O livro passou quase uma década numa espécie de limbo. Mas, dos poucos exemplares vendidos da primeira edição, alguns caíram nas mãos certas. Alimentaram ideias de outros fotógrafos que colaboraram historicamente para uma fotografia, de certo modo, de contracultura. Não dá para entender os trabalhos de William Klein, Gary Winogrand, Lee Friedlander, Diane Arbus, Stephen Shore, William Eggleston, fora da primeira onda de influência do binômio Frank/The Americans. Num rebatimento posterior, Larry Clark, Nan Goldin, Martin Parr, entre outros, são tributários da linha da documentação pessoal das relações entre pessoas, autobiografia e intimidade de quem fotografa.
Entre os brasileiros, esse viés de processo criativo se percebe em trabalhos de Miguel Rio Branco e, de certo modo, também pode ser notado no Sebastião Salgado dos anos 1970, que, exilado do Brasil, percorreu a América do Sul fotografando com um sentimento de pertencimento, de reencontro, de memória ancestral e atávica. Não à toa, o nome do livro de Salgado é justamente Outras Américas.
Na geração mais recente, os trabalhos de João Castilho, Pedro David e Pedro Motta, em Paisagem submersa; de Tiago Santana, no seminal Benditos; de Gilvan Barreto, em O livro do sol; de Bárbara Wagner, em Brasília Teimosa, entre tantos (para não citar todos, pois a lista é interminável!), tangenciam, aqui e acolá, de modo mais ou menos direto, a postura de não se fotografar apenas o que se vê, mas o que se percebe.
Contudo, The Americans só foi ter sua real importância compreendida no final dos anos 1960. Faz todo sentido. No período em que ficou hibernando como livro maldito da fotografia, foi se cozinhando o caldo da contracultura, dos movimentos pelos direitos civis e igualdade racial, do sexo drogas e rock’n’roll, da Guerra do Vietnã, da Guerra Fria, e da liberação de costumes. Esse tempo serviu para amaciar o terreno e permitiu ao livro ser visto como antecipador de boa parte dessas tensões e como se podia abordá-las visualmente.
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Mas aí (sempre há um “mais aí” em histórias improváveis), o suíço outsider, já com cidadania americana, estava envolvido com outro tipo de lentes. Pendurou a câmera Leica por mais de 10 anos e foi se amarrar no cinema experimental. Há dele filmes desconcertantes como Pull my daisy, com roteiro escrito a partir da peça homônima de Jack Kerouac.
Roteiro, no caso, não é a melhor definição. O filme conta com narração improvisada, poemas escritos coletivamente por Allen Ginsberg, Peter Orlovsky e Gregory Corso, participação de artistas plásticos, músicos, dançarinos e até de Pablo Frank, filho de Robert Frank. O filme “conta” a história de um maquinista de trens cuja esposa convida um bispo para jantar. No entanto, os amigos boêmios chegam e interferem quebrando toda a atmosfera, com resultados cômicos e iconoclastas. Tudo filmado em um dia. Pull my daisy foi elogiado por anos como uma obra-prima de improvisação ou, se preferir, o primeiro filme com estética beatnik.
O Robert Frank cineasta realizou mais de 30 filmes, que, se fosse para serem classificados por gênero, oscilavam no en(es)tranhamento entre o underground e o beatnik. Sua filmografia, contudo, não encontrou – ainda – o reconhecimento devido. Talvez a exceção seja The cocksucker blues, feito a convite dos Rolling Stones para o registro de uma turnê. O filme capturou a banda e a comitiva em situações, no mínimo, embaraçosas e que os Rolling Stones preferiam não divulgar. Já que pegava mal censurar, o filme teve sua exibição controlada – leia-se: limitada – pela banda. Robert Frank conseguiu ser demais até para a cabeça dos Stones!
À época, Frank formava um entourage criativo, meio coletivo, meio comunidade, com Sam Shepard, William Borroughs, Allen Gingsberg e Joe Strummer. Além de Kerouac e Allen Ginsberg, estes, parceiros de longa data. “Por que você anda com essa gente, Robert?”, perguntava Walker Adams, crítico e curador de arte, quando acolhia o fotógrafo em seu apartamento. “Eles realmente não têm classe”, dizia, ainda assustado com o amálgama iconoclasta que era o círculo de convivência de Frank.
Em 2008, no cinquentenário de lançamento de The Americans, foi publicado pela renomada Editora Steidl um colossal trabalho de 500 páginas. O Looking In: Robert Frank’s The Americans, organizado por Sarah Greenough, é um exaustivo trabalho de recuperação do contexto ao redor do livro, trazendo, além das fotos, manuscritos, provas de contato, depoimentos e ensaios críticos, resultando em uma atualização valiosa da obra. Em 2017, então, com 92 anos, Frank veio ao Brasil para uma grande retrospectiva do livro e dos seus filmes organizada pelo Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Com projeção dos filmes, exemplares de diversas reedições do livro e materiais inéditos, a exibição atualizou a importância da sua obra.
No último 10 de setembro, Robert Frank encontrou, talvez, a única força capaz de deter o peregrino-forasteiro que o habitava. A morte o levou, aos 94 anos. Estava em casa, com sua esposa June, em Inverness, uma região da Nova Escócia, no Canadá. Mas o seu conjunto e perspectiva de tratamento da realidade ultrapassam em muito esse limite. Análogo ao modo de “fotografar como surge uma civilização e como ela se espalha”, sua obra continua como referência que se alastra. Ainda mais em tempos nos quais o mundo se mostra tão conturbado, instável e repleto de contradições. Ver e rever Robert Frank é cada vez mais uma urgência gritante e inadiável.
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Extra: Assista a dois vídeos sobre Robert Frank realizados pelo Instituto Moreira Sales. No primeiro, o editor Gerhard Steidl fala sobre o conceito da mostra do fotógrafo exibida no IMS, em 2017. No segundo, sobre as diversas edições de The Americans.
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JOSÉ AFONSO JR., professor da UFPE e pesquisador.