Um atraente convite à leitura foi o propósito de inesquecível coleção Para gostar de ler, lançada em 1977 pela editora Ática, direcionada ao público infantojuvenil. Reunindo, de partida, textos de Rubem Braga, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade e Paulo Mendes Campos (sim, esse timaço), os volumes da coleção iniciaram mais de uma geração no universo literário. Abrindo o mundo-no-ser ao privilégio que não se nutre sem risco: como largar os livros, depois de sua descoberta? A degustação silenciosa das palavras impressas, ao alcance das mãos, levando a imaginação para longe do movimento fixo do olhar, desligando a percepção do espaço e do tempo ao redor, é um prazer que não se abandona.
Mas… e se os templos da paixão pela leitura – as livrarias – fecharem, que será da literatura? Que vai ser do mercado editorial, sem o poder convergente desses espaços? E de nós, consumidores ou turistas acidentais, contumazes devoradores ou ocasionais apreciadores das letras? As manchetes sobre a crise assustam. Nas entrelinhas das notícias, o que não se lê são perguntas compartilhadas pela estupefação. Ou no juízo acelerado pelo ânimo da mobilização. Afinal, alguma coisa precisa ser feita, no apelo da manchete da urgência. E da hashtag de uma campanha compungente. A resposta que se repete é a cara de susto, diante do futuro anunciado com proximidade tão incerta quanto indiscutível.
Ainda mais quando a crise das megalivrarias se pinta como a ponta do iceberg: em uma década, mais de 21 mil livrarias teriam desaparecido no Brasil, segundo pesquisa recente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). “Dê livros de presente”, lemos e entoamos juntos em tom de salvação, no mais recente Natal. No cenário apocalíptico do fim dos hipermercados dos livros, valeu imaginar pessoas declamando trechos decorados de suas obras preferidas, como em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Só que a distopia publicada em 1953 está longe da atualidade. Redes de lojas podem se quebrar, ou encolher. Mas nem o hábito da leitura, nem o que o alimenta, quebram tão facilmente.
Ler é sair da rotina pela janela de uma ação estruturalmente modificante. Ler é disruptivo. Embora pareça um ato passivo, reflete atitude de ruptura: com a realidade, com a identidade, com a temporalidade. A leitura nos leva à inquietação constituinte do ser dotado da capacidade de ler. Porque a vida não vem com manual de uso do sistema consciente, lemos poemas, ensaios, novelas, tratados filosóficos. Como se um propósito eventualmente escrito melhorasse a compreensão do que não conseguimos ler sem a ordenação elegante das palavras. Talvez o alfabeto disposto em frases e versos funcione para o discernimento humano do mundo da forma como a combinação de bases nitrogenadas (adenina, guanina, timina, citosina) monta um organismo inteiro via DNA. Quem sabe, lemos para acessar o DNA que não há escrito em nós.
A crise das livrarias não deve ser um beco sem saída para a leitura. Tanto pode ser assim, que pipocam clubes de assinaturas de livros no país de Macunaíma. Entre a crise verdadeira e a última versão dela, há clareiras para deitar uma esteira e ler um bom livro. Onde estaria a imagem perdida, mítica, do leitor? O que narram, enquanto vitrines de exposição e consumo, as casas de comércio editorial? Por outro lado, qual a mágica por trás da assinatura que nos torna sócios de clubes de livros como de clubes de vinho – que também se disseminam na pátria já buscada por Mário de Andrade? Um gole a cada página, uma garrafa por livro, seria incrível nos vermos embriagados de literatura.
Tal qual o herói anti-herói está distante do bem e do mal, o mercado não entra em colapso na substituição de hábitos de consumo. O nicho de palavras em livros vai se reformulando com a aquisição de novos hábitos em geral. A leitura vai passando das mãos para os dedos, compartilhando-se no corpo, sem escapar – por enquanto – do olhar. Dos endereços fechados e das dívidas abertas, oportunidades aparecem. Nas plataformas de leitura, nos clubes de assinatura, nas modalidades de compra que se encaixam em segmentos editoriais. Nas pequenas livrarias e editoras independentes que desmentem o destino apocalíptico. Até a indicação para a consumação do hábito do qual se nutre o negócio do livro vira atividade profissional: os consultores de leitura, curadores literários, ocupam espaço até ontem pouco explorado. Como os influenciadores digitais, novos intermediários do consumo cultural. Será bom? Só lendo o futuro, que quase ninguém lê – a não ser, claro, os profetas da ficção científica, como Bradbury, sir Arthur C. Clarke, George Orwell, Phillip K. Dick ou H. G. Wells.
As relações entre os elos do mercado editorial, há muito questionadas, emergem na discussão. Do autor ao leitor, o caminho da produção à distribuição pode se transformar, ou ganhar possibilidades. Se as livrarias ficam menores, os espaços de leitura se multiplicam, junto com os modos de se adquirir o que se deseja ler. Se as bibliotecas pessoais também diminuem de tamanho, qualquer leitor pode levar no bolso uma biblioteca, com as obras literárias ou científicas de preferência. E se não levar no bolso, deixa na nuvem, para baixar e ver quando quiser.
Vamos continuar a gostar de ler, não importa onde a leitura estiver.