Até a manhã de 18 agosto de 2018, poucos brasileiros haviam ouvido falar de Pacaraima. Embora a situação na cidade revelasse uma tensão crescente por conta da entrada de um número cada vez maior de venezuelanos em busca de refúgio no Brasil, acontecimentos excepcionais jamais tinham feito escala naquele lugar. Seus habitantes, pouco mais de 12 mil, conviviam naturalmente com os vizinhos venezuelanos. Sendo ali comum a um brasileiro, por exemplo, entrar em supermercados, bares ou restaurantes e cumprimentar os outros em espanhol.
No menu local, o tambaqui com baião de dois pode figurar ao lado de opções típicas venezuelanas como arepa, pabellón criollo, asado negro, hallaca, cachapas, tequeños ou quesillo venezolano. A pluralidade social e cultural tornou aquele lugar, para mim, algo inteiramente novo e particular. Tal convergência de culturas e línguas, nesse pedaço do Brasil, vem desde os tempos coloniais, despertando a cobiça de ingleses, holandeses, franceses, espanhóis e atraindo correntes migratórias intensas. No entanto, nunca havia despertado o entusiasmo dos governantes brasileiros, até o golpe militar de 1964. Durante a ditadura, uma série de decretos prometia favorecer o “progresso”. E isso trouxe a corrente migratória mais relevante: a brasileira.
Em Pacaraima, assim como em todo o Roraima, se você não for indígena, migrou de algum lugar do país – sobretudo do Nordeste – em algum momento do século XX, em busca de uma vida melhor. Mas a promessa não se cumpriu, os militares foram depostos em 1985, deixando como saldo obras nunca concluídas, casos de corrupção que reverberam até hoje, um número incontável de indígenas assassinados, além dos 400 opositores ao regime, dezenas de milhares torturados e mais de 200 ainda desaparecidos.
Foi uma fake news, inclusive, que desencadeou a expulsão violenta de 1.200 venezuelanos da cidade, entre eles mulheres grávidas, idosos e crianças
Contudo, em Roraima, existem bairros e prédios públicos homenageando e enaltecendo o regime militar e, talvez, essas reminiscências estejam relacionadas ao senso de identidade nacional feroz que aflora na fronteira. Mesmo na situação de extrema precariedade em que se encontrava a cidade, o bairrismo me surpreendia. Entre os moradores, não faltavam elogios à cidade e ao estado. Enquanto entrevistava um cliente de um restaurante que não quis se identificar, cometi um deslize ao notar no caderno a sigla errada do estado. Fui corrigido com uma seriedade que me deixou sem graça:
– É RR e não RO. – Numa tentativa de me desculpar, contemporizei brincando que aquilo era um erro comum, mas não consegui empatia.
– Pode ser comum, mas por aqui a gente detesta quando confundem Roraima com Rondônia.
Aquele indivíduo era natural do Ceará, migrou nos anos 1970 para tentar a vida como garimpeiro. Sem sucesso, pulou de emprego em emprego, até se tornar servente de uma escola estadual no município. Frequentemente, durante nossa conversa, intercalava pontos positivos e negativos de se morar em Roraima, um dos estados menos desenvolvidos do país, o que contribui menos com o PIB, além de ser o único estado que não pertence ao Sistema Interligado Nacional (sistema de produção e transmissão de energia elétrica do Brasil) – o que provoca quedas diárias de energia.
Ele ainda contou estava com salário de servidor público atrasado há três meses devido à crise financeira em que o estado se encontrava. Roraima tinha uma receita prevista para 2018 de R$152 milhões, mas, só com a folha de pagamento, a dívida do estado era de R$188 milhões. Por conta disso, um número próximo de 10 mil servidores públicos estava com seus salários atrasados; alguns estavam há nove meses sem receber, entre eles policiais, bombeiros e os das áreas de saúde e educação.
– Aqui é bom de se viver, mas a gente é obrigado a conviver com sensação do desprezo, declarou. O problema maior é que não temos estrutura nem para nós, e agora a cidade é dos venezuelanos.
Ele se referia aos 96.094 venezuelanos que procuraram a Polícia Federal para solicitar regularização migratória até aquele mês. Desses, 62.128 pediram refúgio e 24.966, residência. Em Pacaraima, o fluxo de entrada de venezuelanos estava entre 500 a 600 por dia, segundo as informações do Exército. Consequentemente, Pacaraima saturou.
O presépio que adornava a entrada do 5102 Escamoto
O único hospital da cidade e os outros 60 estabelecimentos para atendimento ambulatorial estavam lotados de venezuelanos doentes. Na educação, o orçamento só previa 1,7 mil alunos matriculados nas oito unidades de ensino infantil e fundamental, mas, em 2018, as matrículas saltaram para 2.030, com 429 alunos venezuelanos e um déficit de aproximadamente mil vagas. A geração de lixo aumentou 70% e a criminalidade disparou. Enquanto aquele cliente e eu conversávamos, Roraima ocupava a primeira posição no ranking nacional como o estado com o maior número de mortes violentas (homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte), segundo o Monitor da Violência – ferramenta criada pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública –, eram 292 até então. A maior parte atribuída à guerra entre facções do Sudeste, que passaram a disputar territórios com as já temidas facções locais.
Toda essa “sensação de desprezo”, levou-o a se juntar a outros brasileiros instigados pela postura xenófoba da campanha do então candidato à presidência, Jair Bolsonaro, e pelas informações falsas a respeito da crise migratória. Foi uma fake news, inclusive, que desencadeou um dos eventos mais deploráveis do ano: a expulsão violenta de 1.200 venezuelanos da cidade, entre eles mulheres grávidas, idosos e crianças sob explícitas demonstrações xenófobas.
Naquela manhã de 18 de agosto, foi organizada uma manifestação por ocasião do acontecido com o comerciante Raimundo Nonato de Oliveira, um senhor de aparência frágil e humilde, então com 55 anos que, no dia anterior, teve R$ 27 mil roubados, e fora amarrado e ferido na cabeça a golpes de chave de fenda na frente da família por quatro homens “supostamente venezuelanos” (o único dado que sustenta a suspeita é a afirmação de Raimundo que seus agressores se “comunicavam em espanhol”). Liderando a manifestação, estava o professor de espanhol aposentado Fernando Abreu, um homem de gestos autoritários, meia idade, branco, calvo, com cicatrizes de acne no rosto. Em entrevista ao portal Amazônia Real, ele disse que teria lhe chegado, via WhatsApp, a falsa notícia da morte de Raimundo. A poucos metros de onde estavam acampados os refugiados, ele a anunciou. “Foi uma comoção generalizada” – disse. – “Antes de nós dobrarmos a esquina, eu já estava dando a notícia. Ao dobrar a esquina, aconteceu o fato”. Raimundo estava hospitalizado em Boa Vista e no dia seguinte recebeu alta.
Após o ocorrido, a Polícia Civil de Roraima divulgou que 65 % dos boletins de ocorrências registrados na delegacia de Pacaraima envolviam os imigrantes. Mas não detalhou que tipos de delitos eram cometidos. Dali em diante, não havia mais volta. O exército intensificou suas ações repressivas, venezuelanos foram proibidos de acampar e vender produtos nas ruas e a atmosfera ficou envenenada.
Centro comercial de Santa Elena de Uairén, Venezuela
A convivência pacífica entre os povos adquiria outra natureza. Tanto a imprensa roraimense quanto uma parcela representativa da população deixaram de ser capazes de enxergar a realidade, fazendo dos refugiados o bode expiatório dos males provocados, na verdade, por um governo oligárquico que espoliou Roraima por décadas e deixou o estado numa grave crise financeira e moral. Isto, somado a uma mediação irrelevante por parte do governo federal na crise da Venezuela.
– Por pior que seja – continuou aquele cliente – sabemos que isso vai mudar a partir de agora. Não vou deixar de lutar pelo meu país, custe o que custar – comentou, referindo-se à eleição de Bolsonaro. Levantou-se, pagou a conta e saiu, com um olhar que mais tarde me lembraria o de Melinaz, o soldado que nos vigiou durante as 18 horas que passamos detidos no Escamoto.
***
Chegamos lá por volta das 22h30. O Escamoto era um complexo com alguns prédios que entendi serem escritórios, os menores, e dormitórios, os maiores. Ficavam num vasto terreno cercado por mata virgem, de um lado, e colinas, do outro. De uma das colinas emergia uma torre alta de vigia. Havia cinco veículos blindados de infantaria do modelo russo BMP-3, uma pista de pouso para aviões de pequeno porte e para helicópteros. E todos os soldados que vi portavam um fuzil AK-103, também de fabricação russa.
Teríamos que passar a noite ali. O major argumentou que não poderia garantir nossa segurança, caso quiséssemos voltar a pé os cerca de 15 km que nos separavam do Brasil. Em compensação, após verificarem nossas identidades e os equipamentos, “não havendo problema”, seriamos liberados assim que abrissem a fronteira às sete da manhã. Era parte de uma tortura psicológica que se iniciava. Segundo ele, teríamos wi-fi, jantaríamos e seríamos bem-acomodados. Nada disso aconteceu.
O interrogatório aconteceu num cubículo de 3 x 3 m, onde tivemos que responder ao major e a outro oficial, chamado Cézar, um indígena Pemon, sobre perguntas de cunho pessoal. Tive que desbloquear meu celular para que analisassem minhas mensagens no WhatsApp, sob a ameaça de que era “melhor colaborar”. Poucas horas depois, fomos levados ao refeitório. Lá nos serviram um prato de comida azeda e reservaram três colchões sujos – de algo que nem quis saber o que era. Mesmo se quiséssemos dormir, não adiantaria, pois os colchões estavam posicionados sob um dos refletores do enorme refeitório – um galpão de mais ou menos 20 x 30 metros e 6 ou 7 metros de altura enfeitado com símbolos natalinos. O Melinaz não permitiu que tirássemos os colchões debaixo da luz infernal e parecia incumbido de fazer algum barulho irritante ao menor sinal de um bocejo.
A Estacion de Servicio de PDVSA na fronteira entre os dois países
Ao longo da madrugada e até sermos liberados, Melinaz manteve-se indiferente à minha conversa fiada e sondagens jornalísticas informais. Tinha 25 anos, pouco mais de 1,70 m de altura, caboclo de olhos cor de mel. Era um primeiro-tenente subalterno resignado, que perdeu a oportunidade de ser capitão após ter abandonado seu posto para estar presente no funeral de sua filha. Ela se chamava Maria e tinha apenas um mês de vida. Ele me contou que Maria morreu graças à falta de médicos no hospital em que deu entrada por uma reação alérgica ao leite em fórmula. Culpava o chavismo pela morte da criança e tecia críticas ao governo enquanto, às suas costas, fixada em uma das paredes do refeitório, uma placa vermelha trazia o rosto redondo de Hugo Chavez acompanhado da ameaça: “En neste ambiente no se habla mal de Chavez”. Tinha um olhar meio alucinado, quase não piscava, não me olhava nos olhos, mas para algo atrás de mim, como se estivesse sempre desconfiado de alguma coisa.
Confidenciou-me, por 10 bolívares soberanos (algo em torno de R$ 0, 50 na cotação do mês) que muitos dos aproximadamente 160 soldados que habitavam aquele lugar estavam insatisfeitos. Contou-me que os “jefes” estavam “paranoicos” pois, após o atentado de agosto, foram avistados, no mesmo mês, drones sobrevoando o Escamoto. Os atiradores da torre da colina dispararam, mas, segundo Melinaz, os supostos drones escaparam para o lado da fronteira com a Colômbia. “Supostos drones”, ele frisou. Pois, para ele, eram discos voadores. “En estas regiones aisladas extraterrestres suelen aparecer”, pontuou. Antes de sermos interrogados pela última vez, Melinaz disse, com a voz fria e o olhar vago, para não nos preocuparmos, se fôssemos espiões de verdade, não estaríamos conversando.
***
Às 6h, após mais uma bateria de perguntas com um tenente chamado Luiz, uma figura excêntrica, que chegou a dormir enquanto ouvia os áudios de Fernanda que continham os sons ambientes gravados por ela momentos antes do sargento Leivar nos deter, nos informaram que seriamos liberados. Mas isso não aconteceu de imediato, tínhamos que esperar as ordens do major, que só chegaria às 10h. Sentia-me exausto. Estava deitado sobre uma das mesas, quando Maurício cruzou a porta. Acompanhado de dois soldados com fuzis em punho, como se fosse um terrorista procurado, ele caminhou tranquilamente até onde estávamos.
Ficamos surpresos e receosos com sua chegada. Julguei a sua decisão arriscada e estúpida, pois a presença de um colombiano poderia recrudescer a desconfiança dos militares em nosso grupo cosmopolita e, de algum modo, reforçar a ideia de complô resultando em mais horas de interrogatório. No entanto, fiquei alegre em ver um rosto conhecido. Foram aproximadamente 18 horas de detenção, mas cada minuto pareceu uma eternidade.
Aparentemente, não havia mais o que investigar a nosso respeito. O tenente Luiz voltou após longos minutos com quatro folhas de papel-ofício e começou a redigir um documento para cada um de nós à mão. Isso levou mais duas horas. O documento dizia basicamente que nenhuma lei havia sido descumprida e que os militares estavam no seu direito, defendendo a soberania nacional. Também dizia que o major Bassantes havia cumprido sua promessa de nos acomodar com dignidade. Nenhum de nós quis contestar. Não havia escolha. Assinei remoendo a humilhação.
***
No dia seguinte, voltamos para Boa Vista. Dali, cada um seguiria seu caminho: Fernanda para São Paulo, Álvaro e Maurício para a Colômbia e eu para o sertão pernambucano. O sol se punha e sua luz tingia de âmbar o lavrado. Pacaraima ficava para trás, mas eu ainda relutava com aquela sensação estranha.
Tanto em periferias de grandes cidades quanto nos rincões do sertão nordestino, já me deparei com a mesma condição. Ameaça indeterminada, como se uma fera estivesse à espreita na escuridão aguardando o momento de atacar. Os Pemon, o grupo étnico que habita a região sudeste do Estado de Bolívar, no sul da Venezuela, e toda a extensão noroeste do estado de Roraima, têm um nome para essa fera. Eles a chamam de Canaima ou Kanaimé, uma divindade diabólica e paradoxal relacionada à dominação espiritual e política dos povos indígenas.
Em Roraima, existem bairros e prédios públicos homenageando e enaltecendo o regime militar
São atribuídas à Canaima as mortes violentas que acontecem na região sem aparente motivo. Expressa a violência que não possui mediação possível. Sintetiza o outro como inimigo, mas também pode possuir integrantes do mesmo grupo. Curiosamente, mesmo que haja o reconhecimento da maldade de Canaima, existe uma forte ligação identitária em relação a essa entidade. E esse é o paradoxo pois, está em poder de Canaima, aquele que ataca de forma violenta, mas também defende os seus parentes e suas formas de organização social e política.
Para mim, essa entidade tem outro nome: Estado. Essa entidade que nos absorve, nos funde e enlouquece tal como faz Canaima. No início, roubou-nos a dignidade, ao subtrair o reconhecimento dos nossos direitos mais elementares. Quando constituído formalmente, com seus aparatos repressores e políticas públicas arbitrárias, o Estado passou a nos sacrificar como bodes expiatórios para seus desejos civilizatórios, gananciosos e de poder.
Uma imagem sintetiza o que eu quero dizer: na entrada do 5102 Escamoto, havia um presépio que representava Jesus e sua pobre família recebendo a visita de um Papai Noel montado num blindado disfarçado de trenó. A imagem era a metáfora visual perfeita para a relação diametralmente oposta entre povo e Estado, no contexto sociopolítico latino-americano. Uma cultura outra elevada a uma condição de superioridade quase inquestionável, enquanto o outro, atávico, é reduzido a figura de um infeliz que deve ser invisibilizado, ou melhor, sacrificado para se manter o status quo. Ou como explicar o feminicídio, a xenofobia, o racismo, a homofobia, as milícias, o crime organizado e toda a engrenagem da violência estrutural no nosso continente? A obviedade desse mecanismo torna tudo ainda mais ameaçador. Assim como Canaima possui uma ligação identitária com os povos Pemon, nós, não-índios, também possuímos esse elo paradoxal com o Estado. E até onde se vê, a conciliação parece ser possível apenas pelo sacrifício de nossas vidas ou de nossa sanidade.
TIAGO HENRIQUE, fotojornalista e pesquisador paulistano nascido em 1987. Baseado entre o agreste e o sertão de Pernambuco desde 2014, dedica-se a documentar a vida de pessoas que detêm os conhecimentos e as técnicas necessárias para preservação da cultura popular e as transformações socioculturais do sertão contemporâneo.