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Fado Bicha traz cores ao tradicional ritmo português

Dueto incorpora personagens LGBTI ao universo tradicional do fado

TEXTO RICARDO VIEL, DE LISBOA

01 de Fevereiro de 2019

Fado Bicha se faz com a voz de Tiago Lila e a instrumentação de João Caçador

Fado Bicha se faz com a voz de Tiago Lila e a instrumentação de João Caçador

Foto HERMES DE PAULA/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

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E se, ao invés do Chico, o “par jeitoso” da Bia da Mouraria fosse uma mulher? É essa a leitura que o projeto Fado Bicha faz de uma das mais conhecidas canções do tradicional ritmo português. Na voz de Tiago Lila, 33 anos, que se apresenta como a Lila Fadista, e na companhia da guitarra de João Caçador, 29, a letra do antigo fado fica assim: “Na Mouraria só falam da novidade/ A Bia com a Adelaide e as conversas são iguais/ O casamento já tem data marcada/ Embora qualquer das noivas tenha pouco mais que nada/ Vai ter a Bia a festa que ela deseja/ Irá toda a Mouraria ver o casório na igreja”.

Nascido no começo de 2017, o dueto Fado Bicha pretende dar vez a personagens gays e transexuais que até agora não estavam representados no universo do fado. “Usamos a palavra bicha de uma forma política”, explica Lila. “Pegamos algo que era visto como insulto e passamos a usá-lo como uma forma de visibilidade, para dizer: nós somos bichas e não há nada de mau em ser bicha. É uma espécie de libertação, de catarse”, completa Caçador.

O encontro deles se deu em abril de 2017, algumas semanas depois do nascimento da Lila Fadista. Tiago chegou a se apresentar algumas vezes sozinho, à capela, até que João viu um vídeo seu cantando e, por intermédio de um amigo, marcaram um ensaio. Já não se separaram. Com mais de um ano de existência, a dupla já tocou em Bruxelas e Paris – na Gay Games, maior competição esportiva voltada para o público LGBT –, além de várias cidades de Portugal. Em junho do ano passado, estiveram diante de milhares de pessoas na Praça do Comércio, um dos lugares mais emblemáticos da cidade, como uma das atrações do Arraial Lisboa Pride (a Parada Gay da capital portuguesa).


“Não pode haver mais fado que a vida de uma bicha”, brinca
João Caçador. Foto: Carla Rosado/Divulgação.

Diferentemente de muitos fadistas, nem Lila nem Caçador têm na família alguém ligado à música. “Até metade da adolescência, eu, como 99% dos adolescentes portugueses, odiava fado. Mas a partir dos 16 anos comecei a escutar, havia coisas no fado que começaram a me seduzir porque eu não encontrava em outro tipo de música”, explica Tiago. O interesse por cantar fado demorou uns anos mais e surgiu de uma maneira nada planejada. Após se formar em Psicologia, em Portugal, ele se mudou para a Grécia, onde trabalhou durante dois anos e meio numa ONG pacifista que desenvolvia projetos com refugiados e combatia a xenofobia e o racismo. E foi num encontro com voluntários da organização, numa noite cultural, que cantou pela primeira vez publicamente. “Percebi que as pessoas gostavam e até se emocionavam, mesmo sem perceber a letra, e que eu também gostava.” Repetiu a experiência algumas vezes, em eventos da ONG e, quando voltou a Portugal, decidiu tentar levar mais a sério a música. Fez algumas aulas numa escola de fado, mas não gostou da abordagem – “era muito conservador em muitos aspectos, fui só a três aulas”, diz –, e foi a algumas casas de fado para saber se podia se apresentar. Mas, sem se sentir confortável, não voltou.

“Não cheguei a cantar em nenhum desses lugares e comecei a perceber que havia alguma resistência minha que tinha a ver com o fato de eu não me imaginar a cantar fado de uma forma tradicional.” Queria cantar, mas era preciso encontrar uma forma em que se sentisse representado. A oportunidade surgiu num dia de março, há quase dois anos, num bar chamado Favela LX, em Lisboa, que abria o palco para performances. Um amigo tratou da vestimenta drag para Tiago, que anunciou o evento como Fado Bicha. Nesse dia nasceu o nome do projeto e a Lila Fadista, mas Tiago sentia que ainda faltava algo. Era o arranjo musical, que veio com a guitarra de Caçador.

“Muitas vezes o que nós fazemos é visto como uma provocação, uma tentativa de desvirtuar o fado, uma falta de respeito”, explica o guitarrista, que alterna as suas apresentações ao lado de Lila com outras em casas de fado tradicionais – E isso não gera conflito?, pergunto. Diretamente, nunca foi criticado por isso, mas sabe que colegas do mundo do fado tradicional não veem com bons olhos o que faz. “Há coisa muito portuguesa nessa história, que é a não confrontação. Alguns fadistas deixaram de falar comigo, por exemplo, mas diretamente nunca me disseram nada.” No fado, explica o músico, existe uma espécie de “entidade” que é o “fiscal do fado”, uma pessoa de mentalidade conservadora (pode ser mais velho ou pode ser um jovem, explica) que, ao menor indício de alteração na tradição, levanta a voz para lançar acusações e impropérios. Como se pode imaginar, o Fado Bicha deixa de cabelos em pé os tais “fiscais”.


Foto: Carla Rosado/Divulgação.

MATRIZ MARGINAL

O curioso nessa história é que as origens do fado remetem justamente à marginalidade. Quando nasceu, lá no começo do século XIX, era um gênero restrito aos bairros frequentados por marinheiros, prostitutas e trabalhadores da classe baixa. A primeira fadista famosa, chamada Maria Severa, era uma prostituta que, conta a lenda, usava a sua linda voz para encantar os homens. Desprezado pela elite econômica e intelectual do país, foi só na metade do século passado que o fado se consolidou como um dos símbolos culturais portugueses. Quando veio a Revolução dos Cravos, em 1974, que devolveu a democracia à Portugal, o ritmo caiu um pouco no ostracismo. Era associado ao antigo regime, visto por muitos como uma música antiga, ultrapassada.

Nas últimas duas décadas, o gênero recuperou o vigor, com uma nova geração de músicos e um público rejuvenescido. A boa fase se consolidou em 2011, quando a Unesco declarou-o patrimônio imaterial da humanidade. E é justamente o documento que expõe a necessidade de proteger as expressões culturais existentes no mundo que serve de argumento para João Caçador defender o projeto que leva a cabo ao lado de Tiago Lila.

Diz assim o artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da Humanidade: “O patrimônio cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é permanentemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e a sua história, proporcionando-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana”.

“A maioria das pessoas que se sentem orgulhosas do fado ser declarado patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco não leu isto”, diz Caçador. “Basicamente essa é a definição do Fado Bicha. Num sentido figurado, as bichas são todas marginais, por sua opção. Portanto, não pode haver mais fado do que a vida de uma bicha”, conclui, e abre um sorriso.


Fado Bicha no Concerto Pride. Foto: Carla Rosado/Divulgação.

Embora a roupa e o instrumento não sejam os comuns no fado (é tocado com guitarra portuguesa, um pouco maior que um cavaquinho e mais ovalado, com seis pares de cordas, e violão), a revolução que o dueto Fado Bicha traz, dá-se, sobretudo, na atitude, defende Lila. “Não queremos modernizar o fado, não se trata disso, nossa proposta não é trazer sonoridades novas. No nosso caso, há uma série de subversões, nas letras, nas temáticas, na forma como estamos em palco, e também no uso da guitarra. As identidades que nós trazemos para a música que fazemos são muito antigas, mas não tinham possibilidade de serem vividas abertamente e muito menos de serem postas num lugar de criatividade como podemos fazer agora. A única modernidade que vejo é podermos fazer isso agora.”

Além das adaptações de antigas canções, que ganham letras diferentes, a dupla tem no repertório fados que, embora não tenham abertamente uma conotação homossexual, podem ser assim interpretados. Ainda mais quando os autores das letras são poetas homossexuais, como Ary dos Santos ou Pedro Homem de Mello, que, por viverem em ditadura, não podiam abertamente falar sobre essas questões. É o caso, por exemplo, do fado O rapaz da camisola verde, que permite diversas leituras ao dizer: “De mãos nos bolsos e de olhar distante,/ Jeito de marinheiro ou de soldado,/ Era um rapaz de camisola verde,/ Negra madeixa ao vento,/ Boina maruja ao lado”.

Embora já tenha se apresentado até na televisão pública portuguesa, por enquanto, o projeto Fado Bicha está mais restrito ao universo queer friendly. Pouco a pouco vão rompendo as barreiras. Em setembro de 2018, por exemplo, cantaram em três festivais que não têm a temática gay como centro – um deles é o festival literário de Óbidos, o FOLIO. – Será que um dia vocês vão figurar na galeria do Museu do Fado? Vão tocar numa casa de fado tradicional? “No museu do fado, eu tenho a certeza”, responde sem pestanejar Lila, para logo completar: “Acho que, se continuarmos e fizermos um trabalho de qualidade, é possível, porque as coisas se reinventam. Quando uma pessoa traz uma proposta nova, que vai contra uma série de cânones, é normal que haja resistências no começo”.

Tocar numa casa de fado tradicional já é algo menos provável. “Acho importante que, nesses lugares, se conserve o fado como ele é: a guitarra portuguesa, a viola, os acordes a postura. Isso não entra em choque com o que fazemos, fora das casas de fado podemos fazer do nosso modo”, diz Caçador. “Eu até gostaria de cantar numa casa assim, mas cantar de uma forma tradicional, acho que seria uma aprendizagem muito boa”, acrescenta Lila.

NOITE DE FADO BICHA

Numa sexta-feira do fim de agosto, a dupla apresentava-se no bar de um hotel do Bairro Alto, em Lisboa. Trata-se de um alojamento voltado para o público gay e a maioria da plateia naquele dia era de estrangeiros – mais de 50 pessoas sentadas nos sofá, cadeiras e banquinhos próximo ao bar ou ao jardim. Por volta das onze da noite, com um copo de vinho na mão, Lila entra no improvisado palco. Uma peruca de cabelos negros na altura da orelha, um vestido negro, meia-calça cinza, botas negras com detalhes dourados, um leque vermelho numa das mãos, os olhos pintados de azul, e alguns adereços nos pulsos. João Caçador usa uma camisa de flores, calça jeans e tem um pequeno desenho próximo a um dos olhos, é o seu único adorno. A fadista dá as boas-vindas e avisa que falará em inglês, já que a maioria do público não entende português.


Entre as músicas interpretadas, Lila Fadista explica as origens do fado
e do projeto que encampa. Foto: Carla Rosado/Divulgação.

Entre uma música e outra conta história, fala das origens do fado, conta como o projeto Fado Bicha surgiu e explica as ideias por trás das letras que adapta. Lila brinca com a plateia o tempo todo, e, quando canta gesticula, interpreta as canções ora como se fosse uma fadista clássica, ora como se fosse uma diva pop. Na segunda música já tem o público todo ao seu lado. Anuncia que vai cantar o fado da Lila Fadista, uma adaptação da canção Julia Florista. Faz caras e bocas, gemidos e sussurros antes de começar a cantar:

Lila Fadista bicha ativista diz a tradição
Nesta Lisboa figura de proa da nossa canção
(…)
Ai Lila fadista, tua linda história
o tempo gravou na nossa memória

Logo depois, cantam dois fados que foram imortalizados pela voz da Amália Rodrigues. O Namorico da Rita se transforma no Namorico do André, e fala de um peixeiro que, entre as caixas de sardinha do Mercado da Ribeira, vive uma história de amor com o pescador Chico. E o tradicional Nem às paredes confesso vira a Crônica de um macho discreto, a história de um rapaz que, embora tenha uma namorada, usa um aplicativo para marcar encontros com homens:

Não mando fotos assim pois não sou gay
Só quero experimentar outros desejos
A culpa disto, digo e insisto, é do meu pau
De quem eu gosto é da minha namorada.

Após um intervalo de meia hora, Lila e Caçador voltam para a segunda parte do espetáculo. Cantam alguns fados clássicos, cujas letras não alteram por serem suficientemente dúbias, a ponto de serem entendidas como pertencentes ao universo gay. O já citado O rapaz da camisola verde é um deles. Outro é o De costas voltadas, em que se canta: “Nunca fui o que quiseste/ Fui sempre o que não gostavas”. Lila avisa que fará um tributo a Elza Soares, por entender que é uma maneira de trazer à tona a questão do racismo. “Na nossa ativista maneira de ver as coisas, o racismo é um tópico pouco comentado em Portugal, o que as crianças aprendem na escola sobre o colonismo, sobre o tráfico de escravos, é um detalhe, não se fala sobre os milhões de seres humanos que foram escravizados, não se reflete sobre isso”, discursa antes de entoar Mulher do fim do mundo.

A última canção, para “terminar com alegria”, avisa, é a Marcha do orgulho. Acompanhada de palmas do público, Lila canta:

Nós existimos, amamos e sorrimos na marcho do orgulho
Nem menos nem mais, direitos iguais
São muitas as nossas cores, mil bichas na rua

Os músicos se despedem, mas o público pede bis. E, entre suspiros e assobios dos presentes, Lila termina a noite com o clássico mexicano Cucurrucucu Paloma.

Na audiência, uma jovem sentada no chão, bem próxima dos músicos, assiste ao espetáculo com atenção. Às vezes saca da bolsa um caderno e parece anotar algo enquanto observa a dupla. No final do show vou ao seu encontro, pergunto se posso saber o que escreveu enquanto via a apresentação. “Ah, são desenhos que fiz, nada de mais. Quer ver? Posso mostrar”, diz a moça em um português com sotaque. É italiana, tem 27 anos, e há pouco mais de um vive em Lisboa. Conta que, até conhecer o projeto de Lila e Caçador, nunca tinha ouvido com atenção o fado. “Só ouvi alguma coisa da Amália Rodrigues porque a minha avó escutava e cantarolava de vez em quando. Não é o tipo de música que tenho no Spotify, o estilo profundo e extremamente emocional não facilita muito. Mas o que eu amo no fado é essa teatralidade e a emoção que transmite”, conta. Quando conheceu o Fado Bicha, o projeto estava no início, “não eram famosos”, brinca. Naquela sexta, havia levado três amigos para escutar o dueto, de quem se diz fã. “Na primeira vez que os vi, fiquei imediatamente raptada pela presença de palco da cantora e pelas notas firmes, mas suaves do guitarrista. Acho que eles funcionam em vários níveis: em primeiro lugar, o fado é drama, por isso não há nada melhor do que a drag para expressar isso; mas também é uma questão de reivindicar uma música tão tradicional, enraizada no tempo e, portanto, conservadora, e usá-la como um meio de falar sobre a cultura LGBT”. Para a italiana, o Fado Bicha é um projeto que, usando a tradição, serve para destruir preconceitos. “É brilhante, fala de nós, da nossa geração”, diz a jovem, que sorri enquanto o piercing que tem no nariz, uma argola prateada, reluz.

RICARDO VIEL, jornalista brasileiro, radicado em Portugal.

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