ILUSTRAÇÕES LUÍSA VASCONCELOS
05 de Junho de 2019
Ilustração Luísa Vasconcelos
[conteúdo na íntegra | ed. 222 | junho de 2019]
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"Aguardente de mel da cana-de-açúcar, outrora a cachaça legítima, ou o caldo da cana, cana, caninha. A mais difundida e vulgar bebida brasileira no âmbito popular", assim define a cachaça o historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo em seu Dicionário do folclore brasileiro. Todavia, hoje, a bebida não pode mais ser restringida ao consumo vulgar, passando a fazer parte do patrimônio imaterial de alguns estados, sendo consumida pelas classes mais abastadas da sociedade brasileira e produto de exportação em crescimento.
Do ponto de vista histórico, a cachaça teria sido a primeira bebida destilada brasileira, havendo registro de sua existência já no século XVI, quando o viajante francês Pyrard de Laval escrevia que “faz-se vinho com suco da cana, que é barato, mas só para os escravos e filhos da terra”. Tal afirmação, realizada durante sua passagem pela Bahia, apontava para o caráter de bebida consumida desde seu surgimento pelas camadas mais pobres. A bebida teve um papel significativo como moeda durante a escravidão e foi alvo de conflitos entre a Coroa portuguesa e a colônia.
De maneira resumida, em 1635, uma lei proibiu o consumo da cachaça visando proteger o mercado da aguardente produzida em Portugal a partir do bagaço da uva, denominada bagaceira. Todavia, a incapacidade de fiscalização impediu o êxito da proibição. Em 1647, o monopólio da venda de bebidas alcoólicas na colônia passou a pertencer à Companhia Geral do Comércio e, em 1659, mais uma vez, a Coroa portuguesa proíbe seu comércio. Proibições e altos impostos cobrados pela colônia desencadeiam no Rio de Janeiro a tomada do poder pelos produtores fluminenses de cachaça durante cinco meses, quando as taxas são eliminadas e o comércio é liberado, momento histórico que ficou conhecido como a Revolta da Cachaça. No ano seguinte, Luísa de Gusmão, rainha regente de Portugal, libera a fabricação da cachaça.
Seu surgimento esteve diretamente relacionado ao formato da colonização do país, às plantations de cana-de-açúcar e à escravidão. Movimentos de independência e/ou nacionalistas também encontraram na bebida uma forma simbólica de demonstrar a recusa à dominação externa, como foi o caso da Inconfidência Mineira e da Semana de Arte Moderna de 1922. Mas, até as últimas décadas do século XX, podemos afirmar que, de maneira geral, o consumo da bebida estava associado a qualidades desvalorativas. A palavra cachaceiro ainda aparece nos dicionários adjetivada como sinônimo de “aquele que tem o hábito de se embebedar”.
Atualmente, de bebida vulgar e popular, como a descreveu Câmara Cascudo, vemos que seu consumo alcança locais e, portanto, classes sociais, privilegiados. Restaurantes renomados e lojas em locais destinados a um público com alto poder econômico passam a comercializar cachaças de diferentes regiões brasileiras, cujos preços podem alcançar patamares bastante elevados. No aeroporto de Salvador, por exemplo, cidade onde o recebimento de turistas estrangeiros é significativo, podemos encontrar uma loja exclusiva de cachaças. Prateleiras repletas de diferentes tipos e formatos de embalagens são expostas, compondo um cenário da diversidade e tamanho do mercado no país.
Dependendo da marca, do barril de madeira utilizado para envelhecimento e da embalagem, o produto pode chegar ao preço de mil reais o litro. A questão que nos colocamos foi de compreender como um produto que esteve historicamente majoritariamente associado ao consumo das camadas mais baixas e ao estigma de “cachaceiro” pode se reconstruir como um produto de consumo distintivo de camadas mais elevadas e de representação da ideia de uma “identidade nacional”. Para tanto, foi através de pesquisa etnográfica realizada na região do brejo paraibano que as autoras puderam obter material empírico para as reflexões aqui expostas.
CONSTRUINDO O “VALOR DA CACHAÇA”
Do ponto de vista econômico, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), com cerca de 40 mil produtores registrados, a produção nacional de cachaça alcança 1,5 bilhão de litros anuais, movimentando cerca de R$ 7 bilhões por ano. Tais cifras comportam tanto os produtores de cachaça industrial, com 1,05 bilhão, quanto artesanal, com 450 milhões de litros, classificadas conforme processo produtivo adotado. As cachaças industriais são as produzidas em grande escala, que se utilizam de colunas de inox, enquanto as cachaças artesanais são produzidas em alambiques de cobre.
A produção industrial de cachaça pode chegar a 98 milhões de litros por ano, como é o caso da marca Pitú. O processo de valorização nacional e internacional da bebida fez com que grupos estrangeiros passassem a se interessar pelo mercado da bebida, tanto que, em 2012, o grupo britânico Diageo – proprietário da marca de uísque Johnnie Walker – comprasse a marca nacional Ypióca.
O principal estado brasileiro produtor de cachaça industrial é São Paulo, com 44% do mercado. Minas Gerais é o estado-símbolo da produção da cachaça artesanal, com 8.466 alambiques produzindo 230 milhões de litros por ano, sendo o pioneiro na criação coletiva de estratégias de valorização da bebida, tendo servido de modelo para o ingresso de outros produtores nesse mercado, considerado pelos produtores com amplo potencial de crescimento.
Segundo estatísticas divulgadas pela Agrostat (Estatísticas do Comércio Exterior do Agronegócio Brasileiro), no primeiro semestre de 2018, a exportação da cachaça gerou uma receita de US$ 7.997.984, sendo os Estados Unidos o principal mercado consumidor do produto. País que, em 2013, reconheceu a cachaça como produto genuinamente brasileiro, antes rotulada de brazilian rum.
Um marco jurídico relevante para controle e fiscalização da produção da bebida e sua comercialização no exterior será a promulgação do decreto Nº 4.062, de 21 de dezembro de 2001, que define as expressões cachaça, Brasil e Cachaça do Brasil como indicações geográficas, garantindo o uso do vocábulo como exclusivo ao produto produzido no Brasil. Mas, afinal, o que é cachaça para fins de mercado? Uma primeira forma de delimitar o que entendemos por cachaça é aquela regulamentada por lei.
Nesse sentido, o último decreto regulador da padronização, classificação, registro, inspeção, produção e fiscalização de bebidas (Decreto nº 4.851, de 2 de outubro de 2003), define da seguinte forma a bebida em seu artigo 92: “Cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de trinta e oito a quarenta e oito por cento em volume, a vinte graus Celsius, obtida pela destilação do mosto fermentado de cana-de-açúcar com características sensoriais peculiares, podendo ser adicionada de açúcares até seis gramas por litro, expressos em sacarose”.
Todavia, a aguardente de cana-de-açúcar, além da delimitação da graduação alcoólica e temperatura, terá outra classificação realizada a partir de seu modo de produção, podendo ser classificada como cachaça de coluna ou industrial e cachaça de alambique ou artesanal. No primeiro caso, a denominação se refere às colunas de inox onde ocorre o processo de destilação da cana-de-açúcar e, no segundo, aos alambiques de cobre utilizados para a mesma etapa da fabricação. Outras diferenciações serão acionadas para justificar essa diferenciação, como a menor quantidade produzida pelo segundo processo, condição de garantia de uma melhor qualidade ao produto.
Ainda que formas de valorização simbólicas apareçam também nas cachaças industriais (caso do envelhecimento em barris de madeira e nos formatos de embalagens e rotulagem, por exemplo), neste texto apresentaremos o caso das cachaças artesanais do brejo paraibano. Nesse sentido, mostraremos qual o contexto histórico que ocasionou a possibilidade da revitalização e/ou surgimento de engenhos produtores de cachaça artesanal naquela região, quais os atores sociais envolvidos nesse processo e quais representações simbólicas estão associadas à valorização simbólica da bebida.
DA USINA À CACHAÇA
A região do brejo paraibano foi de grande importância histórica no estado da Paraíba, sendo o município de Areia o mais importante da região e local da existência do maior número de engenhos reconvertidos pela produção da cachaça artesanal. Caracterizada pelas altas altitudes e altos índices pluviométricos, a região é conhecida por suas condições propícias à atividade agrícola e pelas baixas temperaturas atingidas durante o período de inverno. De acordo com o geógrafo Horácio de Almeida, em sua obra Brejo de Areia, as lavouras iniciais que marcaram a região foram as de algodão, mandioca, fumo, feijão e milho, tendo a cana-de-açúcar aparecido na região depois da primeira metade do século XIX.
Um marco importante para alterações significativas na estrutura agrária local foi a chegada da Usina Santa Maria no ano de 1931, ainda que só tenha, de fato, se tornado um forte responsável pelo plantio intenso da cana-de-açúcar após o surgimento de programas públicos de incentivo ao setor, Programa Nacional de Melhoramento de Cana-de-Açúcar (Planalçúcar) e pelo Programa Nacional do Álcool (Proálcool).
Cabe aqui destacarmos que a região, como muito bem observou o antropólogo Afrânio Garcia Jr., no livro O Sul: caminho do roçado, vivenciou um período de decadência justamente nesse momento do auge da agroindústria canavieira na Paraíba, caracterizado pelo declínio da dominação tradicional que regia as relações sociais entre senhores de engenho e moradores em decorrência de múltiplos fatores, como: a possibilidade de migração para o “sul” do país, as flutuações no preço do açúcar no mercado nacional e internacional e a chegada dos direitos trabalhistas no campo.
A chegada da usina faz surgir na região a imagem da figura de “senhores de engenho mais poderosos”, que eram os que haviam se tornado usineiros, fazendo com que muitos senhores de engenhos aparecessem como meros fornecedores de cana-de-açúcar para essa agroindústria. Naquele momento, como afirmou Manuel Correa de Andrade, a opção pela fabricação da cachaça aparecia como sinal de atraso e decadência, ou melhor, como “relíquia de um passado já morto”.
O fato histórico principal para compreensão do cenário atual nas terras de engenhos é a falência da Usina Santa Maria, decretada em 1991. Tal episódio será um fator determinante para adoção de novas práticas pelos agentes sociais localizados em diferentes posições do espaço social do brejo paraibano. A economia baseada na produção da cana-de-açúcar, e nos trabalhos a ela associados, que incluía desde grandes proprietários de terra que se tornaram fornecedores da matéria-prima para a usina, até trabalhadores rurais em situações específicas e hierarquizadas vinculadas ao funcionamento da usina, precisou ser reformulada.
A ameaça do declínio de uma região de passado histórico reconhecido por sua posição de destaque no cenário regional desencadeia um processo de busca por alternativas de reconversão capazes de manter as relações de poder e de dominação através da preservação ou melhoria das condições dos agentes sociais.
Para os senhores de engenho da região, as alternativas que se apresentarem de maneira diferenciada, conforme os capitais econômicos, tecnológicos, sociais, culturais e políticos possuídos, podem ser resumidas nas seguintes estratégias: negociação para desapropriação de suas terras com o Estado brasileiro, venda de terras para grandes construtoras ou loteamento das mesmas para criação de condomínios de médio e/ou alto padrão, investimentos em pecuária bovina, abandono de suas propriedades e, por fim, a reconversão dos engenhos em produtores de cachaça artesanal. Na região, em 2017, foram divulgadas no formato de “Carta da cachaça”, publicada pela Associação Paraibana dos Engenhos de Cachaça de Alambique (Aspeca), 19 cachaças artesanais. Número mais elevado atualmente e em crescimento.
Para que a valorização simbólica ocorra, são acionadas diferentes estratégias, desde a realização de eventos, feiras, criação de museus até a organização de visitas guiadas nos engenhos produtores de cachaça. A exposição do processo de fabricação da cachaça molda a visita guiada aos engenhos, apresentando discursos que podem variar de considerações um pouco mais técnicas até apresentações ensaiadas da história de vida da família fabricante da bebida, visando criar um ambiente mais acolhedor aos turistas. Do ponto de vista técnico, as visitas são formatadas por um pequeno circuito aos equipamentos necessários para as principais etapas do processo produtivo da cachaça: extração do caldo da cana-de-açúcar, fermentação, destilação e embalagem.
CACHAÇA ARTESANAL
Durante a primeira etapa da produção, que é a extração do caldo de cana, podem ser vistas as moendas, importadas da Inglaterra. Caldo que, depois de filtrado e decantado, passa para o processo de fermentação, realizado pelas leveduras da cana-de-açúcar, que transformam o açúcar em álcool e liberam gás carbônico. Entre 20 a 24 horas, produz-se o chamado “vinho da cana-de-açúcar”.
De lá, segue para alambique, onde é destilado e transformado em cachaça. Essa terceira fase da produção ocorrerá em alambiques de cobre aquecidos pelo vapor de caldeiras que fazem com que, aos 78°, o álcool da cana comece a subir em forma de vapor. Esse vapor do álcool do vinho da cana-de-açúcar passará por canos dispostos em formato de serpentina, que atravessarão o condensador de inox contendo água fria.
O contato do vapor com o frio gerará o processo de condensação e, finalmente, estará fabricada a cachaça, pronta para o descanso e posterior embalagem. Toda cachaça produzida descansa, inicialmente, em tonéis azuis de polietileno, resultando, em seis meses, na cachaça conhecida como branquinha. Outras permanecem por mais tempo em tonéis de madeira, que vão dar diferencial da cachaça, podendo ser, na região, de carvalho, canela, jequitibá-rosa e umburana.
Um diferencial associado à qualidade do produto artesanal está na divisão desse líquido final do processo em três partes, chamadas de: cabeça, coração e cauda. Diz-se que a cabeça e a cauda contêm elementos químicos que fazem mal à saúde humana, sendo apenas a parte considerada coração apropriada para consumo com segurança. Uns afirmam descartar cabeça e cauda, enquanto outros dizem transformá-las em combustível automotivo, que pode servir aos veículos dos proprietários, pois não pode ser comercializado legalmente.
Os capitais tecnológicos necessários para acesso ao mercado da cachaça são, em sua maioria, trazidos de Minas Gerais, nacionalmente detentor de maior reconhecimento pela produção da cachaça artesanal. Segundo uma proprietária do engenho: “a Paraíba só faz cachaça boa, a tecnologia sendo toda de Minas Gerais”, região de onde trazem os alambiques de cobre. O uso desse equipamento é norteador do discurso da cachaça “artesanal”, em oposição à cachaça industrial, produzida em maior escala e com menor tempo de fermentação.
Todavia, ainda que o cobre apareça como um dos capitais tecnológicos necessários para a produção da ideia da qualidade da cachaça, também é considerado o “vilão”, afinal a contaminação que faz com que a cabeça e a cauda sejam descartadas é decorrente de seu uso. Por isso, o discurso da necessidade de limpeza desses alambiques se reproduziu em mais de um momento durante nossas visitas com bastante intensidade pelos que nos serviram de guias, quer estivessem cientes ou não de nossa pesquisa.
Se os engenhos podem, em consonância, se valer da qualidade artesanal do processo produtivo da cachaça como parte do processo de sua valorização, o mesmo não ocorre quando é acionado o discurso do passado, através da tradição. Isso porque nem todos engenhos que conseguiram se reconverter através da cachaça tinham histórico de produtores da aguardente.
Um deles, que hoje é um dos maiores produtores da região, nunca havia tido contato com a produção, tendo investido em equipamentos iniciais e, só depois, após realizar curso de capacitação, aprendido a fabricar a bebida. Na maioria dos engenhos reconvertidos para produção de cachaça, a legitimidade da produção, ainda que todos tenham precisado aprender os capitais científicos atuais para produção da cachaça artesanal nos moldes exigidos pelo setor, encontra um discurso fortemente baseado na tradição, ainda que reinventada, fazendo do passado uma qualidade capaz de atribuir valor simbólico ao presente.
Outro aspecto que chamou af atenção das autoras foi a característica familiar desses empreendimentos na organização e gestão desse patrimônio. Uma das famílias, ainda que afirme que os filhos tinham liberdade de escolha, formou cada um deles em áreas diferenciadas que pudessem auxiliar no empreendimento como um todo. Outro, deixou a cargo do filho a reconversão do engenho cujo produto principal era rapadura para a cachaça artesanal. Atuam na linha de frente o filho, a nora e o neto, já com curso técnico e que servia de guia entusiasmado para nos mostrar sua propriedade. Um engenho da região tem num dos herdeiros o papel de comando, mas aponta para intenção do filho em construir uma pousada, a fim de que os turistas possam permanecer no local por alguns dias.
Importante frisarmos que a reconversão pela cachaça nem sempre aparece como única atividade produtiva dessas famílias. Algumas vezes, aparecerá diretamente relacionada à oferta de outros serviços turísticos para além da visita guiada à produção da bebida, como foi o caso de um hotel do mesmo proprietário do engenho, de um restaurante rural na área do engenho (ao lado do espaço produtivo da cachaça), da oferta de trilhas pela propriedade e de lojas para venda direta da cachaça nos engenhos. Em outro caso, a produção da cachaça segue acompanhada da criação de gado pelo proprietário do engenho e pelo plantio de brócolis-ninja pelo neto em terras da família.
Ainda que todos os engenhos pratiquem a venda direta das cachaças produzidas para turistas e/ou moradores da região, os formatos dessa venda são variáveis e podem acontecer em ambientes preparados especificamente para esse fim. São pequenas lojas, nas quais expõem suas cachaças (em diferentes formatos, tipos e recipientes) e comercializam suvenires, tais como copos de vidro ou de porcelana com a nome da marca para consumo da bebida e outros artesanatos do lugar.
Um dos locais pesquisados mantinha uma prática antiga de venda a granel da bebida, permitindo que o consumidor leve sua própria embalagem e adquira o produto direto por volume. Esse tipo de comercialização é descrito como prática antiga desses engenhos, remetendo ao começo da fabricação, quando a venda era assim realizada apenas para pessoas da região e/ou conhecidos. Esse era também o engenho que ainda estava em transição para abertura de uma loja para venda do produto na propriedade, mas já com planos de reforma e restauração de pequena moradia abandonada na propriedade, localizada entre a antiga casa sede do engenho e a nova casa construída para o filho, responsável pela reconversão da propriedade de produção de rapadura para a de cachaça.
Nesse sentido, um dos pontos centrais para compreensão da efetivação da estratégia de reconversão através da cachaça é a relação direta que a mesma possui com as políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento da atividade turística na região. O processo de valorização simbólica da cachaça do Brejo encontrou no turismo o meio eficaz para sua construção.
O formato regionalizado e descentralizado surgido com a construção de um mapa de regionalização do turismo no Brasil, criado para nortear da atuação do Ministério do Turismo, existe em cada localidade, conforme interesses de grupos específicos. No caso da região do Brejo, um dos resultados dessa política foi o surgimento de eventos e a criação de roteiros que abarcavam a construção coletiva (embora não homogênea) de estratégias de valorização da cachaça artesanal local, através do que, inicialmente, chamou-se de Rota dos Engenhos e, posteriormente, de circuito comercializado durante o inverno Caminhos do Frio.
O nome dado ao roteiro também é bastante representativo da proposta de valorização simbólica da cachaça em jogo. Ouvimos de uma das responsáveis pelo surgimento do roteiro que o termo Rota da Cachaça foi recusado pelo caráter depreciativo, podendo atrair “tudo que era cachaceiro”. Rota dos Engenhos seria o termo capaz de associar a cachaça a um passado glorioso dos engenhos e de romper com o estigma de bebedor de classes populares.
Em depoimento às autoras, um dos produtores da região, quinta geração de proprietários na região, descreve o histórico de seu engenho como tendo produzido cachaça e rapadura há muito tempo em seu engenho, patrimônio da família desde 1847. Ainda que conte que seu avô registrou a marca, que permanece até hoje, em 1946, afirma que foi quando herdou a propriedade que decidiu investir no “resgate de um novo conceito da bebida” (termo usado pelo entrevistado). Filho de um químico e farmacêutico, essa tentativa de vincular o consumo da bebida a uma marca de distinção do gosto das diferentes classes torna-se nítida, quando afirma que, no passado, a rapadura e a cachaça “eram dois produtos de muito preconceito”. Em seu restaurante, localizado no engenho onde fabrica a cachaça, deixa exposta uma placa que faz alusão ao público consumidor de sua marca como sendo das classes A e B e, conforme suas palavras, foi preciso fazer um processo de transformação da conotação negativa do termo.
“O público da minha cachaça é A e B. Quando comecei, já existia consumidor A e B, só que esse público tinha vergonha de beber cachaça. Hoje, não tem mais. Quando eu comecei, também tinha um público até o D, até classe D que é o público baixo, da periferia tal”, pontuou um produtor de cachaça artesanal da região do brejo paraibano, em 2017.
Em sua narrativa, vemos a reprodução das distinções do consumo da bebida acionadas para sua valorização. A conotação moral negativa da palavra cachaceiro, visto que foi por muito tempo associada ao consumo da bebida por escravos e, depois, pelas camadas inferiores da sociedade brasileira, transparecia na “vergonha de beber cachaça” das classes mais altas. O produto passa então da categoria da “vergonha” para a ostentação de suas novas formas, alterando inclusive algumas palavras utilizadas para seu consumo.
Passa-se a falar em “degustação de cachaça”, assim como se faz com o vinho, dando uma conotação considerada mais nobre ao consumo da bebida. E, assim como a vodca, aconselha-se o consumo da bebida em baixas temperaturas. Novas embalagens são criadas, como as garrafas de porcelanas e novas disposições sociais são adquiridas através da troca de experiências com produtores de regiões onde esse processo de valorização já se encontra mais estabelecido, especialmente, os produtores de cachaça artesanal mineiros.
Dessa maneira, vemos que o discurso do desenvolvimento econômico regional através do turismo encobre interesses de grupos sociais mais favorecidos, viabilizando não apenas o acesso de recursos para capacitação e promoção de eventos nas cidades do brejo paraibano, como também constrói uma importante estratégia de marketing e divulgação das cachaças artesanais locais. A reconversão pela produção artesanal da cachaça foi uma das maneiras encontradas para a valorização do patrimônio material e imaterial das elites agrárias locais de alguns dos engenhos ainda existentes, após a séria crise enfrentada após a falência da usina da região no início da década de 1990.
PATRÍCIA ALVES RAMIRO, professora-adjunta do Programa de Pós-graduação em Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
MARIE-FRANCE GARCIA PARPET, pesquisadora aposentada do Institut National de la Recherche Agronomique (INRA). Autora do livro Le marché de l’excellence: les grands crus à l’épreuve de la mondialisation (Seuil, 2009), sobre a construção do mercado do vinho francês em tempo de mundialização de mercado.
LUÍSA VASCONCELOS, estudante de Design e ilustradora.