Os canais que cortam Londres
TEXTO E FOTOS RICARDO MOURA
08 de Abril de 2019
Foto Ricardo Moura
[conteúdo na íntegra | ed. 220 | abril de 2019]
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Não lembro de imagens tão magníficas, tão presas nos olhos da minha mente, quanto as das grandes balsas abrindo caminho pela água, navegando Tâmisa acima até a Ilha dos Cães, carregadas com enormes fardos de lenha, que haviam sido carregados nas docas de Londres e então transferidos para as balsas, até os depósitos de lenha, as ondas que criavam surgindo da proa e batendo nas paredes. Era um honesto e esplêndido trabalho braçal; e a visão de uma fria manhã de inverno, o sol brilhando e dançando nas ondas e na água, é simplesmente inesquecível.
Michael Knowles
A citação acima está no livro Saving the Walthamstow Marshes, escrito pelo ativista Michael Knowles, para documentar a campanha de preservação do Pântano de Walthamstow, situado na região leste de Londres. As ações do então visto como grupo de excêntricos aconteceram no final dos anos 1970, e se deram no cume de um ponto de virada na história dos canais londrinos, então ignorados pela população em geral, e destino de esgoto doméstico das construções do entorno, cujos habitantes viravam as costas e torciam o nariz aos “cortes” – como são conhecidos esses canais construídos artificialmente. O movimento foi uma resposta à ação da administração do parque Lee Valley, que queria remover do fundo das áreas alagadas do pântano areia e cascalho, recurso valioso para a construção civil, e com isso destruir mais esse ecossistema nativo de Londres – uma raridade em uma cidade conhecida por ter na mudança de paisagem uma constante – para transformá-lo em uma marina.
Esse tipo de atitude, principalmente vinda da administração de um parque em relação a uma área de paisagem natural, pode parecer estranha se analisada hoje, mas o pensamento preservacionista apenas engatinhava na época e ainda era corrente a ideia de que os canais e pântanos de Londres eram um empecilho à modernização da cidade. Chegou a se considerar a possibilidade de aterrá-los e transformá-los em ruas, artifício atraente e muito utilizado em São Paulo, por exemplo, na mesma época, em que o crescimento da indústria automobilística seria o motor da recuperação econômica do país, que ainda sofria os efeitos do período pós-guerra.
Recém-construído, o barco de David Lewis é duas vezes mais largo que os tradicionais. Sua sala foi feita para acomodar um piano de cauda
Anacrônicos na década de 1960 do século XX, os canais artificiais foram cavados a picaretas, pás e suor, muitas décadas antes, entre 1770 e 1830 – período que ficou conhecido como a Era de Ouro dos Canais –, para interligar as já então navegáveis vias aquáticas britânicas. Antes do advento dos trens e veículos motorizados, os estreitos canais tornaram possível o transporte de bens para áreas até então intocadas pelos rios. Nas balsas, puxadas a cavalos, eram levados pedras, lenha e combustíveis e trazidos de volta carvão e mercadorias em geral para os portos do Rio Tâmisa. A Era dos Canais foi um período de desenvolvimento logístico que serviu de catalisador para o que ficou mais tarde conhecido como a Revolução Industrial.
Ao longo do século XX, com o desenvolvimento das rodovias e ferrovias, os canais aos poucos deixaram de ser viáveis como alternativa para transporte de carga e foram sendo esquecidos pela população da cidade. Em 1967, chegaram a ser considerados, em um relatório, como um “problemático recurso”, mas que poderia ser transformado para se adaptar ao que era conhecido na época como a “nova era de lazer” que estava por vir. Nessa época, os canais estavam escondidos dos olhos da maioria da população, os caminhos às suas margens, por onde passavam os cavalos que puxavam as balsas de carga, eram fechados a qualquer um que não tivesse permissão oficial para cruzá-los.
Atualmente, depois de décadas de ativismo ambientalista e decorrente valorização dos espaços naturais, os canais londrinos servem como longos parques lineares em partes da cidade particularmente carentes de espaços verdes. Milhares de pessoas usam o passeio público às suas margens, antes percorridos pelos cavalos de carga, como vias alternativas de transporte, de bicicleta ou a pé, ou mesmo para lazer, pois o Rio Tâmisa, maior e mais famoso rio e cenário dos cartões-postais da cidade, está enclausurado entre altos muros de concreto e enjaulado nos guarda-corpos de metal. No dia a dia, pelo centro da cidade, a experiência de contato com o rio se distancia do natural. Os canais, ao contrário, bem menores no tamanho e artificiais na origem, estão mais acessíveis desde áreas remotas, próximas a parques nacionais, zonas de preservação e a pontos centrais da cidade.
Jonas Steinberg na proa do seu narrowboat Little Drifter,
que conta com uma lareira para aquecer seu interior nos dias frios
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Desde quando eram majoritariamente vias de transporte, os canais serviam de moradia, então para os barqueiros e suas famílias. Atualmente, as regras que regulavam a ocupação dos casas-barco por famílias no século XVIII continuam em voga e moldaram um estilo de vida particular dos que optam por viver nos tradicionais narrowboats – os barcos estreitos característicos dos canais britânicos.
Milhares de londrinos, empurrados pelo vigoroso e predatório mercado imobiliário financeirizado, passam a viver em barcos, a fim de fugir dos constantes aumentos nos aluguéis e taxas de hipoteca. A maioria opta pelo tipo de licença mais em conta, que dá direito a ancoragens quinzenais, pensada para evitar o desenvolvimento de guetos de trabalhadores e suas famílias pobres.
Sendo assim, passam a viver em constantes migrações pela cidade, a cada 15 dias e a duas milhas por hora, em um ritmo que se imprime na vida das pessoas, morando em seus barcos residenciais que, apesar de aparentemente pequenos e estreitos, são maiores que muitos apartamentos do centro, conhecidos como caixas de sapato e comprados através de fundos de investimentos internacionais por quantias cada vez mais inacessíveis para a maioria da população local.
Em 2019, depois de o (até então) estável número de casas-barco cadastrados em Londres dobrar em questão de meses, David Lewis – empresário do mercado fonográfico recém-divorciado que encontrou a liberdade que buscava no seu barco Freedom, e no estilo de vida itinerante – calcula que uma casa com a mesma área em que mora, com dois quartos e cozinha e confortável sala, com direito a um piano de cauda, custaria pelo menos 10 vezes o preço que pagou um ano atrás quando encomendou sua construção.
Word on the Water é a livraria mantida por James Bentley com licença de ancoragem fixa no trecho da King’s Cross
Jonas Steinberg, paulistano radicado na cidade há três anos, acredita que, na lentidão necessária à vida a bordo do seu Little Drifter, está a transformação que buscava quando saiu de São Paulo. Mudanças constantes também fazem parte do que aprendeu a apreciar como parte do estilo de vida de quem escolhe viver sob a regra das ancoragens quinzenais.
Por outro lado, para James Bentley, vendedor no Word on the Water, balsa-livraria ancorada permanentemente próxima a estação de King’s Cross, no centro da cidade, “a vida a bordo de barcos em Londres já passou por suas páginas mais belas” – ponto de vista mais comum aos que, como ele, vivem a bordo há mais tempo e se incomodam com o recente crescimento no interesse pelos barcos por pessoas que só fogem dos caros aluguéis e perturbam o estilo de vida mais lento e colaborativo que escolheu para si há mais de 10 anos.
Toda atração exercida pelos canais e o estilo de vida que sugerem traz para suas águas e seu entorno um público crescente, o que também pressiona as condições de preservação da vida selvagem nativa. Pois mesmo tendo sido construídos artificialmente, à medida que os lagos e pântanos naturais do entorno foram sendo aterrados ou secaram pela falta de vegetação ciliar no seu entorno, os canais passaram a dar suporte à vegetação subaquática nativa, que serve de alimento para as aves territoriais e sazonais durante todo o ano e, mais recentemente, segundo David Lewis, para algumas espécies de peixes que, por não sobreviverem em locais poluídos, são indicadores de que a qualidade da água vem melhorando com o tempo.
Naturalmente, o impacto da comunidade vizinha nos canais tem prós e contras. A atenção que receberam nos últimos anos trouxe recursos e sensibilização à sua preservação. E – ainda que o aumento da comunidade de casas-barco movidos a óleo diesel aumente a quantidade de dejetos químicos na área – o maior trânsito de embarcações tem como efeito colateral o benéfico movimento de águas num ambiente artificial, que sofre justamente pela falta do regime de marés.
Os canais londrinos, distantes da perfeição, estão também longe da esterilidade, e os meandros de sua história é que os torna tão interessantes, desde a sua concepção até como são hoje.
Assista ao minidocumentário da reportagem:
RICARDO MOURA, documentarista e fotógrafo, com formação em Sociologia.
Recém-construído, o barco de David Lewis é duas vezes mais largo que os tradicionais. Sua sala foi feita para acomodar um piano de cauda
Recém-construído, o barco de David Lewis é duas vezes mais largo que os tradicionais. Sua sala foi feita para acomodar um piano de cauda