Era fim de tarde e o clima frio do lusco-fusco empurrava a paleta de cores para o escuro da noite. Se as pessoas chegavam com sobretudos e cachecóis, aos poucos se despiam para estar na agradável temperatura ambiente da sala. Aquele desnudar das vestes e da vibração da rua faria todo sentido e podia até ser lido como um convite de Greta. Adaptado por Armando da peça Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá, escrita em 1973 pelo dramaturgo pernambucano Fernando Mello, o filme acompanha as relações que se estabelecem entre Pedro, um enfermeiro gay no outono da vida, sua amiga Daniela, nome de batismo Francisco, e Jean, um jovem que chega ferido ao hospital onde Pedro trabalha e que lhe captura a atenção. Marco Nanini, Denise Weinberg e Démick Lopes vivem esse trio de personagens que se emaranham, mas, naquela semana de fevereiro, só Nanini e Démick estavam em Berlim.
“Vi a peça montada, nossa!, achei um texto incrível, mas com um jeito tão ruim de olhar para esses três personagens marginalizados. Será que consigo pegar essa peça e virar do avesso, mudar o código, o registro de gênero dela e ir de fato para um drama?”, me contaria Armando na tarde seguinte. Foram 10 anos nutrindo o projeto, fertilizando o roteiro e a cosmogonia do universo habitado por aquelas pessoas – na tela, Fortaleza, mas poderia ser outra metrópole do Brasil. “Sempre quis falar do drama existencial com pessoas postas à margem em vários sentidos, na base da pirâmide social: Pedro é gay, pobre e velho e a única amiga dele é uma travesti”, complementaria o diretor, ainda muito feliz com a repercussão da noite de estreia do filme em Berlim. “O festival cria uma atmosfera acolhedora e carinhosa, você não acha?”
Greta hipnotiza quem o assiste não somente pela qualidade da imagem – a magnética fotografia de Ivo Lopes Araújo –, mas principalmente pela composição delicada, visceral, contida e ao mesmo tempo despudorada, que Marco Nanini faz de Pedro, alguém que sonha em ser chamado de Greta Garbo. Difícil não se envolver com ele, com sua busca por afeto, com sua jornada para vivenciar a sexualidade homossexual na terceira idade, com os vínculos que o amarram a Daniela e a Jean e com seu olhar para o mundo. Quando a projeção terminou, muitos aplausos para toda a equipe, principalmente para Nanini, que subiu ao palco e falou em português sobre a emoção de estar ali.
“Eu achava que ia ficar mais nervoso, mas não fiquei”, diria Marco Antônio Barroso Nanini, na tarde seguinte. Recifense, nascido em 1948, aos 10 anos já morava no Rio de Janeiro, onde, adulto, trabalhou em hotel e banco e foi assíduo em missas, até entrar para o grupo de teatro que ensaiava na casa paroquial. “Do Recife, tenho excelentes lembranças. Sempre que posso, vou; tenho muito carinho e sei que as pessoas também sentem isso por mim. Já tenho uma certa estrada, não é? Ah, você conheceu Janete Costa? Uma mulher maravilhosa, estive muito com ela e Borsoi, amigos muito queridos”, completaria, aludindo ao casal de arquitetos Acácio Gil Borsoi e Janete Costa, ambos falecidos. “Mas minha memória, meu Deus do céu, vai de mal a pior”, reclamaria o ator. É uma avaliação parcial e não tão correta assim, vide suas recordações sobre o processo que culminou em Greta, em cartaz no país a partir de 10 deste outubro. De suas argutas lembranças, colhemos o depoimento a seguir.
CENA I: NO SET
O filme é bem-feito, não acha? Mergulhei na história e tive uma sensação de segurança muito grande por causa dos colegas. Porque eu tive um contato muito legal com o Démick, que é um excelente ator, e Denise… bem, Denise é a grande star, né? Para criar aquela intimidade no set, o que para mim facilitou muito, o relacionamento com os atores foi meio “Nescau instantâneo”. Não teve muita coisa antes, na verdade, só eu que fui mais cedo para lá e fiquei no apartamento. Estudamos o texto juntos e não teve nada demais, de nenhuma loucura, de ter que comer cocô (risos). A gente lia o roteiro, tirava as dúvidas todas com o Armando e, enquanto isso, ia se formando uma relação que a gente não percebia. Era o entrosamento. Isso aconteceu com o elenco todo, mas é muito forte o relacionamento do personagem do Démick, com a Greta. É algo marcante. Tivemos sorte com essa escalação toda… Deu certo esse balaio de atores.
E a convivência com aqueles personagens poderia ficar melodramática, mas não há lugar para melodrama na interpretação. No caso do Pedro, tem uma frase em que ele diz para Daniela, quando ela pergunta se vale a pena investir nisso, naquela história com o Jean: “É a única que tenho”. É um sofrimento para ele. Depois que ele perde a Daniela, depois que ele perde o Jean, porque foi embora, ele está mudando de casa, não tem mais amigos, mais nada, e essa emoção de ser surpreendido… O filme trata da ideia de prolongamento, do mundo daquelas pessoas, com elegância e discrição. Isso para nós é muito importante, pois estamos nos expondo muito ali.
CENA II: SEXO
Uma pessoa como Pedro, com 70 anos, gay, enfermeiro, tem sonhos e desejos como todo mundo. Mas, na verdade, você não vê muito um personagem assim de 70 anos. É muito difícil. É como se o septuagenário não tivesse sexualidade. Não existem personagens assim. Armando juntou uma equipe muito forte, no sentido de que as cenas de sexo que faço no filme foram simples de fazer, porque era uma equipe muito respeitosa. Como se fosse absolutamente normal, o que na verdade é, não é mesmo? O fotógrafo era uma beleza. A imagem, quando vi o filme na tela, parecia até película. Então, com uma equipe muito forte e talentosa, o ator se sente livre. Veja só, por opção dele e da direção, tem o olhar muito arguto da câmera, e, para as cenas de sexo, a câmera era tão bem-colocada, tão discreta, que parecia que não estávamos filmando. O fotógrafo sumia do set, Armando também, eu não via as discussões e tudo acontecia com naturalidade. Era só chegar no quarto, as marcações já eram muito boas.
(Pergunto a Nanini como ele percebe os dois juntos em cena, Marco e Démick, Pedro e Jean, e o tabu da homossexualidade, ainda uma questão incômoda para muita gente, no Brasil de 2019, e da sexualidade da terceira idade. Aliás, como foi para ele fazer Greta depois de tanto tempo sendo Lineu de A grande família?)
Nem me fale. Lineu e Nenê eram um grande “papai e mamãe”, não é? Mas isso é bonito: Armando ter escolhido um universo marginalizado, depois ter colocado como protagonista um gay mais velho, ainda com sexualidade ativa, com desejos e sofrimentos por causa de amor. Pedro é um enfermeiro em um hospital público no Brasil que frequenta uma sauna gay. Isso é muito bom, porque você tem muita gente que vai para esses lugares, que encontra gente como Pedro.
CENA III: CINEMA, TEATRO E TV
Acabei o Greta, fiz uma novela, Deus salve o rei, e foi um desafio diferente para mim também, porque o figurino era de roupas pesadíssimas. (Lembrando que Nanini foi o glutão Dom João VI em Carlota Joaquina (1994), de Carla Camuratti, indago se ele se agrada de personagens históricos.) Sim, gosto de fazê-los, mas gosto de qualquer papel bom. Me dê um desafio, algo que me estimule, que interesse… A partir de um tempo, virei meu próprio produtor, no teatro basicamente, porque decidi não mais brigar por personagens. Para não brigar, percebi que eu deveria fazer isso: me produzir. E, no teatro, é especial, porque para mim o palco foi fundamental, me ensinou tudo que eu poderia saber. Porque a gente repete muito a cena, discute, e nisso vai, vai e vai eternamente até que você começa a abordar todos os aspectos do personagem. Para o cinema e para a televisão, você só tem que adaptar a técnica. O teatro é o alicerce. É a base. Um ator é ator em qualquer lugar, mas no teatro você ouve o público, a plateia dialoga com você, você tem que absorver e compreender o tempo da plateia e tudo pode mudar a cada noite.
Diretor Armando Praça e Marco Nanini no set, em Fortaleza. Foto: Aline Belfort/Divulgação)
Acho que, se pensarmos assim, o cinema é indústria. Não depende só de nós, porque também depende da cor, da edição, do som, de tudo isso. Essas técnicas você tem que ir aprendendo a fazer tudo… Acho que televisão é um pouco como o cinema, mas como uma pizzaria: sai rapidamente de tudo, você vive de tudo rapidamente. Mas, às vezes, a tão falada química não rola, ou rola mal, e nesse sentido tivemos uma sorte muito grande no set de Greta. Estávamos todos integrados… Adorei trabalhar com a Denise: ela tem uma força enorme, faz uma trans com uma interpretação crua, verdadeira, e isso é bonito.
É bonito também ver o filme já pronto. Acho que tem essa experiência de ver estando dentro da história. Quando estou interpretando, não vejo revisão de cena. Detesto. É uma coisa que tenho comigo, sabe? Vejo muito de dentro pra fora… É um privilégio ver o filme estando dentro da história. Quando você está lá, sentado na cadeira, às vezes dá até um choque. Esse filme me envolveu muito. Muita nuance apareceu. Me interessei bastante pela forma de contar aquela história. Agora, tem projetos em que aparece um diretor muito estrela, chatérrimo, que começa a complicar tudo, e até que a gente consiga ultrapassar essa persona, perde-se um tempo louco. Com Greta, foi o contrário: Armando é um diretor sensível, que já tinha feito assistência de direção de muitos atores, então ele conhece todas as fases do processo e acompanhou tudo junto do elenco. Foi fundamental.
CORTE SECO: FALA O DIRETOR
Perguntei a Armando Praça, ainda em Berlim, se ele chegou a considerar outros atores para encarnar seu protagonista: “Eu tinha um plano B, caso Nanini não topasse fazer o filme, mas sempre pensei muito nele. Sabia que era um filme que exigia uma entrega e uma coragem grandes e poderia ser que ele dissesse ‘não faço cena de sexo, não faço nu’, mas Nanini nunca tocou nesse assunto. A gente teve uma primeira conversa, contei a história, depois mandei sinopse longa, em seguida o roteiro, e isso nunca foi uma questão. Sempre achei que partiríamos do princípio de que iríamos contar aquela história da maneira mais honesta e verdadeira possível.”
Poderia haver Greta sem Nanini? Minha conclusão: sim, todavia nunca com mesmo magnetismo. Tampouco haveria no filme a mesma emoção ou, para aludir ao contrato mágico que se forja entre o cinema e a plateia, a mesma ilusão. Greta Garbo ficaria honrada.
EPÍLOGO
FORTALEZA, SETEMBRO DE 2019
Greta é exibido na última noite da mostra competitiva do 29º Cine Ceará e sai com três prêmios: melhor longametragem da disputa ibero-americana, melhor diretor para Armando, melhor ator para Marco Nanini. Ele, que já fez Edward Albee, Arthur Miller, Mauro Rasi, Molière e Oduvaldo Vianna Filho na ribalta, que fez vários personagens para Guel Arraes no cinema, até hoje reconhecido na rua por novelas dos anos 1980, como Brega e chique ou Que rei sou eu?, foi agraciado com uma láurea por uma “bicha velha solitária”.
Sete meses separam as mostras de Berlim e Fortaleza: o filme só entra em cartaz em outubro, depois de percorrer México, Israel, Colômbia, Polônia, Indonésia e Portugal e ser vendido para países como Estados Unidos, Holanda, Alemanha e Itália (onde passará na televisão aberta, algo celebrado pelos produtores pernambucanos Nara Aragão e João Vieira Jr., da Carnaval Filmes). Nanini está no ar com o folhetim A dona do pedaço, no qual encarna dois personagens, e 2019 não terminou. Mas é seguro dizer que, neste primeiro ano do país sob um governo que incita e legitima o ódio contra pessoas como Pedro, Jean e Daniela, Marco Nanini em Greta é uma das mais sublimes experiências que a arte brasileira há de oferecer.
MARCO NANINI, ator e produtor.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.
* A jornalista viajou a Berlim por meio de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha – CCBA.