Em uma das cenas mais instigantes de Simonal, cinebiografia de estreia do diretor carioca Leonardo Domingues, lançada no dia 8 deste mês, nos cinemas brasileiros, há um plano-sequência que ilustra bem a película sobre o cantor “que todo mundo queria ser”, como o denominou o Jornal do Brasil, em 1969.
A câmera filma a magnética performance de Meu limão, meu limoeiro nos anos 1960, na qual Simonal regia a plateia em vozes, transformando aquela canção banal em transe pop. Percebendo que a plateia estava “no bolso” – já que seguia cantando o refrão repetidamente, comandado por ele –, Simonal abandona o palco e vai para a coxia, caminha pelos salões internos do teatro, passa pela portaria, vai até a esquina e toma um uísque no bar. A câmera segue acompanhando toda sua perambulação até sua volta ao teatro e presencia o espanto dos espectadores que chegam atrasados ao show e veem o artista principal fora do palco. Simonal volta para o apoteótico final da cena regendo a multidão animada. O plano-sequência dura exatos 2 minutos e 18 segundos e revela a liberdade dramatúrgica do diretor no longa.
É a primeira vez que a vida de Simonal pode ser dramatizada de forma livre. Nas obras sobre o cantor, antes desse filme, o desejo era sempre a busca por verdades, fatos e “provas”, em sua trajetória, que iluminassem sua queda monumental. Em 1971, no auge da fama, o cantor acusou seu contador de roubar dinheiro de sua empresa. Com influência no DOPS, a temida polícia política da ditadura, Simonal foi posteriormente acusado de mandar torturar seu contador para que este assumisse os desfalques. A partir daí surgiram boatos de que, além de mandar torturar, Simonal também teria dedurado artistas de esquerda para os órgãos de repressão da ditadura militar.
Simonal foi condenado e preso em 1974. Trata-se de um dos paradoxos mais curiosos e pouco compreendidos de seu tempo: alguém que se identificava com a ditadura foi punido por este mesmo regime por utilizar, de forma particular, dependências e práticas persecutórias que o regime usava em sua luta ideológica, embora negasse publicamente. Morreu ostracizado em 2000 e quase ninguém se lembra da bonita cena recriada agora pelo longa.
Intérprete de Wilson Simonal, o ator Fabrício Boliveira buscou uma dimensão mais íntima do cantor "que todo mundo queria ser". Foto: Divulgação
Em parte, as pessoas não se lembram desta cena porque, de fato, nunca aconteceu. Trata-se de uma licença retórica criada por Chico Anysio e Ziraldo quando estes participaram do documentário Ninguém sabe o duro que dei, de Calvito Leal, Micael Langer e Claudio Manoel, lançado em 2009. Este documentário foi uma das primeiras obras a tematizar o cantor, ao lado do livro Simonal: quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga (Record, 2011), do autor deste texto, e da biografia Não vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal (Globo Livros, 2009), do jornalista Ricardo Alexandre.
Wilson Simonal de Castro era, então, um dos mais famosos, paparicados e idolatrados cantores dos anos 1960. Para ilustrar a vida do cantor e sua queda, o filme reconta a sua biografia a partir de uma perspectiva linear, como também foi feito em outras cinebiografias recentes, como Elis (2016), de Hugo Prata, e Minha fama de mau (2019), de Lui Farias, sobre a juventude de Erasmo Carlos. Saindo-se levemente melhor que estes, a película constrói grandes licenças dramatúrgicas que, num caso tão complexo quanto o de Simonal, flertou com subterfúgios inventivos, como explica Leo Rodrigues em entrevista à Continente: “Resolvemos focar em como tudo teria acontecido longe dos olhares do público. Colocamos nossa interpretação sobre como as coisas aconteceram e como ele reagiu a tudo. A gente quis mostrar os bastidores dessa história”, afirma ele.
Num terreno movediço como o dos boatos que condenaram Simonal, a imprecisão do filme talvez torne o seu resgate quase tão fantasioso quanto sua queda. Se em alguns momentos acerta em cheio, como no plano-sequência de Meu limão, meu limoeiro, em outros a imaginação do roteiro compromete a história e, às vezes, sua inteligibilidade.
Assim que começa, letreiros deixam claro que o filme se baseia em uma história real e que esta se passa durante a ditadura. No entanto, até a cena de tortura de seu contador, não há nenhuma outra menção ao governo ditatorial. Há muitas referências ao preconceito da época, tantas que ilustram mais preocupações atuais do que da realidade de então. Superestima-se a importância e ousadia da personagem Tereza, mulher de Simonal, interpretada por Ísis Valverde, que em verdade nunca namorou o produtor musical Carlos Imperial, que no filme é vivido por Leandro Hassum. Há também equívocos cronológicos: a entrevista ao Pasquim em 1971, que no roteiro acaba causando mais desavença entre Simonal e os jornalistas de esquerda, na verdade aconteceu em 1969; também não há menção à viagem de Simonal ao México, junto com a Seleção Brasileira, campeã de 1970, o que daria bastante dimensão de sua fama na época.
Além disso, a condensação dos policiais torturadores amigos de Simonal, no nebuloso personagem de Caco Ciocler, o Santana, também simplifica a participação do cantor no caso, que fica espantado por “não saber” o tamanho do buraco em que estava entrando – no entanto, Simonal era mais soberbo do que ingênuo. Sequer foram lembradas as músicas ufanistas, como Brasil, eu fico, talvez a mais apologética canção cantada por Simonal, composta por Jorge Ben Jor durante o milagre econômico. Esta canção era uma resposta ao famoso slogan da ditadura, “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Nesse sentido, o filme concentra-se na vida privada do artista. Seja como for, estes e outros detalhes (equívocos de figurino, cabelos, carros, instrumentos e gírias da época) não devem chamar tanto a atenção do espectador, que deve se encantar com a boa fotografia, a multidão de cores e a intimidade de um artista consagrado. Foi o que destacou a atriz Ísis Valverde, em uma entrevista realizada com a maioria do elenco para a divulgação do longa: “O filme vem contar sobre a parte mais oculta, por trás das cortinas, dentro das paredes da casa dele. O filme desnuda a história de uma forma muito delicada”, ressalta ela.
Intérprete de Wilson Simonal, o ator Fabrício Boliveira também afirma que buscou uma dimensão mais íntima: “Optei por não ir no caminho da imitação, porque no filme o Simonal aparece em diversas situações e eu tinha que saber desenvolver mais do que a gente tem em registros dele. A partir dos filhos consegui construir um pouquinho mais disso. Mas ficou um híbrido meu também, porque coloquei muito do que acredito que ele era”.
Além da recriação das capas dos discos de Simonal, optou-se pela dublagem da voz de Fabrício nas músicas e apresentações do artista, prática que já é uma tradição em filmes do estilo docudrama da Globo Filmes, como Elis e Minha fama de mau. Simonal foi produzido em parceria com a produtora Pontos de Fuga, TV Zero e Forte Filmes e está sendo distribuído pela Downtown Filmes, que também lançou estas cinebiografias.
Depois de quase 10 anos de trabalho, o que dá bastante ideia do quanto é longo e custoso o processo de filmar no Brasil, o longa poderá finalmente ser visto em mais de 120 salas nas principais cidades do país. Quando foi idealizado, em 2010, poucos eram aqueles na sociedade brasileira que ousariam defender abertamente os horrores do regime ditatorial. Hoje o circo mudou. Seja como for, com tanto tempo de produção, é possível que o filme ilumine novas temáticas. Para o diretor, há um paralelo com os dias atuais: “É claro que o Simonal também teve a culpa dele. Ele cometeu os seus erros. Mas, o que aconteceu é que em cima disso criaram uma fofoca, foi como se fosse uma fake news”, reforça.
GUSTAVO ALONSO é historiador e professor do Departamento de Comunicação da UFPE/Caruaru, além de coordenador do Curso de Pós-Graduação em Música da mesma universidade. Autor dos livros Simonal: quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga (Record, 2011) e Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira (Civilização Brasileira, 2015).