Portfólio

Matheus Rocha Pitta

Pactos de morte

TEXTO BÁRBARA BURIL

05 de Agosto de 2019

Na obra 'Primeira pedra', o artista propõe que o visitante saia da exposição em busca de uma pedra para trocar por um dos cubos de concreto utilizados por ele

Na obra 'Primeira pedra', o artista propõe que o visitante saia da exposição em busca de uma pedra para trocar por um dos cubos de concreto utilizados por ele

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 224 | agosto de 2019]

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Em uma pequena sala no segundo andar da Pinacoteca do Estado de São Paulo, no início de fevereiro deste ano, encontrei-me com aquilo que mais tarde descobri se chamarem estelas. Eram obras do artista mineiro, natural de Tiradentes, Matheus Rocha Pitta. Chapas altas e largas de concreto com imagens nelas incrustadas – recortadas de jornais, meio amareladas e um tanto desbotadas – trouxeram ali, na Pinacoteca mesmo, embora só para mim, o Cemitério de Santo Amaro, localizado no bairro homônimo recifense.

A crueza do concreto e a dureza daquela forma em bloco pareciam trazer para dentro do museu uma sensação similar àquela que experienciamos quando nos encontramos com a precariedade arquitetônica de um cemitério cheio de lápides, popular. É assim em Santo Amaro: sem muitas elaborações decorativas e requintes arquitetônicos, diferente de um cemitério de aristocratas, como o da Recoleta, em Buenos Aires. Também sem a limpeza e a assepsia tecnológica dos cemitérios de pessoas ricas que vemos em filmes norte-americanos. A obra, que se chama Acordo, não era sobre Santo Amaro, mas ela tinha algo de Santo Amaro que eu não sabia articular.


Em Acordo, Matheus Rocha Pitta faz uso de um material muito recorrente em seus trabalhos, o concreto. Foto: Levi Fanan/ Divulgação

Trata-se de uma série de blocos em concreto onde estão como que “emparedadas” fotografias recortadas de jornais em que se veem pessoas estabelecendo acordos através de gestos, como abraços, apertos de mão e beijos. Vemos políticos de profissão, jogadores de futebol e líderes religiosos, por exemplo, a estabelecerem pactos através de seus gestos. À primeira vista, não tem nada a ver com Santo Amaro. Mas, indo mais fundo, Santo Amaro está por todos os lugares de Acordo. Primeiramente porque, no trabalho em questão, Matheus Rocha Pitta traz os mesmos materiais e técnicas utilizados na construção de túmulos baratos.

Foi em 2004, em um cemitério em Belo Horizonte, que o artista descobriu a técnica de “emparedar” imagens em concreto. Quando não se tem dinheiro para construir um túmulo em granito ou mármore, faz-se a construção em alvenaria. Como explica o artista sobre esses túmulos baratos, “as paredes laterais são feitas em tijolos e a tampa do túmulo é uma laje em concreto. Essa laje é feita no cemitério mesmo, porque, se você for fazer em outro lugar, é custoso transportá-la, devido a seu peso. A forma que eles usam para fazer essa laje é só a moldura, porque a forma não tem fundo”.

Os túmulos são feitos, então, como se fossem caixas de papelão, só que em alvenaria e sem fundo. Desse modo, colocam-se jornais para o concreto não grudar no chão. Quando seca, esse papel está “emparedado” no concreto. Trata-se, então, de um híbrido de molde e colagem. Para quem já testemunhou a precariedade da arquitetura de alguns cemitérios brasileiros, é quase impossível não lembrar deles quando vemos as estelas de Rocha Pitta, mesmo que as imagens nelas impressas não tratem especificamente de morte. Através dessa técnica, surge a piada sombria, mas popular de que os mortos pelos menos terão algo para ler.


Estela #3 (filme) faz parte da série em que Rocha Pitta trabalha com materiais e técnicas utilizados na construção de túmulos baratos. Imagem: Divulgação

Mas foi só anos depois, em uma viagem à Nápoles, na Itália, que o artista mineiro, já interessado nas técnicas de construção de túmulos baratos, descobriu os objetos monolíticos nos quais eram feitas esculturas em relevo ou textos para fins funerários, religiosos ou políticos. Nas estelas que descobriu, de caráter funerário, percebeu o relevo de um morto cumprimentando um deus. Tratava-se de uma representação de duas pessoas, uma dando a sua mão direita à outra, em um gesto cuja representação é chamada de dexiosis, do verbo grego dexiomai, que significa “dar a alguém a mão direita”. Na Grécia, era muito comum que as estelas funerárias retratassem a pessoa morta apertando a mão da divindade. Um gesto de acordo representado em um pequeno monumento funerário. Para morrer, é preciso entrar em acordo com a morte.

Antes de ir a Nápoles, além de já trabalhar com a técnica utilizada na construção de túmulos em alvenaria, Rocha Pitta refletia sobre os acordos que estabelecemos para mudar a realidade. “Tem um artista de que gosto muito, chamado Thomas Hirschhorn, um suíço. Eu li uma entrevista em que ele dizia que o Andy Wahrol era muito corajoso porque ele era um artista do acordo. Hirschhorn disse que, para poder mudar a realidade, você precisa fazer um acordo com ela. Eu achei isso muito impactante, porque estamos acostumados a pensar em resistência como algo que vai contra a realidade, mas aqui vemos que a resistência pode ser feita através de um acordo com ela. Você não muda indo contra a realidade, mas mudando ela por dentro. Acordar com a realidade é um posicionamento ético”, diz o artista. Foi assim que Matheus Rocha Pitta acabou fazendo a obra Acordo, exibida na exposição L’Accordo, na Fondazione Morra Greco, em Napoli, em 2013. Ela ficou em cartaz até junho, na Pinacoteca de São Paulo.

PACTOS DE PAZ
Os gestos são centrais nos trabalhos de Matheus Rocha Pitta, não só nas estelas de Acordo. Em Primeira pedra, obra exposta na mesma sala da mostra na Pinacoteca de São Paulo, percebemos, pelo próprio nome do trabalho, uma alusão a um gesto. Na passagem bíblica “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,1-11), Jesus convoca todos aqueles que estão com pedras na mão a suspenderem os seus gestos agressivos direcionados a uma mulher que estava sendo julgada por ter cometido adultério. O gesto da agressão é suspendido diante da fala de Jesus, que lembra a todos, ali presentes, de seus próprios pecados. Mesmo que a obra em questão não trate especificamente de um gesto, ela alude ao ato agressivo de quem vai atirar uma pedra em outra pessoa, mas para na metade do caminho por algum tipo de reflexão autoconscienciosa, como vemos entre aqueles que querem atirar pedras na adúltera retratada no Evangelho de São João.


A escultura Golpe de Graça faz uma interferência
na arquitetura do Copan, edifício projetado por
Oscar Niemeyer em São Paulo. Imagem: Divulgação

A obra Primeira pedra é composta por um conjunto de pequenos cubos de concreto, dispostos sobre matérias de jornais – novamente, fragmentos do cotidiano explorados quase obsessivamente pelo artista. Cada cubo contém gravados o título da exposição (“primeira pedra”) e o nome do artista (“matheus rocha pitta”). Para obter um destes cubos, o artista convoca os visitantes a sair da galeria, coletar uma pedra – a primeira pedra que encontrar – e levá-la de volta para o espaço da exposição. Só depois de entregar a pedra coletada na rua é que o visitante poderá, então, levar para casa uma pequena obra do artista. A obra não é trocada, desse modo, por dinheiro, mas por um gesto. Mais especificamente, pela performance de sair do museu e lidar com as particularidades da cidade, como a dificuldade de encontrar pedras, mesmo ali, no Parque da Luz, onde as árvores são organizadas em canteiros de terra carentes das pedras naturais que encontramos, por acaso, nos espaços não planejados. A performance de sair do museu e se perceber em um espaço onde há a ameaça ou a experiência tangível da violência urbana, do excesso de sol, de chuva, do encontro com quem é diferente de nós. Ali, na Luz, por exemplo.

Deitar a pedra no chão, suspender o gesto de agressão. As pedras que coletamos são dispostas sobre os jornais e levamos para casa o cubo de concreto. Assim como Jesus, parece que Matheus Rocha Pitta nos lembra, através das matérias que estampam aqueles jornais, que nós também poderíamos ser aquelas pessoas que cometeram crimes, mataram pessoas, lavaram dinheiro, escaparam da morte ou que morreram. É como se ele dissesse que, em matéria humana, não é possível prever os rumos dos fatos, por isso não é possível julgá-los. Ao mesmo tempo, é através das pedras que nos lembramos das possibilidades de rupturas e da importância das lutas. Embora, aqui, o que está em questão são os pactos de não violência, é preciso lembrar que esses pactos de paz são representados pelas pedras, e são exatamente elas que expressam metonimicamente a revolta.

PACTOS SEM PACTOS
Em trabalhos como Circular (2011), Juízo final (2012) e Figuras de conversão (2012), por outro lado, Matheus Rocha Pitta explora a natureza não pactuada de certos pactos que precisamos estabelecer quando consumimos e trabalhamos. Em Circular, por exemplo, vemos um ônibus cujos assentos são ocupados por tijolos, sacos, cimento e outros materiais, comumente usados na construção de casas nas favelas brasileiras. Aqui, os trabalhadores que ocupam os coletivos que os levam para a cidade são substituídos por materiais de construção, como se eles mesmos fossem esses materiais. Desse modo, aquele que é cidadão é reduzido a mera força de trabalho. Eles não são reconhecidos em suas particularidades humanas, tampouco em seu estatuto de cidadãos, mas simplesmente como trabalhadores.

Na obra, Rocha Pitta torna patente a redução de quem é proletário a mera ferramenta de exploração capitalista. Simultaneamente, os ônibus também têm a sua função invertida: em vez de levarem a força de trabalho para a cidade, eles passam a ser o lugar onde a cidade é distribuída. O artista evidencia, então, a natureza não exatamente pactuada de pactos que estabelecemos, como se eles fossem fruto de acordos deliberadamente aceitos por todas as partes neles envolvidas. Essa escultura foi feita para a exposição Travessias, a mostra coletiva que inaugurou o Bela Maré, o primeiro centro cultural do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

Na série Figuras de conversão, os cidadãos que consomem também são reduzidos a meros consumidores. No conjunto de fotografias, vemos grupos de três imagens, em que cada uma delas retrata relações diferentes dos sujeitos com as mercadorias que consomem. Na primeira delas, vemos um homem segurando sacos plásticos cheios de objetos. Na segunda, ele deposita os sacos no chão. Por último, na terceira imagem, que também é a maior, o homem está despido e de ponta-cabeça dentro de uma sacola plástica. Aqui, o homem parece ser a própria mercadoria.


O artista questiona pactos estabelecidos no campo do consumo e do trabalho em obras como Figuras de conversão. Imagem: Divulgação

A série também compreende objetos que são dispostos no piso: mais especificamente, as roupas das pessoas que aparecem nas fotografias estão no chão e são preenchidas pelas mercadorias que se encontravam dentro das sacolas que são vistas nas fotografias. Desse modo, o artista evidencia as pessoas como produtos. Mais especificamente, aponta para o fato de que alguns pactos que estabelecemos podem até ser pactos de paz ou de morte, mas só se, no fundo, forem compreendidos como pactos não exatamente pactuados. Como acordos cujas partes, no fundo, se enfrentam, apesar da aparência de morte, ou de paz.

BÁRBARA BURIL, jornalista e doutoranda em Filosofia na UFSC.

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