Entre o peregrino e o forasteiro

Morreu Robert Frank, outsider que inspirou gerações de fotógrafos e que mudou a fotografia

TEXTO José Afonso Jr.

11 de Outubro de 2019

Foto Sid Kaplan/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 226 | outubro de 2019]

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Uma das mais fascinantes biografias da fotografia surge de uma improbabilidade. De um suíço, vindo do conforto abastado de uma família judaica, criado na pacata e monótona Zurique. Nascido em 1924, Robert Frank, com alma irrequieta, cai na vertigem americana dos anos 1950. Chega aos Estados Unidos em 1947, com 23 anos e com o recurso mais importante: o olhar de estrangeiro, não anestesiado.

À época, outro outsider que emergia na música, Johhny Cash, cantava “Sou um peregrino e um forasteiro”. Assim, pode-se entender a linha autoral que recai sobre a fotografia e filmografia de Frank. Da perambulação dos peregrinos, traz a motivação do vagar incessante, do perder-se nos deslocamentos e, às vezes, de si mesmo. Do forasteiro, abriga o permanente estranhamento, tanto no olhar para as coisas, pessoas e situações encontradas, como para contextos naturalizados dos olhares anestesiados, e de ser estranhado e rechaçado, para somente depois ser compreendido. Como ele mesmo afirmou ao crítico britânico Sean O’Hagan, em 2004: “Cheguei aonde queria chegar, mas não era o lugar que esperava encontrar. Ainda continuo sendo um outsider”.

Após chegar aos EUA e tentar, sem muito sucesso, firmar-se como fotógrafo saltando de trabalho em trabalho por várias cidades, em 1953, retorna a Nova York e escreve frustrado aos seus pais: “esta é a última vez que volto à Nova York e tentarei alcançar o reconhecimento com o meu trabalho pessoal”. Felizmente, para ele e para a fotografia, a oportunidade foi encontrada com sua perspectiva autoral na forma de uma convocatória de bolsa de pesquisa artística da Fundação Guggenheim. A frase-chave, no texto da sua proposta: “quero fotografar o tipo de civilização que surge aqui e que se espalha pelo mundo afora”. O argumento contundente convenceu o comitê de análise, formado por nada menos que os fotógrafos Walker Evans e Edward Steichen, e o diretor de arte Alexey Brodovitch.

A bolsa foi ganha e, na primavera de 1955, Frank põe na sacola duas câmeras Leica, compra um Ford usado, roda 16 mil quilômetros, passa por 35 estados, e clica. Ao retornar, em junho de 1956, passa o resto do ano revelando os 767 rolos de filme, fazendo cópias de trabalho, selecionando e sequenciando o que seria The Americans. Um livro fora da curva, estranho para a época e seminal no seu conteúdo e impacto. Na história da fotografia, talvez não seja o melhor livro, posto que o conceito e entendimento de “melhor” é sempre uma abstração variável e negociável. Mas certamente é o mais importante.

Dos 27.000 mil negativos tomados e sintetizados em 83 fotografias, sem fotos-legendas, surgiu um Estados Unidos que não gostou de se ver nesse espelho. O livro, lançado primeiro na França, em 1958, e no ano seguinte, nos EUA, foi editado pelo francês Robert Delpire, enfant terrible editorial, então com 33 anos. Ao chegar às livrarias americanas, o estranhamento e repulsa foram imediatos. Das páginas, emergiam abandono, alienação, injustiça, abismos sociais e raciais, melancolia, cafonice, solidão e tristeza. Nada da geração pós-guerra, nem do consumo desproporcional, muito menos de um sonho americano mais presente em mitologias. Tudo isso veio empacotado com recursos visuais como desfoques, sub e superexposição, granulação, desenquadramentos, cortes anticonvencionais.

Um modo de fotografar que se opunha diretamente à linguagem canônica da boa qualidade da época. De um só golpe, Frank conseguiu ser chamado de antiamericano e de antifotógrafo por uma crítica que ainda não alcançava a totalidade dos impactos do livro. Aprendizados desse estranhamento: se você fez um trabalho sem dever nada a ninguém, nem mesmo satisfações, e desagrada quase todo mundo, logo, você está no caminho certo; se a crítica é agressiva e desleal, isso revela muito mais sobre quem o criticou do que sobre você, e, a depender de quem critica, isso pode ser o seu melhor elogio.

O ponto de vista convulsionante e pessoal que sobrepunha realidade e metáfora batia de frente com uma fotografia jornalística e documental ancorada nos mitos da transparência e objetividade. Frank, ao passo que percorria o interior profundo com a sua câmera, gerava imagens dotadas de proximidade e empatia, ao mesmo tempo estranhas e com um certo lirismo da micro-história que se dilui todos os dias fora do foco da mídia massificada. Ao sair do óbvio, ele pratica e instaura uma fotografia que faz perguntas.

É perceptível uma metodologia. Esta envolve deslocamentos, desapego, olhar para as margens e seus habitantes, elementos partilhados com uma contracultura que surgia nos anos 1950 na literatura dos escritores beatniks, nas artes visuais do action-painting de Pollock, na música do emergente rock’n’roll. Há elementos comuns a essas expressões: foram malrecebidos pelo senso comum, sofreram repúdio e retaliações. No lado da potência, traziam expressões que transmitiam a ação plástica, o movimento, o fluxo de consciência, a improvisação e a espontaneidade como eixos de criação, além da fascinação pelos deslocamentos. Não à toa, Jack Kerouac, autor de On the road, um dos expoentes da literatura beatnik, é quem assina o prefácio de The Americans.

As possibilidades de articulação entre obra e estilo de vida, no caso de Frank, ajudam a entender tanto uma como outro, por serem inseparáveis. Mais que isso, foi decisiva como ponto de virada para a fotografia jornalística e documental ter perspectivas mais autorais e pessoais. Fica claro um novo modo de fotografar, pois os temas, as abordagens e a presença do autor-fotógrafo são mais explícitos na construção de sentidos. Daí a importância do livro, que também é uma postura. O argumento é simples: há, de fato, uma fotografia antes e depois de The Americans e antes e depois de Robert Frank.

Detalhe de exposição de Robert Frank no Instituto Moreira Sales, 2017. Foto: José Afonso Jr.

O livro passou quase uma década numa espécie de limbo. Mas, dos poucos exemplares vendidos da primeira edição, alguns caíram nas mãos certas. Alimentaram ideias de outros fotógrafos que colaboraram historicamente para uma fotografia, de certo modo, de contracultura. Não dá para entender os trabalhos de William Klein, Gary Winogrand, Lee Friedlander, Diane Arbus, Stephen Shore, William Eggleston, fora da primeira onda de influência do binômio Frank/The Americans. Num rebatimento posterior, Larry Clark, Nan Goldin, Martin Parr, entre outros, são tributários da linha da documentação pessoal das relações entre pessoas, autobiografia e intimidade de quem fotografa.

Entre os brasileiros, esse viés de processo criativo se percebe em trabalhos de Miguel Rio Branco e, de certo modo, também pode ser notado no Sebastião Salgado dos anos 1970, que, exilado do Brasil, percorreu a América do Sul fotografando com um sentimento de pertencimento, de reencontro, de memória ancestral e atávica. Não à toa, o nome do livro de Salgado é justamente Outras Américas.

Na geração mais recente, os trabalhos de João Castilho, Pedro David e Pedro Motta, em Paisagem submersa; de Tiago Santana, no seminal Benditos; de Gilvan Barreto, em O livro do sol; de Bárbara Wagner, em Brasília Teimosa, entre tantos (para não citar todos, pois a lista é interminável!), tangenciam, aqui e acolá, de modo mais ou menos direto, a postura de não se fotografar apenas o que se vê, mas o que se percebe.

Contudo, The Americans só foi ter sua real importância compreendida no final dos anos 1960. Faz todo sentido. No período em que ficou hibernando como livro maldito da fotografia, foi se cozinhando o caldo da contracultura, dos movimentos pelos direitos civis e igualdade racial, do sexo drogas e rock’n’roll, da Guerra do Vietnã, da Guerra Fria, e da liberação de costumes. Esse tempo serviu para amaciar o terreno e permitiu ao livro ser visto como antecipador de boa parte dessas tensões e como se podia abordá-las visualmente.

***

Mas aí (sempre há um “mais aí” em histórias improváveis), o suíço outsider, já com cidadania americana, estava envolvido com outro tipo de lentes. Pendurou a câmera Leica por mais de 10 anos e foi se amarrar no cinema experimental. Há dele filmes desconcertantes como Pull my daisy, com roteiro escrito a partir da peça homônima de Jack Kerouac.

Roteiro, no caso, não é a melhor definição. O filme conta com narração improvisada, poemas escritos coletivamente por Allen Ginsberg, Peter Orlovsky e Gregory Corso, participação de artistas plásticos, músicos, dançarinos e até de Pablo Frank, filho de Robert Frank. O filme “conta” a história de um maquinista de trens cuja esposa convida um bispo para jantar. No entanto, os amigos boêmios chegam e interferem quebrando toda a atmosfera, com resultados cômicos e iconoclastas. Tudo filmado em um dia. Pull my daisy foi elogiado por anos como uma obra-prima de improvisação ou, se preferir, o primeiro filme com estética beatnik.

O Robert Frank cineasta realizou mais de 30 filmes, que, se fosse para serem classificados por gênero, oscilavam no en(es)tranhamento entre o underground e o beatnik. Sua filmografia, contudo, não encontrou – ainda – o reconhecimento devido. Talvez a exceção seja The cocksucker blues, feito a convite dos Rolling Stones para o registro de uma turnê. O filme capturou a banda e a comitiva em situações, no mínimo, embaraçosas e que os Rolling Stones preferiam não divulgar. Já que pegava mal censurar, o filme teve sua exibição controlada – leia-se: limitada – pela banda. Robert Frank conseguiu ser demais até para a cabeça dos Stones!

À época, Frank formava um entourage criativo, meio coletivo, meio comunidade, com Sam Shepard, William Borroughs, Allen Gingsberg e Joe Strummer. Além de Kerouac e Allen Ginsberg, estes, parceiros de longa data. “Por que você anda com essa gente, Robert?”, perguntava Walker Adams, crítico e curador de arte, quando acolhia o fotógrafo em seu apartamento. “Eles realmente não têm classe”, dizia, ainda assustado com o amálgama iconoclasta que era o círculo de convivência de Frank.

Em 2008, no cinquentenário de lançamento de The Americans, foi publicado pela renomada Editora Steidl um colossal trabalho de 500 páginas. O Looking In: Robert Frank’s The Americans, organizado por Sarah Greenough, é um exaustivo trabalho de recuperação do contexto ao redor do livro, trazendo, além das fotos, manuscritos, provas de contato, depoimentos e ensaios críticos, resultando em uma atualização valiosa da obra. Em 2017, então, com 92 anos, Frank veio ao Brasil para uma grande retrospectiva do livro e dos seus filmes organizada pelo Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Com projeção dos filmes, exemplares de diversas reedições do livro e materiais inéditos, a exibição atualizou a importância da sua obra.

No último 10 de setembro, Robert Frank encontrou, talvez, a única força capaz de deter o peregrino-forasteiro que o habitava. A morte o levou, aos 94 anos. Estava em casa, com sua esposa June, em Inverness, uma região da Nova Escócia, no Canadá. Mas o seu conjunto e perspectiva de tratamento da realidade ultrapassam em muito esse limite. Análogo ao modo de “fotografar como surge uma civilização e como ela se espalha”, sua obra continua como referência que se alastra. Ainda mais em tempos nos quais o mundo se mostra tão conturbado, instável e repleto de contradições. Ver e rever Robert Frank é cada vez mais uma urgência gritante e inadiável.

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Extra: Assista a dois vídeos sobre Robert Frank realizados pelo Instituto Moreira Sales. No primeiro, o editor Gerhard Steidl fala sobre o conceito da mostra do fotógrafo exibida no IMS, em 2017. No segundo, sobre as diversas edições de The Americans.
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JOSÉ AFONSO JR., professor da UFPE e pesquisador.

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