e as perspectivas da construção desse Dossiê. Foram três dias de debates, escutas compartilhadas dos instrumentos tradicionais do forró (sanfona, sanfona de oito baixos, rabeca, zabumba) e trocas sobre as diversas formas de “fazer forró”, as quais ultrapassam a música e a dança e envolvem também a produção de festas, de acervos discográficos, de vestimentas, enfim, complexas práticas culturais atuantes em várias cidades brasileiras.

Embora o processo de salvaguarda só tenha efetivamente se iniciado neste momento – no ano em que se comemora o centenário de um dos seus expoentes, o músico Jackson do Pandeiro –, o desejo e a mobilização de tornar o forró um dos patrimônios culturais imateriais do país já existiam desde 2011, quando a comunidade forrozeira do estado da Paraíba pleiteou o primeiro pedido de reconhecimento ao Iphan. Desde então, inúmeras articulações no âmbito estadual e nacional foram feitas não só para fortalecer e valorizar o gênero, mas também para possibilitar a implantação de mais políticas públicas e espaços de difusão, assim como criar melhores condições de trabalho para a sua cadeia produtiva de músicos, dançarinos, produtores e mestres.

Para que uma expressão cultural seja registrada pelo Iphan é preciso que ela tenha continuidade histórica, relevância para a memória nacional e integre as referências culturais de grupos formadores da sociedade brasileira. O forró, considerado um dos mais legítimos estilos musicais do país, tornou-se símbolo expressivo do imaginário nordestino, atuando como difusor da identidade cultural sertaneja – tanto através da música, quanto das festividades – desde que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira revelaram, nos anos 1940, o baião.

Em A sociologia do um gênero: o baião (Iphan-Al, 2016), o sociólogo e pesquisador Elder Maia Alves explica que, durante o processo de modernização cultural vivido no Brasil entre os anos 1930 e 1950, nenhum outro gênero musical narrou, cantou e celebrou mais o Sertão. “Foi, em grande medida, em decorrência da profusão e nacionalização do baião e da sua narrativa poético-musical que o Nordeste se definiu como região no imaginário coletivo brasileiro (…), por meio do seu interior, o sertão (o nordestino), que passou, paulatinamente, a ser percebido, narrado e consumido como o Sertão por excelência, apanágio do mundo rural brasileiro, uma espécie de síntese espacial da fome, da migração, da violência, da tenacidade e, após o advento do baião urbano-comercial, também um repertório da criatividade lúdico-musical e das criações artísticopopulares”, escreve o pesquisador.

A partir da expansão dessa criatividade musical e popular do sertão, promovida pioneiramente por Gonzaga, o forró foi incorporado por diversos outros artistas, como Genival Lacerda, Trio Nordestino, Dominguinhos, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Marinês, que também transformaram o forró em um estilo musical nacional. Essa difusão também se desdobrou em várias mudanças rítmicas e fonográficas, como, por exemplo, no surgimento de bandas estilizadas nos anos 1980, formadas para além da instrumentação básica do forró – que é composta pela tríade “sanfona-triângulo-zabumba” e compõe musicalmente o chamado forró pé de serra –, ou até mesmo a ausência de trios locais ou nomes do forró tradicional em grandes palcos dos arraiais, onde hoje se apresentam, em sua maioria, cantores sertanejos e grupos de forró eletrônico.

Apesar das crescentes reinvenções musicais das últimas décadas, as matrizes tradicionais do forró ainda resistem como um gênero de canção popular de massa. Além de retratar inúmeros traços da identidade sertaneja, é representado também por diversos atores envolvidos em suas celebrações e festejos durante todo o ano, em especial nos ciclos juninos que homenageiam os santos católicos e movimentam não só as capitais e municípios do interior do Nordeste, como também outras regiões do Brasil. E é essa cultura cheia de simbologias, música, dança e memória que o inventário de salvaguarda pretende registrar e resguardar para as gerações próximas.

EU PENEI, MAS AQUI CHEGUEI…
A primeira solicitação de Registro das Matrizes Tradicionais do Forró como Patrimônio Cultural junto ao Iphan foi protocolada oficialmente em 2011 pela Associação Cultural Balaio Nordeste, entidade paraibana sem fins lucrativos que promove, estimula e difunde a produção artística nordestina. Com o pedido, foram anexados uma coletânea de livros, LPs e DVDs de forró e um documento com mais de 400 assinaturas de representantes das comunidades forrozeiras de todo o país com a solicitação de ações de sustentabilidade e salvaguarda do ritmo.

A pesquisadora paraibana Joana Alves, presidente da Associação Cultural Balaio Nordeste e coordenadora do Fórum Forró de Raiz – evento que também promove debates e projetos sobre o forró –, esteve à frente dessa e de inúmeras articulações com o poder público para reivindicar as demandas dos produtores e artistas do forró. Em entrevista à Continente, Joana conta como foi essa trajetória, que envolveu a promoção de debates e ações voltadas para a melhoria das condições de trabalho dos forrozeiros e pleiteou o reconhecimento das matrizes tradicionais do forró como patrimônio.

“Desde aquela época, nós discutíamos formas de levar ao poder público as necessidades da cadeia produtiva do forró e a possibilidade de sua patrimonialização. Assim, em 2011, entregamos o pedido de Registro ao Iphan, mas não tivemos sucesso”, relembra ela. “Em 2015, nós elaboramos uma Carta de Diretrizes para Instrução Técnica do Registro das Matrizes do Forró como Patrimônio Cultural do Brasil, que foi enviada e, portanto, aceita pelo Instituto. Desde então, continuamos nossas articulações e debates em vários encontros, fóruns e audiências públicas, como a realização dos Fóruns Nacionais do Forró, os quais possibilitaram um maior diálogo entre forrozeiros de todo o país e as instâncias governamentais – como o Iphan e suas superintendências estaduais.”

Produzida conjuntamente pelos participantes do Encontro Nacional para Salvaguarda das Matrizes do Forró, que aconteceu em 2015 na cidade de João Pessoa, a Carta de Diretrizes para Instrução Técnica do Registro das Matrizes do Forró tornou-se documento basilar e norteador para o Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan (DPI-Iphan) orientar todo processo de pesquisa que envolverá agora a produção do Dossiê de patrimonialização.

A fim de abarcar os variados elementos que contemplam o universo do forró, a Carta define os três eixos principais de direcionamento da pesquisa e produção do Registro: o primeiro eixo indica a necessidade de definição de aspectos conceituais que envolvem a complexidade das matrizes tradicionais do forró, suas danças, instrumentos, estruturas melódicas e rítmicas; o segundo abarca a territorialidade da pesquisa, ou seja, a localização e descrição dos festejos e de seus atores sociais; e o último eixo trata das perspectivas e ações de salvaguarda e sustentabilidade do forró.

Com esse direcionamento em mãos, o Iphan promoveu, no final de 2018, o edital de Chamamento Público para instrução do processo de Registro das Matrizes Tradicionais do Forró como Patrimônio Cultural do Brasil, com o objetivo de selecionar a melhor proposta para a elaboração do Dossiê em dois anos (2019-2020). Assim, a instituição selecionada foi a Associação Respeita Januário (ARJ), entidade que já possui uma vasta experiência na salvaguarda de expressões culturais pernambucanas, como caboclinho, cavalo-marinho, ciranda e reisado.

Criada nos anos 2000, a ARJ realiza pesquisas e consultorias para a divulgação e a valorização da produção musical tradicional do Nordeste, sendo composta por acadêmicos e pesquisadores das áreas de música, antropologia e ciências sociais, estudiosos também vinculados à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), entre eles o etnomusicólogo Carlos Sandroni, que coordenará a pesquisa e a produção do Dossiê de Registro das Matrizes Tradicionais do Forró.

Professor e pesquisador do Departamento de Música da UFPE, Sandroni também possui uma importante experiência na área de salvaguarda de bens imateriais, pois coordenou a pesquisa para o reconhecimento do Samba de Roda do Recôncavo Baiano como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco, em 2005. Sandroni explica à Continente que o mesmo processo multidisciplinar contemplará a pesquisa do registro do forró, de modo a investigar e catalogar as diferenças entre seus os ritmos, danças e festas e festivais que acontecem no país.

“Nossa intenção é não somente descrever, com olhares interdisciplinares de diversos profissionais – da antropologia, etnomusicologia, história, música, dança, letras etc. –, como atuam os grupos detentores do forró, mas também estar em constante diálogo com eles, que tornam esse patrimônio vivo e ativo. Por isso, a pesquisa também será fruto da troca com os próprios forrozeiros, mestres, dançarinos, atores e agentes culturais, a fim de compreender o saber fazer de cada um, seus processos de produção, circulação, consumo e suas demandas”, reforça.

XOTE, MARACATU E BAIÃO: TUDO ISSO EU TROUXE NO MEU MATULÃO
Dessa forma, a primeira etapa de produção do Dossiê se dará pela preparação das equipes da ARJ que irão a campo, com discussões bibliográficas e acionamento da rede de forrozeiros existente em cada localidade. Após essa fase, haverá efetivação da própria pesquisa, com visitas e entrevistas com músicos, mestres forrozeiros, dançarinos, artesãos, produtores culturais, o que também inclui a investigação de dois ciclos anuais de festejos juninos.

Nessa perspectiva, as matrizes que serão documentadas envolvem os gêneros musicais tradicionais do forró – baião, xote, xaxado, arrastapé, rojão, coco – e suas estruturas rítmicas, melódicas e harmônicas, assim como suas danças, festas, modos de fazer, instrumentos musicais e os atores sociais do forró. Paralelo a isso, o Dossiê mapeará museus, universidades, bibliotecas, acervos públicos e particulares e coletará em arquivos, cursos, sites, blogs, comunidades virtuais, artigos, monografias, dissertações, teses, livros materiais que estejam envolvidos com o universo do forró.

Os polos onde a pesquisa ocorrerá abarcam as capitais de todos os estados do Nordeste e alguns municípios específicos, localizados tanto no meio urbano, quanto na zona rural, assim como sítios, festivais, feiras. Na Região Nordeste, serão contempladas as cidades de Campina Grande, Alagoa Grande, Monteiro, Patos e Cajazeiras na Paraíba; Olinda, Caruaru, Arcoverde, Bezerros (Serra Negra) e Exu, em Pernambuco; Crato, e demais cidades na região do Cariri, no Ceará. Também haverá uma investigação das múltiplas manifestações do forró nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Minas Gerais e Espírito Santo.

A última etapa da elaboração do Dossiê de Registro das Matrizes Tradicionais do Forró se dará, enfim, com a organização de todo material produzido ao longo da pesquisa (vídeos, áudios, textos) para ser encaminhado para análise do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan, que deliberará se o bem receberá o reconhecimento como Patrimônio Cultural do Brasil.

Segundo Sandroni, “além da elaboração deste registro, que integrará o Livro das Formas de Expressão do Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, outros materiais complementares também enriquecerão a pesquisa, entre eles um registro fotográfico, um portfólio fonográfico, uma lista de contatos de referência do forró e dois videodocumentários de caráter etnográfico”. O coordenador da pesquisa também ressalta que o processo de patrimonialização não se encerra com a produção desse registro: este documento deve se desdobrar também em posteriores ações de salvaguarda. “Nele haverá, além da descrição dos elementos que caracterizam as matrizes tradicionais do forró, suas transformações históricas e referências bibliográficas para pesquisas posteriores, uma avaliação das condições de risco, sustentabilidade e salvaguarda dessas matrizes”, pontua ele.

O FORRÓ JÁ COMEÇOU, VAMOS GENTE, RAPAPÉ NESSE SALÃO
Entidade responsável pela proteção e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional brasileiro desde 1937, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional só passou atuar no âmbito da salvaguarda de bens culturais imateriais no ano 2000, com o Decreto nº 3.551. Essa lei foi o instrumento que instituiu o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial com o objetivo de proteger, preservar e valorizar a memória dos bens simbólicos do país.

Diferentemente das ações que envolvem a patrimonialização dos bens culturais móveis e imóveis do país, como o tombamento, que é o mais antigo instrumento jurídico de proteção e conservação do Iphan, esse Decreto propõe a metodologia de patrimonialização e salvaguarda a partir da produção do Dossiê de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e de sua inscrição em um dos Livros de Registro, que são divididos entre categorias baseadas no tipo de expressão cultural imaterial: o Livro dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares. Será no Livro das Formas de Expressão – que abarca as manifestações literárias, plásticas, cênicas, lúdicas e musicais praticadas no Brasil –, que as matrizes tradicionais do forró serão inventariadas.

De acordo com o Registro do Patrimônio Imaterial: dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial, relatório produzido pelo Ministério da Cultura e pelo Iphan em 2006, a salvaguarda de bens imateriais visa, além de fortalecer e dar visibilidade à complexidade e heterogeneidade dos detentores destas práticas culturais, “promover a apropriação simbólica e o uso sustentável dos recursos patrimoniais para a sua preservação e para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Significa também compartilhar as responsabilidades e deveres dessa preservação e promover o acesso de todos aos direitos e benefícios que ela gera”.

Kátia Bogéa, atual presidente do Iphan, ressalta, em entrevista à Continente, que a entidade contabiliza hoje mais de 40 bens imateriais registrados como Patrimônio Cultural Imaterial – entre eles o Ofício das Baianas de Acarajé, o Jongo no Sudeste, a Feira de Caruaru, o Carimbó, o Maracatu Baque Solto etc. Para ela, a iniciativa de incluir o forró como um bem imaterial do país tem como objetivo aprofundar a compreensão de toda complexidade musical, histórica e cultural do gênero e gerar assim diversas ações para sua a manutenção e resistência.

“O patrimônio não é só um título: é uma política de valorização dos nossos saberes e expressões culturais, bens que são tão importantes para a formação da nossa identidade multicultural. E a patrimonialização do forró envolve uma responsabilidade conjunta, uma gestão compartilhada de salvaguarda que promova o cuidado dessa herança e dessa riqueza, que representa tanto o Nordeste e o Brasil”, afirma Kátia. “Portanto, após a efetivação do Registro das Matrizes Tradicionais do Forró no Livro de Formas de Expressão, o Iphan se tornará mediador entre a comunidade forrozeira e os órgãos e instituições de apoio, interlocutores que promoverão ações de curto, médio e longo prazo para difusão e fomento do forró.”

Nessa perspectiva, inúmeras ações de salvaguarda são esperadas como resultado da pesquisa e produção do Dossiê de Registro das Matrizes Tradicionais do Forró. Entre as práticas de sustentabilidade do gênero, faz-se necessário, primeiramente, priorizar o mapeamento e a valorização das comunidades forrozeiras que atuam no interior do Nordeste e do Brasil, onde dificilmente são contempladas por políticas públicas culturais, assim como a identificação de interlocutores da sociedade civil e dos poderes públicos que poderão mediar as políticas de patrimônio cultural promovidas pelos órgãos competentes.

Portanto, essas políticas devem promover a elaboração de projetos alinhados às urgências e demandas dessas comunidades forrozeiras, criando também centros de referências culturais voltados para a identificação, reconhecimento e salvaguarda das matrizes do forró – através de um processo contínuo e amplo.

A expectativa é de que a patrimonialização também possibilite a inserção do forró em mais festivais e festas locais que vão além do período junino, gerando mais demandas de trabalho para artistas e produtores, já que a maioria deles tem o forró como o único ofício e meio de sobrevivência. É o que acontece com o zabumbeiro pernambucano Reginaldo Pereira de Melo, mais conhecido como Quartinha, que vive de forró há 58 anos.

Ele começou a tocar zabumba na infância, aos oito anos, e, durante sua longa carreira, já acompanhou artistas importantes, como Luiz Gonzaga, Dominguinhos e a banda Quinteto Violado. Quartinha não teve estudo, mas sustentou a família e os filhos através do forró, como conta à Continente. “O forró foi o que me deu e o que me dá o pão de cada dia. E é assim com vários artistas: muitos dos colegas meus de profissão amam tocar forró e fazem disso seu único sustento. Por isso o forró nunca pode se acabar”, afirma ele.

Da mesma forma se construiu a relação entre o sanfoneiro Chambinho e o forró. Nascido em São Paulo, devido à seca do Nordeste, o sanfoneiro voltou ao Piauí para resgatar suas raízes musicais, tocando a sanfona herdada da família. Para ele, o forró já é um patrimônio do Brasil. “Eu posso dizer isso porque vivo de forró o ano todo, ele é a trilha sonora da população de janeiro a janeiro. Durante o ano todo, eu toco por esse Brasil sem sair da pisada. É claro que em junho a agenda fica cheia, mas o forró continua sendo a música do povo em várias épocas do ano.”

Já Maciel Salú, um dos expoentes da rabeca em Pernambuco, relembra que, no início da sua carreira, tocava triângulo e zabumba com o tio na banda Os quentes do forró. Na adolescência, aprendeu com o pai e com o avô a tocar músicas de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Trio Nordestino na rabeca – o primeiro instrumento melódico a ser usado no forró, anterior à utilização da sanfona. Em entrevista à Continente, Salú expressa seu desejo de que a salvaguarda do forró possa trazer os artistas locais aos shows promovidos pelo poder público, já que hoje eles estão sendo esquecidos nesse cenário.

“Infelizmente, os grandes mestres do forró estão perdendo espaço nas celebrações tradicionais das cidades, nas festas de Reis, das Padroeiras e no São João. Com isso, outros instrumentos típicos também vão sendo esquecidos, como a sanfona de oito baixos, os pífanos. Então, a gente espera que a patrimonialização do forró possa dar mais oportunidades a essas expressões culturais que estão sendo deixadas de lado”, reforça ele.

Conhecida como a rainha do forró, Anastácia reclama da demora de transformar o forró em Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. A cantora é também compositora de diversos forrós famosos, entre eles Eu só quero um xodó, sendo parceira de Dominguinhos em mais de 200 canções. Recifense radicada em São Paulo, Anastácia sente orgulho da marca nordestina que o forró deixa no Sudeste.

“Aqui em São Paulo, onde vivo desde 1960, a gente vê o forró na boca do povo: hoje em dia, em todo bairro tem uma festa de forró, em todo canto você encontra um salão de dança, um bar, uma casa de show que só toca forró. São quatro milhões de nordestinos que moram na cidade e estão sempre revigorando o ritmo, que antes sofria muito preconceito por ser coisa do Nordeste, mas que hoje só cresce entre o público de jovens, que também tomou gosto pelo forró”, comemora ela.

Assim, entre celebrações e expectativas de toda a comunidade forrozeira, a salvaguarda do forró deve preservar os aspectos culturais e históricos que já o constituem como um patrimônio do país. O gênero integra um imaginário coletivo e a memória social de um Brasil que vai muito além do Nordeste, carregando em suas músicas, ritmos, instrumentos e festejos não só traços da identidade e diversidade brasileira, mas, sobretudo, a sua sensibilidade artística. Logo em breve, portanto, as Matrizes Tradicionais do Forró se tornarão Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, garantindo assim que a história que compõe essa complexa expressão cultural seja uma narrativa conhecida por todos.

PAULA MASCARENHAS, graduada em Letras pela UFBA, estudante de Jornalismo na UFPE.

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