Ao percorrer aquela documentação, esbarro com esta “parte de serviço” de 27 de fevereiro de 1961– escrita em estilo formal, embora tosco e com uma ortografiazinha hesitante –, na qual o investigador nº 150, Antônio Bernardo de Santana, lotado na Delegacia Auxiliar da Secretaria de Segurança de Pernambuco, presta conta de missão realizada na véspera: a de espionar o enterro de minha mãe.
Secretaria da Segurança Pública – Pernambuco
Ilmo. Sr.
Comissário Supervisor da Delegacia Auxiliar
Parte
Levo ao conhecimento de V.Sa. para os devidos fins, que, de ordem do Exmo. Sr. Cel. Secretário de Segurança Pública, e designado Sr. Permanente desta Especializada, às 14 horas de ontem me dirigi ao Aeroporto dos Guararapes acompanhado do investigador nº 174, em um jipe de placa nº 5005 à disposição desta Delegacia, com a finalidade de assistir ao desembarque do corpo da esposa do Sr. Prefeito desta Cidade, e fazer cobertura até o Cemitério de Santo Amaro.
Sim, porque sou filho daquele “Sr. Prefeito desta cidade”, que, aliás, também desembarcava acompanhando o “corpo da esposa”, falecida na madrugada do dia 26, em São Paulo.
Fui tocado pelo tratamento cerimonioso dispensado a meu pai. Talvez aquele “Sr.” fora apenas a expressão de um reflexo hierárquico, estimulado pela natureza oficial do documento. Porém, não é improvável que, ao distingui-lo assim, o investigador Santana tivesse em mente as peculiaridades da política local naquele momento e as intricadas relações de parentesco que permeavam as suas elites.
Porque, vale lembrar (eu mesmo só me dei conta disso horas depois de ter lido o documento) que o Sr. Prefeito da Cidade era concunhado do Sr. Governador do Estado, sob cuja autoridade, ele, Santana, agia em última instância. É bem verdade que os dois eram adversários, mas não é menos verdade – o que talvez possa ter provocado a sua prudência instintiva de subalterno – que ele havia sido designado para acompanhar e “dar parte” do enterro da irmã da esposa do governador.
Cinquenta e oito anos após, a imagem de minha mãe – quase nunca evocada na minha vida corrente – pegou-me de surpresa, logo no final do primeiro parágrafo, reificada naquela expressão, “o desembarque do corpo”: a visão de um caixão inclinado ao descer as escadas do avião, carregado por quem? Já não recordo.
Naquele 26 de fevereiro, percorremos juntos, eu e o investigador nº 150, o mesmo caminho, dos Guararapes a Santo Amaro. Ele escreveu sua parte; agora, escrevo a minha.
No meu caso, o estado de alerta fora dado no sábado, dia 25, quando recebi a notícia de que minha mãe estava prestes a morrer. Questão de horas, disseram. De repente, vejo-me andando na Rua Sabino Pinho e dobrando a José Osório, no Zumbi, acompanhado de meu primo Joca. Decidimos sair, ou melhor, ele decidiu por mim, e escapar da agitação e do desespero instalados na casa de minha avó materna (ao lado da nossa), onde começava a se agrupar uma massa de parentes e amigos da família. Convocou-me a sair, dizendo: – “Isso não vai ser bom pra você”.
Tínhamos 14 anos e, por uma espécie de mimetismo espontâneo, adotávamos assim uma gravidade no diálogo que supúnhamos ser marca dos mais velhos para aquela circunstância. Pouco tempo depois, sob o sol a pino de fevereiro, ladeando um canal aberto e fedorento em uma rua sem calçamento – tudo diverso do que deveria ser uma “caminhada para espairecer” –, Joca ainda acrescentou este clichê da sabedoria adulta que acolhi como muito apropriado: – “Esta vida é uma merda”. Por volta do fim da tarde, tio Caio, seu pai e irmão de minha mãe, nos levou para dormir na sua casa.
Atravessar a noite deveria ser o equivalente à espera da execução de uma pena sem hora exata. No entanto, não me recordo de vigília alguma. Dormi no mesmo quarto dos meus primos, em um colchão sobre o chão, como era bem de hábito nessas, minhas e deles, hospedagens. Dou esse detalhe, porque acordei com a voz alta de meu tio ao telefone, o meu rosto bem rente ao assoalho.
De imediato, entendi do que se tratava: ele insistia com alguém de que as rádios “teriam de noticiar”. Não era um anúncio fúnebre formal. Àquela hora, os jornais do dia já estavam na rua e o enterro seria naquela tarde mesmo. Tratava-se da “mulher do prefeito”, insistia. Salvo engano, a palavra “esposa” não era usada na minha família materna. Ao desligar, fez vários comentários mal- humorados, com a sua verve irônica, habitual, sobre a estupidez humana.
Fechei os olhos imediatamente, prolongando uma ignorância fingida até quando o que fora inevitável me seria comunicado. Meu tio chegou à porta. Embaraçado, falando quase de lado, disse: – “O pior aconteceu. Você já tem idade…” E sumiu rapidamente. A partir daquele momento, tudo de que me lembro são momentos espaçados.
Voltei à Rua Sabino Pinho e agora revejo minhas avós, Carmem e Benigna, sentadas lado a lado em cadeiras de balanço. O choro manso das duas, quase um embalo, transmuda-se quando me veem em um soluço sincopado, altíssimo, e ouço uma delas dizer: – “Sua mãe… tão boa”. Sou levado ao aeroporto em um Volvo azul dirigido por Miguel Newton, primo de meu pai. No carro, havia também Murilo, seu irmão e uma mulher, mas não me recordo de quem era.
Talvez tivéssemos chegado aos Guararapes junto ao investigador Antônio Bernardo de Santana e seu companheiro. Às 17 h, “chegou ali o referido corpo”.
Comunico a V.Sa. que, somente às 17 horas, chegou ali o referido corpo. Encontrando-se à espera altas autoridades do Estado, e grande massa popular de todas as camadas sociais, entre elas estavam também elementos filiados ao Partido Comunista, como sejam o vereador Carlos José Duarte, esposa Nize Duarte, Adrovani Marques, Burra Cega, Paulo Cavalcanti, Ramiro Justino, Eduardo Lima, Sobreira, Clóvis Mélo, e vários outros de que não tenho conhecimento do nome, mas que realmente são atuantes ativos no partido.
Enquanto esperávamos, eu obviamente também pude me dar conta da presença de uma “grande massa popular de todas as camadas sociais”, mas não atinei nas “altas autoridades do Estado” (embora, normalmente, em boa parte dos casos eu fosse capaz de identificá-las), nem tampouco nos “elementos filiados ao Partido Comunista”.
Não é difícil adivinhar: por causa deles, os investigadores nº150 e nº 174 se deslocaram em missão naquele domingo. Indiretamente, eram movidos por força longínqua, a Guerra Fria, que tomava forma entre os nossos embates políticos nacionais e se arrumava ultimamente na política local. No fim de contas, toda política é local, All politics is local, diz um adágio americano.
Pois, localmente, a esquerda vinha ganhando fôlego e amplitude inéditos, desde a eleição de Pelópidas Silveira, em outubro de 1955, primeiro prefeito do Recife através do voto direto na era republicana. Elegera-se com o apoio da Frente do Recife, movimento popular que agrupava comunistas, trabalhistas e socialistas. A eleição de Miguel Arraes como seu sucessor, quatro anos após, consolidava e abria perspectivas para a conquista do governo do estado nas eleições de 1962.
Os comunistas apoiavam meu pai e nada mais natural que estivessem representados naquele momento. Alguns eram amigos ou conhecidos de longa data:
Carlos Duarte foi certamente o mais próximo entre eles. Curiosamente, não está enquadrado entre as “autoridades” na “parte de serviço” do nº 150, embora fosse então o presidente da Câmara Municipal do Recife. A qualidade de comunista deve ter prevalecido, quando a sua presença fora anotada.
Tinha uma inteligência vivaz, a réplica instantânea, um senso de humor ferino, imaginoso até a maledicência. Sou-lhe eternamente grato porque, suprema consideração da parte de um adulto, me tratava como igual. Certamente, está entre os que me introduziram ao emprego da ironia ao vivo, improvisada em uma conversa.
Em Paulo Cavalcanti, espantou-me ver um torcedor do Santa Cruz, doutor, de paletó e gravata. Para mim, o Santa era o time dos miseráveis da terra, uma multidão de pele escura e pobre que via os jogos da “geral”. Conheci-o (tinha 10 anos de idade, cursava o Admissão, no Colégio Estadual de Pernambuco) com meu pai, no saguão da Assembleia Legislativa de Pernambuco. Brincou comigo, quando soube que eu era do Náutico, o mais branco, o mais burguês dos times, dizendo que deveria seguir o exemplo paterno e ser solidário com “o povo”.
Miguel Arraes assumiu seu primeiro cargo majoritário em 1960, como Prefeito do Recife. Foto: Roberto Arrais
Sobreira era do Juazeiro do Norte, conhecia a nossa família do Cariri. Mulato, esguio, o cabelo inteiramente branco, falava lentamente, largo sorriso de todos os dentes. Roupa de brim, camisa de manga comprida, impecavelmente limpa. Pobre de origem, tinha pouca escolaridade, mas era lido. Educara-se, por assim dizer, com o Partido. Não dava tratamento de doutor a meu pai, chamava-o de Arraes. Eu gostava daquilo. Em uma sociedade tão agressivamente injusta, parecia ter adquirido a dignidade de ser igual por “mérito próprio”: seu esforço e destemor.
Representava a Editora e Distribuidora de Livros Vitória, pertencente ao Partido Comunista, que vivia em semilegalidade desde a presidência de Kubitschek. Não saberia dizer o que vendia, mas lembro-me de que lá em casa havia traduções de Marx e Lenin, sobretudo em espanhol; inclusive um livro, La Plusvalía, talvez uma seleta de textos marxistas sobre a “mais valia”. Durante muito tempo, pensei que Plusvalía fosse o nome de país ou região desconhecida.
Obviamente, nenhuma das virtudes ou características enumeradas desses personagens seria matéria relevante para a “Parte de Serviço”, cujo interesse principal era provavelmente o de documentar o grau de proximidade entre os comunistas e o futuro candidato da oposição ao governo do estado.
Com a chegada às 17 horas, rumou para o Cemitério de Santo Amaro, onde chegou às 18h20, procedendo-se logo o enterro, que terminou às 18h55. No cemitério, além dos elementos que vieram acompanhando o féretro, havia grande massa esperando o cadáver, e pudemos ainda notar a presença do líder vermelho Gregório Bezerra, que, no decorrer do tempo de duração do enterro, manteve-se só, saindo logo que terminou.
O avião atrasara e foi uma longa espera. O corpo seria exposto na capela do cemitério, se houvesse tempo suficiente: a noite cai bruscamente no Recife e o sepultamento teria de ser feito à luz do dia, antes das 18 horas.
Não há como descrever o pavor e a angústia que se instalaram em mim, com a força de uma condenação sem apelo: eu não queria ver o cadáver de minha mãe. E muito menos tocá-lo, se por acaso fosse obrigado a fazê-lo, empurrado por algum familiar que julgasse assim ser o meu dever filial. Passei então a desejar desesperadamente que o atraso fosse perfeito: suficientemente longo para que a exposição do corpo não se fizesse, mas nem tanto que tornasse impossível o sepultamento naquele mesmo dia.
A cronologia horária do investigador nº 150 parece ser bastante precisa: às 17 horas, na chegada, a passagem pela capela tornara-se impraticável. Fui conduzido em meio à multidão por Murilo para entrar no avião. Eu teria de ser uns dos primeiros a ver meu pai.
Haviam retirado algumas poltronas para que o caixão fosse acomodado no corredor, entre os assentos. De repente, meu pai de terno, surpreendentemente sem gravata, me abraçou, irrompeu em um choro alto, aos soluços, o seu peito martelando e esmagando o meu, descontrolado. Não sei como saí do avião. Desci as escadas. Espero a retirada do caixão e vejo-me novamente sentado no banco de trás do Volvo azul, aliviado: o caixão não seria aberto.
Em seguida, já no Cemitério de Santo Amaro: a imagem crepuscular da capela fechada. Sou amparado ou empurrado em meio a uma multidão até o jazigo da família de minha mãe. Pela primeira vez, vejo o trabalho de fechamento de um túmulo, o barulho das pás no trabalho de cimentar os tijolos que se empilhavam. À diferença do investigador Antônio Bernardo, não pude “ainda notar a presença do líder vermelho Gregório Bezerra que, no decorrer do tempo de duração do enterro, manteve-se só, saindo logo que terminou”.
O “líder vermelho” fora o principal responsável no Recife pela insurreição militar de 1935. Preso e torturado, ficou na cadeia por quase 10 anos, até a anistia que precedeu a redemocratização. Deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro em 1947, teve o mandato cassado em janeiro de 1948, quando o PCB é declarado ilegal.
Gregório Bezerra foi um dos comunistas que esteve no funeral e teve sua presença registrada no relatório feito pela Secretaria de Segurança Pública do Estado. Foto: Roberto Arrais
Poucos dias depois de sua cassação, ocorreu em João Pessoa um incêndio do 15º Regimento, que foi prontamente identificado pelo Exército como um ato de represália comunista. Gregório foi então preso, responsabilizado e conduzido à Paraíba. Dois anos depois, foi absolvido por falta de provas. Ainda assim, viveu na clandestinidade por mais nove anos, ou seja, até 1960.
Naquele dia, portanto, estava ainda praticamente no início da retomada da sua vida na legalidade. Comportava-se, em função disso, com discrição e, provavelmente mantivera-se isolado, evitando o contato com os presentes para preservá-los e não comprometê-los.
O mais, tudo foi normalmente sem perturbação.
Foi o que se me ofereceu para observação.
Subscrevo-me atenciosamente.
Recife, 27 de Fevereiro de 1961,
Antonio Bernardo de Santana.
Investigador nº 150.
Após o enterro, voltamos para a nossa casa. Muita gente. Lembro-me de um momento, encostado na mesa de jantar, a sala cheia. Aproxima-se um amigo de meu pai, bate no meu ombro e diz: – “Coragem, Zé. Seu pai e seus irmãos vão precisar de você”.
Acho que eu era o único filho presente. Os outros haviam sido distribuídos entre as casas dos tios. Deitado na cama, percebo com espanto que meu pai preparava-se para dormir no mesmo quarto. Entra Miguel Newton, médico psiquiatra e lhe aplica uma injeção. Ele dorme quase imediatamente.
Depois, não me lembro.
JOSÉ ALMINO DE ALENCAR E SILVA NETO, escritor, doutor em Sociologia pela Universidade de Chicago, e pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa.