Passados quase 15 anos de sua morte, a importância histórica de Arafat é indiscutível, mas o problema que mobilizou toda a sua atuação permanece sem solução à vista. De líder guerrilheiro a ganhador do Prêmio Nobel da Paz, desempenhando o papel de “herói revolucionário” ou de “arquiterrorista”, sua trajetória continua sendo motivo de polêmicas. O Oriente Médio, cenário dessa história, enveredou por outras prioridades que enfatizam mais a democracia e o fim dos regimes baseados em líderes autocráticos pós-coloniais, herdeiros do modelo instituído por Gamal Abdel Nasser, no Egito. O resultado da luta pela democracia até agora é negativo, o que só complica a situação dos palestinos.
Yasser Arafat se insere na tradição de figuras políticas do século XX que se notabilizaram na luta anticolonial. Líderes como o sul-africano Nelson Mandela, o congolês Patrice Lumumba e o vietnamita Ho Chi Minh, todos foram muito influenciados pela geopolítica que dividia o mundo em suas épocas e que, pelo menos em algum momento, defenderam ideias socialistas. Pegaram em armas para depois adotarem táticas de luta pacíficas e chegaram, de uma forma ou de outra, ao poder.
De todos os exemplos citados, porém, Arafat foi o que teve o poder nas mãos da forma mais instável e passageira. O pouco do controle real sobre uma estrutura de Estado (no caso da Autoridade Palestina) aconteceu depois do chamado Acordo de Oslo, assinado em Washington no final de 1993, por Arafat, como presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), pelo então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, e pelo ministro de relações exteriores Shimon Peres. Os três ganharam o Prêmio Nobel da Paz do ano seguinte. Pelo acordo, palestinos e israelenses concordaram em um certo grau de autonomia para os primeiros na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, territórios que haviam sido anexados pelos israelenses em 1967.
Gradualmente, os dois lados marchariam para uma solução baseada na existência de dois estados nacionais convivendo no mesmo território. Mas a Autoridade Palestina, liderada por Arafat, sempre teve sua atuação muito limitada e sempre foi questionada. Por um lado, pela militância palestina mais radical de grupos como o Hamas e a Jihad Islâmica (que nunca reconheceram o direito de Israel à existência). Por outro lado, pelos israelenses contrários ao acordo, que voltaram ao poder com o partido conservador Likud, com os primeiros-ministros Benjamin Netanyahu (de 1996 a 1999 e de 2009 até o presente) e Ariel Sharon (de 2001 a 2006). No final da década de 1990, Arafat estava isolado num bunker, cercado novamente pelos inimigos israelenses, administrando um arremedo de Estado, sem poder circular livremente pelo próprio território da Cisjordânia. Seus últimos anos foram uma repetição da trajetória experimentada na maior parte da vida adulta.
Em 1974, Arafat entrou para a história como o primeiro líder, sem representar um governo já estabelecido, a discursar na assembleia da ONU. Imagem: Reprodução
DA FATAH À OLP
Arafat nasceu no Cairo, capital do Egito, em agosto de 1929, filho de pais palestinos. Segundo outra versão, seu local de nascimento teria sido a casa do avô na cidade velha de Jerusalém. Passou parte da infância e juventude na capital egípcia, onde estudou engenharia na Universidade Rei Fuad I. Em 1948, com a criação de Israel, engajou-se no movimento palestino e mudou-se para a Cisjordânia. Em 1950, fundou o movimento armado conhecido como Fatah, já na época dividido em facções. Em 1967, após a Guerra dos Seis Dias, na qual Israel anexou ao seu território a Cisjordânia e a Faixa de Gaza (áreas majoritariamente habitadas por palestinos), Arafat entrou para a OLP, movimento pelo qual ficaria conhecido mundialmente.
A Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967 (entre Israel e os vizinhos), terminou com a derrota dos árabes. Mas Arafat e a Fatah se consideraram moralmente vitoriosos porque a maioria dos palestinos, que até então tendia a se alinhar com os governos árabes individuais, agora concordava que uma solução para o seu drama era indispensável e passava pela organização de suas próprias forças. Partidos políticos como o Movimento Nacionalista Árabe, de George Habash, o Alto Comitê Árabe, de Haj Amin al-Husseini, a Frente de Libertação Islâmica e vários outros grupos desmoronaram depois da derrota dos governos que os patrocinavam. Disfarçado, Arafat cruzou o rio Jordão e entrou na Cisjordânia. Lá, montou centros de recrutamento em Hebron, Jerusalém e Nablus, juntando guerrilheiros e financiadores para sua causa. A Fatah e a OLP, ambas controladas por ele, seriam, a partir daí, a face visível da luta dos palestinos.
Logo depois da derrota dos árabes para Israel, os campos de refugiados de palestinos na vizinha Jordânia foram dominados pela Fatah e a presença ostensiva dos fedayeen, os guerrilheiros, tornou-se uma imagem recorrente no país. Entre eles, Arafat era o mais midiático e carismático. Impressionava pela sua aparência: óculos escuros, barba grisalha, trajes militares, um sorriso levemente irônico no rosto e uma kaffiyeh sobre a cabeça – um lenço quadriculado que tinha como padrão uma rede de pescadores.
CONSTRUINDO UMA IMAGEM
Os acontecimentos de 1967 lhe deram destaque. As batalhas foram cobertas em detalhes pela revista Time e Arafat apareceu na capa da edição de 13 de dezembro de 1968, tornando-se mundialmente conhecido. Foi um acontecimento decisivo para construção de sua imagem como herói nacional, aumentando o apoio financeiro e armado à sua organização.
Yasser Arafat personificava agora a luta pela libertação de todo um povo. Uma espécie de Che Guevara do Oriente Médio, aquele líder de perfil romântico que mistura a violência das armas em um certo ar poético à procura da justiça social. O tipo de liderança que desperta, por onde passa, quantidades gigantescas de amor e ódio. Quando, em 1974, tornou-se o primeiro líder a discursar na Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, sem representar um governo já estabelecido, disse a famosa frase: “Hoje eu vim aqui usando um ramo de oliva e uma arma de guerrilheiro. Não deixem que o ramo de oliva caia da minha mão” – repetiu a segunda frase duas vezes, num tom que poderia ser interpretado tanto como um pedido quanto como uma ameaça. Durante o discurso, Arafat usava trajes militares e portava uma cartucheira vazia.
Ele tornou-se mundialmente conhecido quando foi capa da
revista americana Time, em 1968. Imagem: Reprodução
O discurso aumentou o apoio internacional à causa palestina. As imagens de Arafat, na ONU, agora rivalizavam em importância com o momento em que foi capa da revista Time, seis anos antes. Só teriam concorrente quase duas décadas depois, quando ocorreu o aperto de mão nos jardins da Casa Branca entre ele, Shimon Peres, Yitzhak Rabin e o presidente Bill Clinton.
Apelo popular, carisma e uma compreensão da necessidade de uma imagem marcante nunca lhe faltaram. A jornalista norte-americana Robin Wright lembra, no seu livro Dreams and shadows: the future of the Middle East (Sonhos e sombras: o futuro do Oriente Médio), de 2008, que Arafat dirigia um automóvel conversível Thunderbird pintado em dois tons de cor-de-rosa, quando era um engenheiro de sucesso no Kuwait, antes de embarcar na luta armada.
Wright relembra também uma inusitada troca de presentes entre Arafat e o então ditador da Líbia, Muamar Kadafi, durante uma visita. O líbio foi presenteado com uma antiga sela de camelo. Em troca, deu ao palestino um estojo de malas da grife Samsonite, ironicamente úteis para um refugiado sempre em movimento. O palestino foi também padrinho de casamento do espalhafatoso ditador de Uganda, Idi Amim Dada, em 1975.
Entre suas peripécias, um dos episódios mais importantes ocorreu em 1992: a queda de um avião de passageiros da Air Bissau no qual viajava Arafat. O desastre, ocorrido no deserto da Líbia, durante uma tempestade de areia, matou dois pilotos e um passageiro. O líder palestino saiu ferido, mas escapou.
CONFLITO ENTRE ÁRABES
Mas a chamada causa palestina – o indiscutível direito de um povo a ter um território onde morar e construir sua vida – vai muito além da simbologia contida nos anos de militância de Arafat e da centenária disputa por espaço com o povo judeu. A questão se insere num quadro maior de rivalidades no Oriente Médio, uma complexa teia de interesses e disputas entre os povos árabes que é levada a cabo por dezenas de governos, centenas de partidos políticos, facções rivais entre si, organizações (em sua maioria armadas), grupos dissidentes, alianças instáveis, o que torna a questão parte de um tabuleiro complexo e de solução quase impossível.
Um dos momentos mais dramáticos dessas disputas entre os árabes foram os episódios que ficaram conhecidos como Setembro Negro, uma série de sequestros de grandes aviões de passageiros realizados, na Europa, por grupos armados no início dos anos 1970. Os aviões foram levados à força, pelos palestinos, para a Jordânia. Os passageiros foram retirados e, em seguida, os aparelhos foram explodidos diante das câmeras da imprensa internacional. O grupo que realizou os sequestros, também conhecido como Setembro Negro – igualmente responsável pelo massacre de onze atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972 – era um braço armado da OLP e até hoje se discute se Arafat autorizou ou não os ataques.
O governo da Jordânia, que havia anos vinha sendo forçado a tolerar a presença ostensiva de milhares de guerrilheiros em seu território, resolveu agir para expulsar as tropas palestinas. Tamanho era o nível de animosidade entre jordanianos e palestinos que, quando perderam suas bases no país, alguns guerrilheiros preferiram, a qualquer acordo com os jordanianos, se unir na resistência, temporariamente, às arqui-inimigas tropas israelenses estacionadas na fronteira.
Depois de romper com o governo da Jordânia, Arafat passou um tempo na Síria e depois foi com seus guerrilheiros para o Líbano, onde participou da guerra civil na década de 1970, ao lado da facção de Kamal Jumblatt, do Movimento Nacional Libanês, de tendência comunista.
Com a sucessão de conflitos com os israelenses, mas também com outros países árabes, viveu quase sempre na semiclandestinidade, cruzando fronteiras, junto a seus guerrilheiros, em busca de abrigo e apoio. Foi cinematográfica sua retirada do Líbano, junto com centenas de guerrilheiros palestinos embarcados em um navio. A retirada só foi possível com um aval militar de várias forças internacionais envolvidas no conflito. Os palestinos foram escoltados por 800 fuzileiros navais norte-americanos na viagem até a Tunísia, onde passou a morar.
Muitos especialistas na região acreditam que Arafat escapou de inúmeras tentativas de assassinato porque seu desaparecimento não interessava nem a Israel nem aos EUA. Israel não queria que ele fosse transformado em mártir e os EUA temiam que o seu desaparecimento fortalecesse forças mais radicais, como o Hamas. Em 1988, chegou a admitir numa entrevista à revista Time que nunca dormia duas noites seguidas no mesmo lugar.
TEMPO DE NEGOCIAR
Em 15 de novembro de 1988, a OLP proclamou a independência do Estado da Palestina. Em discurso no mesmo momento, Arafat repudiou todas as formas de terrorismo e reconheceu a Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU que estabelecia o direito do Estado de Israel existir “em paz e segurança”. Isso representou uma mudança significativa de orientação na OLP já que um dos seus principais objetivos era a destruição do Estado de Israel. Significou também um sinal de que caminharia em direção à tentativa de estabelecimento de dois estados na região. Foi a base das negociações ocorridas secretamente em Oslo, na Noruega, que levaria ao acordo assinado em Washington no ano de 1993.
Mas a invasão do Kuwait por tropas do Iraque de Saddam Hussein, em 1990, representou outro complicador no cenário regional. Saddam contou com o apoio de Arafat, fato que levou alguns governos árabes a cortarem ajuda financeira direcionada tradicionalmente à OLP. Vários governos e grupos empresariais transferiram seu apoio financeiro ao Hamas e a outros grupos islâmicos rivais de Arafat, o que viria a ser, nos anos seguintes, um fator importante no fracasso das tentativas de se obter uma solução pacífica para o conflito. A eclosão da primeira intifada, revolta popular contra a ocupação israelense, também complicou as tentativas de entendimento com Israel.
Famoso acordo de Oslo, mediado pelo presidente americano Bill Clinton, em 1993, entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat. Imagem: J. David Ake/AFP
Depois do acordo de paz de Oslo, em 1993, Arafat mudou-se para a Cidade de Gaza, começou a estabelecer os instrumentos de poder estatal no território. Mas os anos no comando da Autoridade Nacional Palestina (ANP), entre 1994 e 2003, foram marcados por denúncias de autoritarismo contra facções rivais, corrupção e desvios financeiros. Uma investigação realizada pelo Government Accountability Office (Escritório de Contabilidade do Governo), órgão do congresso norte-americano, revelou que Arafat e a OLP tinham bens no valor de 10 bilhões de dólares, enquanto estavam, publicamente, alegando falência. Na guerra de propaganda, Israel fez acusações até de falsificação de dinheiro, baseadas na apreensão de grandes quantidades de notas falsas nas dependências da ANP, em Gaza. Os palestinos alegaram que o dinheiro falso havia sido apreendido de criminosos e ia ser destruído.
Em março de 2003, muito desgastado, Arafat passou o cargo de primeiro-ministro para Mahmoud Abbas. Sua relação com Israel tinha se deteriorado a ponto de ser cercado por tropas e impedido de sair de sua base administrativa, na cidade de Ramallah. Como tudo em vida, sua morte – ocorrida em um hospital de Paris, na França, em novembro de 2004 – também foi cercada de polêmicas e versões conflitantes. Houve suspeitas de que um envenenamento provocou sua internação no hospital francês. Relatórios elaborados por comissões formadas por especialistas russos, suíços e franceses chegaram a conclusões discrepantes, mas a forte suspeita de envenenamento se manteve.
PAPEL HISTÓRICO
Num artigo conjunto publicado na The New York Review of Books, os acadêmicos Robert Malley (norte-americano) e Hussein Agha (libanês), especializados em Oriente Médio e ex-participantes nas negociações entre o governo norte-americano e os palestinos, fizeram uma avaliação generosa do papel histórico de Arafat, contudo também demonstra a complexidade do personagem: “Ele foi a ponte entre os palestinos na diáspora e aqueles de dentro, os despossuídos de 1948 e aqueles que foram ocupados em 1967, os da Cisjordânia e os de Gaza, jovens e velhos, ricos e pobres, trapaceiros e trabalhadores honestos, modernistas e tradicionalistas, militaristas e pacifistas, os de orientação religiosa e os laicos. Foi um líder nacional, um homem de tribo, patriarca, empregador, samaritano, líder de um movimento secular e nacionalista e profundamente devoto, tudo isso de uma vez, aspirando incorporar cada um desses grupos divergentes. Sua posição de proeminência raramente foi questionada”.
Na cidade de Ramallah, na Cisjordânia, a mukataa (o forte administrativo-militar onde ficou cercado nos seus últimos anos de vida) foi transformada, em 2016, em um museu que tenta retraçar sua vida. O próprio estabelecimento do museu é parte da trajetória de aventuras que acompanharam Arafat. No qual, entre os objetos reunidos, encontra-se uma caixa de fotografias de família que estava com ele na Faixa de Gaza. Porém, quando o Hamas assumiu o controle do território, após sua mudança para a Cisjordânia, a antiga base foi saqueada e as fotos acabaram à venda em uma feira livre. Por sorte, foram resgatadas e levadas para o museu.
PRIMAVERA OU INFERNO
A partir do final de 2010, com o início dos protestos por democracia que se espalharam nos países árabes do norte da África e do Oriente Médio, a questão palestina perdeu espaço no noticiário internacional. Os distúrbios ocorreram primeiramente na Tunísia e depois se espalharam para o Egito, Líbia, Síria, Iêmen, Bahrein, entre outros países. A chamada Primavera Árabe colocou em evidência não mais a reivindicação do Estado Nacional e sim da democracia. Foi ficando evidente que os palestinos estavam engajados em uma luta que já, há muito tempo, havia sido superada pelos outros árabes, todos independentes das potências coloniais que dominaram a região, a partir do Império Otomano até meados do século XX. Na segunda década do século XXI, a luta era para se livrar de líderes autocráticos que se perpetuaram no poder (Zine el-Abidine Ben Ali, na Tunísia, Kadafi, na Líbia, Hosni Mubarak, no Egito, Bashar al-Assad, na Síria). Enquanto isso, os palestinos, agora sem Arafat, ainda precisavam conquistar seu próprio território e sua autonomia.
Sabe-se, agora, que a chamada Primavera foi mais um surto de pensamento positivo do que um movimento assentado em bases reais. Com exceção da Tunísia, os resultados foram desastrosos. No Egito, as eleições democráticas levaram ao poder os fundamentalistas da Irmandade Muçulmana. Descontentes, os militares interviram e o antigo regime de Hosni Mubarak acabou sendo substituído por uma espécie de ditadura militar (com um relaxamento relativo nos últimos anos). Na Líbia (então detentora do maior PIB da África), o país onde as potências ocidentais mais se engajaram na luta brutal, a deposição de Muamar Kadafi levou a um estado de anarquia, com o território ainda hoje dividido e controlado por milícias. O Iêmen e a Síria entraram em uma sangrenta guerra civil. Na Síria (e também no Iraque), o Estado Islâmico chegou a ocupar um terço do território, mas nenhum dos grupos em conflito conseguiu derrubar o regime de Bashar al-Assad.
O governo norte-americano, antigo aliado dos regimes de força na região, com Barack Obama à frente, assistiu a tudo de forma hesitante. Situação que, em 2013, foi analisada por Vali Nasr, acadêmico iraniano (radicado nos EUA) no livro The dispensable nation: American foreign policy in retreat (A nação dispensável: política externa americana em recuo). Lá, ele qualifica a atuação norte-americana na crise como a produção de um “teatro do absurdo”.
O balanço até agora é terrível: centenas de milhares de mortos (560 mil somente na Síria), cidades arrasadas, milhões de refugiados (quase 6 milhões apenas na Síria, novamente o país mais afetado), um fluxo incessante de refugiados cruzando o Mediterrâneo em direção à Europa. E, até agora, quase nenhum avanço democrático real. Somam-se a isso a expansão do terrorismo internacional e o aumento da xenofobia contra estrangeiros em várias partes do mundo.
O diplomata jordaniano Marwan Muasher, acadêmico do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, defende o uso da expressão “segundo despertar árabe” para o que alguns chamam de “primavera” e outros qualificam como “inferno árabe”. No livro The second Arab awakening and the battle for pluralism (O segundo despertar árabe e a batalha pelo pluralismo), de 2014, ele lembra que a primeira onda de liberalização foi abortada no final do período colonial quando, “déspotas estrangeiros foram substituídos por outros, agora nativos, que prosseguiram mandando na região por mais de 50 anos”. O erro fatal desses governos pós-independência foi, segundo Muasher, no fundo, constitucional. “Nenhum deles, seja monarquista ou republicano, deu muita atenção aos sistemas pluralistas de governo, nem construiu sistemas de pesos e contrapesos no poder executivo, ou promoveu a rica diversidade de suas populações. Em lugar disso – a legitimidade ganha –, durante as lutas pela independência, transformou-se em diversas formas de mando autocrático”.
Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin ganharam o Prêmio Nobel da Paz, em 1994. Imagem: Wikimedia Commons
Neste novo despertar árabe, elementos inéditos entram em cena. O livro The people want: a radical exploration of the Arab uprising, (O povo quer: uma investigação radical sobre o levante árabe), de 2014, de Gilbert Achcar, professor na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, examina o problema através de novos fenômenos que passaram a fazer parte da luta política do Oriente Médio. Elementos como o papel desempenhado pela rede de TV internacional Al Jazira (sediada no Catar), o uso de novas tecnologias de comunicação na militância e o crescimento da Irmandade Muçulmana. Achcar acrescenta, na sua análise, os velhos ingredientes que estimularam os protestos, como o nepotismo nas velhas estruturas de governo e a presença da corrupção.
EXPECTATIVAS FRUSTRADAS
Enquanto israelenses e palestinos continuam presos a uma luta nos modelos do século XX, a disputa por territórios revela dois novos cenários no Oriente Médio. O primeiro é a tentativa de estabelecimento de um califado medieval baseado em interpretações fundamentalistas do islã (como é o caso da Irmandade Muçulmana, no Egito, e do Estado Islâmico, na Síria e no Iraque).
O segundo cenário é o crescimento, entre a população mais jovem e ocidentalizada, das aspirações pela democracia no estilo ocidental. Resistindo a tudo isso estão as forças tradicionais – os governos de tradição autocrática estabelecidos na década de 1950 – que também continuam fortes. As incertezas dominam qualquer análise.
Toda essa ebulição se reflete também no mundo da cultura e das artes. A jornalista Alexandra Alter escreveu no New York Times, em 2016, que cinco anos após os levantes populares no Egito, Tunísia e Líbia, estava se criando raízes na região uma literatura pós-revolucionária de tom apocalíptico. “Alguns escritores estão usando ficção científica e fantasia para descrever as realidades políticas sombrias. Outros estão escrevendo sobre assuntos como sexualidade, ateísmo, ou escavando episódios dolorosos que antes estavam proibidos. Em uma cultura literária em que a poesia tem sido o meio mais celebrado, escritores estão experimentando uma gama de gêneros e estilos que incluem graphic novels, quadrinhos, romances de horror alucinatório e trabalhos alegóricos de ficção científica”.
Alter cita Layla al-Zubaidi, coeditora de uma coleção de escritos pós-Primavera Árabe intitulado Diaries of an unfinished revolution (Diários de uma revolução inacabada) onde escreveu: “Estas histórias futurísticas são sobre uma utopia perdida. As pessoas realmente puderam imaginar um futuro belo e agora é quase pior do que era antes”.
As estruturas não mudam facilmente. Na Arábia Saudita, o poeta Ashraf Fayadh foi condenado à morte, ano passado, por seus versos, que autoridades religiosas consideraram blasfemos. Depois de protestos internacionais, sua sentença foi reduzida para oito anos de prisão e 800 chicotadas. No Egito, no governo do presidente Abdel Fattah el-Sisi, foram fechadas galerias de arte, atacadas editoras e confiscadas cópias de livros encarados como controversos. Em 2015, autoridades alfandegárias apreenderam 400 exemplares do livro Walls of freedom: street art of the Egyptian revolution (Muros da liberdade: arte de rua da Revolução Egípcia), de Don Stone Karl, Basma Hamdy e Adhaf Soueif, que trata sobre arte de rua no Egito, acusando-o de instigar a rebelião.
O VELHO IMPASSE
Aos palestinos resta ainda a velha questão da autonomia. Ahmad Samih Khalidi, que esteve envolvido com as negociações de paz durante três décadas e é membro do St. Antony’s College, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, em um artigo de 2017, intitulado O fim da estrada: o declínio do movimento nacional palestino, publicado na revista The New Yorker, escreveu: “O movimento, fundado e dirigido por Arafat e materializado pela autoridade palestina, Fatah e OLP no último meio século, está chegando ao fim”. Ele acha que, na medida em que suas instituições encolhem e seus líderes desaparecem, não há sucessores óbvios para tomarem seus lugares.
“Com a morte de Arafat, a Fatah perdeu não só seu fundador e líder da fase militante, mas sua própria razão de existir. Sem a luta armada, o movimento nacional ficou sem uma ideologia clara, sem um discurso específico, sem uma experiência distinta ou caráter. Na ausência de um estado genuíno e independente, foi incapaz de transformar-se num partido, como o Congresso Nacional Africano fez na África do Sul. Permaneceu incompleto e suspenso: um movimento de libertação sem muita libertação, preso a um processo de negociação infrutífero, e que teve negados os meios de administração por uma combinação da teimosia de Israel e de suas próprias deficiências”.
A chamada Primavera Árabe se espalhou chegando ao Iêmen que, assim como a Síria, entrou numa guerra civil. Imagem: Wikimedia Commons
Sobre as outras lideranças, como Mahmoud Abbas, o professor Ahmad Khalidi diz que ele teve “sucesso em isolar o povo palestino da maior parte da violência e destruição da Primavera Árabe e do crescimento de movimentos salafistas (ultraconservadores sunitas) e jihadistas na Cisjordânia”. Mas não conseguiu nenhuma mudança significativa na posição de Israel. “Na verdade, as exigências de Israel para uma resolução final em assuntos como o status de Jerusalém e a extensão da autonomia palestina visivelmente foram endurecidos”.
Segundo Khalidi, o governo do Hamas na Faixa de Gaza, que já dura uma década, tem sido afetado pelas mesmas acusações de corrupção, incompetência e autoritarismo que atingiram a Autoridade Palestina, em Ramallah, mas com a carga adicional de isolamento e constante vigilância por parte de Israel. “Em assuntos de luta armada, diplomacia e administração, os que procurarem no Hamas um substituto para a Fatah acharão difícil defender que o Hamas cumpriu sua missão onde a Fatah falhou”.
O diplomata inglês Brian Urquhart, ex-subsecretário-geral da ONU que, aos cem anos de idade, é uma espécie de decano da diplomacia internacional, ao escrever na New York Review of Books, tenta resumir em duas perguntas dramáticas todo o impasse da Palestina nas últimas décadas: “Já houve um lugar na terra tão assustador como o Oriente Médio, pela arrogância e falta de consideração com o passado, pelos interesses especiais e pela irresponsabilidade de forasteiros poderosos, e agora pelo ciclo e indignação e vingança que consome israelenses e palestinos numa luta desigual e mortal? Algum outro problema histórico absorveu tanto esforço para ser resolvido com tão poucos resultados positivos?”
MARCELO ABREU, jornalista, escritor, autor de livros-reportagem como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder!