Artigo

A herança tão atual da música antiga

Transição da Renascença para o Barroco marcou o desenvolvimento de práticas e gêneros musicais que perduram até a atualidade, como as cifras de acordes, as tablaturas, a ópera, a música gospel

TEXTO CARLOS EDUARDO AMARAL

01 de Fevereiro de 2019

The concert

The concert

Imagem Gerard Van Honthorst/Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 218 | fevereiro de 2019]

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É relativamente comum encontrarmos músicos que não sabem ler partitura, mas que possuem bom domínio técnico do violão ou da guitarra. Decerto, adquiriram esse domínio por meio de uma dentre três formas possíveis: memorizando cifras (códigos que indicam acordes), lendo tablaturas (cifras mais específicas, que indicam onde se posicionar os dedos no braço de um instrumento de cordas dedilhadas, a fim de produzir os acordes desejados) ou de ouvido mesmo.

Cifras e tablaturas são métodos alternativos de notação musical que vêm do alto Barroco e enriqueceram a técnica de desenvolvimento harmônico chamada de homofonia. Como este artigo tem como público-alvo leigos em música, será necessário explicar, assim, alguma terminologia. Falamos, aqui, de harmonia dentro do universo musical: as normas que regem as relações entre as notas musicais sobrepostas (isto é, os acordes) e suas possibilidades de sequência.

Do processo de desenvolvimento discursivo musical conduzido por uma única linha vocal, chamado de monofonia ou monodia (cerne do canto sacro nas três religiões abraâmicas), até o de expansão e equilíbrio de duas, três ou tantas linhas vocais simultâneas, denominado de polifonia (regido pelo respectivo conjunto de normas, o contraponto), foram precisos alguns séculos, da Idade Média à Renascença.

O contraponto, regulação ligada intrinsecamente à harmonia, mas até então mais preponderante do que essa, floresceu muito particularmente no âmbito do canto litúrgico católico romano e continuou sua vereda no seio das igrejas reformadas. Porém, nesse meio tempo, viu nascer uma condução de discurso protagonizada por uma única linha vocal acompanhada por um ou mais instrumentos, qualificada de homofonia – que permitiu a proeminência da harmonia pura, sem a preocupação intrínseca com o contraponto.

A homofonia e a polifonia acharam diversas possibilidades de caminho em conjunto, abertas especialmente por compositores como os irmãos Gabrieli (sec. XVI), Giovanni Pierluigi da Palestrina (c.1525-1594), Claudio Monteverdi (1567-1643) e, na Alemanha, Heinrich Schütz (1585-1672), até culminar na obra daquele que é tido por parâmetro da perfeição divina encarnada em sons: Johann Sebastian Bach (1685-1750). Mas interessa-nos contextualizar, primeiro, sobre como nasceu a homofonia. E isso muito se deveu à Camerata Florentina.


Manuscrito da ópera sacra Missa do papa Marcelo,
de Giovanni de Palestrina. Imagem: Reprodução
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A HOMOFONIA E A ÓPERA

Na movimentada Florença quinhentista, sob o comando dos Médicis, surgiram muitos grupos não acadêmicos de discussão filosófica, artística e científica. Em um deles – a Camerata Florentina, mantida pelo mecenas Giovanni de’Bardi (1534-1612) –, a música era o tema central das conversações. A Camerata foi um dos principais focos de contestação à prática da música coral polifônica da época (cantada por várias linhas vocais distintas, tratadas igualmente, e sem, ou quase sem, acompanhamento instrumental).

Instigados pela correspondência com o helenista residente em Roma Girolamo Mei (1519-1594), o alaudista Vincenzo Galilei (1533-1591, pai de Galileu) e de’Bardi lançaram as bases de uma nova prática de canto. Priorizando a compreensão clara da poesia e os solos vocais acompanhados por instrumentos, a homofonia se mostrou uma forma eficiente à recém-pensada reconstituição dos dramas gregos, nominada de ópera, que se alastrou pelos teatros europeus (e, mais tarde, mundiais) desde 1597, com a aparição do primeiro drama musicado: Dafne, de Jacopo Peri (1561-1633).

Esse compositor residente em Florença criou ainda mais uma ópera, Eurídice (1600), cuja partitura sobreviveu completa até nossos dias, ao contrário da de Dafne. Curiosamente, aquela reconstituição carregou um crucial engano conceitual, descoberto a posteriori (como narra o crítico operístico Sergio Casoy, no livro A invenção da ópera): devido às escassas e fragmentárias fontes, disponíveis à época, sobre o assunto, pensava-se que o drama grego era um espetáculo integralmente cantado, na Grécia Antiga.

Na verdade, apenas o coro cantava, e em momentos determinados da trama. Assim, a ópera acabou aparecendo como algo, de fato, novo, enquanto era pensada como um produto de música antiga (da Antiguidade grega, a rigor). Seja como for, a homofonia serviu como a plataforma perfeita para o protagonismo da voz solista, e, por conseguinte, para a expressão dramática desta, ao mesmo tempo em que viu o acompanhamento musical ganhar autonomia e enriquecer a função dos instrumentos musicais, permitindo que estes ditassem ritmos e atmosferas sentimentais para a evolução da própria voz solista – e depois, no Barroco, prescindindo desta.

Na música profana, as duas coisas, canto solista acompanhado e a música puramente instrumental, já existiam há bastante tempo (vide os aedos da Grécia Antiga – os cantadores daqueles tempos – e as danças populares medievais), mas não com a riqueza de possibilidades estéticas que compositores sacros e dramáticos vieram a oferecer a elas do século XVI em diante.

A flexibilização e a riqueza do acompanhamento instrumental foram atingidas graças ao desenvolvimento do baixo contínuo, uma estruturação musical em que, graficamente, apenas a nota mais grave do acompanhamento (a do baixo) é assinalada na partitura ou por extenso (cifrada) – conforme a nomenclatura inglesa ou alemã, em que as notas têm nomes de letras –, junto com números que indicam a relação das demais notas com aquela.

Já nas tablaturas, via de regra, os números assinalam a posição dos dedos do executante no braço do instrumento, como dito no início deste texto. Para o compositor e musicólogo Harry Crowl, mineiro radicado no Paraná, o sucesso das tablaturas tem todo o sentido: “São códigos que dialogam com a fisiologia dos dedos e do braço do instrumento e, portanto, bem mais simples de ser interpretados”.

Mesmo com algumas linhas gerais a obedecer, os intérpretes passaram a ter mais liberdade de execução e improvisação. Para se entender melhor: pegue um acorde de três notas quaisquer – dó, mi e sol, por exemplo. Você pode dispô-las em um violão ou um instrumento de teclado de múltiplas formas, trabalhando distâncias (posições das notas em determinadas oitavas) e dobramentos (duplicações) entre essas notas. A título de melhor entendimento: escolha uma canção de sua preferência e compare como alguns cantores a executam no violão ou na guitarra. Nenhum executará igual ao outro.

VOX POPULI ET VOX DEI

A consolidação da homofonia na ópera e na canção de câmara também influiu a música sacra. Embora a música coral escrita a partir da Renascença, por sua própria natureza (que classifica as vozes em grupos, de acordo com os timbres destas), exija um tratamento polifônico, esse tratamento veio a ser simplificado com Palestrina (vide a Missa do papa Marcelo), em prol da inteligibilidade do texto cantado – que havia perdido a compreensão em meio das múltiplas linhas vocais simultâneas da polifonia em sentido estrito.


O compositor italiano Giovanni de Palestrina. Imagem: Reprodução.

Harry Crowl aponta que, além das colaborações musicais empreendidas por Palestrina, Monteverdi prestou uma contribuição essencial por adotar amplamente o baixo contínuo, variar a metrificação (utilizar mais opções de compassos) e reforçar o conteúdo dramático do texto, conforme absorvera indiretamente da Camerata Florentina – indiretamente porque, a Monteverdi, que vivia no ducado de Mântua, é atribuído algum grau de contato com a música de compositores florentinos. Não se contesta a revolução da concepção operística que foi a estreia de Orfeu (1607), o primeiro drama musical monteverdiano, 10 anos depois da Dafne de Peri. Apenas não temos como precisar qual foi o grau de contato entre esses compositores.

Com a ópera, no ocaso da Renascença, a música secular ultrapassou a música sacra em interesse do público e fundiu outras artes tão diversas quanto a música, a literatura, a dança (balé) e o teatro. O balé clássico, em particular, sistematizou-se (como o conhecemos hoje) na França, em 1661, graças à fundação da Academia Real de Música, na corte de Luís XVI. Contudo, o balé clássico vem, igualmente, da corte florentina, no século XVI. Seus espetáculos agregavam outras artes, tal qual a ópera, porém sem que houvessem logrado algo único.

O professor do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, Ibaney Chasin, concorda que a influência entre a música clássica e a profana passou a ser de absoluta mutualidade. “Pense-se, por exemplo, que, a fanfarra musical que abre o Orfeu, de Monteverdi, é a mesma com a qual o compositor abre sua obra sacra Vespro della Beata Vergine. O que conecta as duas obras, de fato? Os afetos humanos expressos! Portanto, o que as liga, radicalmente, é o modo como Monteverdi pensa e faz música: para ele, nada mais é do que expressão da interioridade que vive e sofre, alegra-se e entristece, nasce e morre – seja isso uma polifonia ou uma melodia, as quais, aliás, em Monteverdi, interpenetram-se à exaustão. De fato, são uma e a mesma coisa” disserta.

“A necessidade do uso de afetos abrange tanto a música sacra quanto a profana. Como na música sacra há um limite imposto pelo conteúdo dos textos litúrgicos, esta tende a ficar mais confinada, enquanto a música profana começa a se expandir, especialmente no campo instrumental”, complementa Harry Crowl. Como Monteverdi transitava com maestria entre ambas, sua influência reverberou tanto nos motetos e missas que escreveu quanto nas óperas e madrigais.

Monteverdi e Palestrina, por sua vez, tiveram um grande sucessor em terras alemãs: Schütz, que abriu caminho para a construção do hinário protestante (ou, se quisermos usar outras palavras, sem estarmos errados, da música gospel). A Reforma, por promover a tradução da Bíblia para as línguas nativas e envolver os fiéis na pregação da palavra e na liturgia, impulsionou uma tendência de hinos rimados, e calcados em melodias simples e lentas, de modo que não precisam mais lançar mão de cantores monges ou sacerdotes. Michael Praetorius (1571-1621) e Dieterich Buxtehude (1637-1707) contribuíram sobremaneira para essa “nova tradição” da música sacra que vai do luteranismo até o neopentecostalismo hodierno – este, bem-influenciado pela música pop.

CONSIDERAÇÕES ACÚSTICAS

Existe uma sensível diferença entre muitas gravações de música antiga e de música pós-barroca, que está no diapasão, costumeiramente mais baixo nas obras de antanho. Conhecemos por diapasão o objeto metálico utilizado para emitir uma nota musical padrão (por convenção, a nota lá, acima do dó central do piano), usado no processo de afinação de um instrumento. Essa nota é materializada em uma quantidade X de vibrações por segundo (hertz), que serve de base para as demais, pois todas as notas guardam uma proporção matemática exata entre si.

Por extensão, o termo diapasão aplica-se a essa frequência convencionada. Atualmente, o diapasão mais disseminado para a nota lá é 440 hertz (enquanto no séc. XIX o predominante era de 432 Hz), mas podemos encontrar variações de 410 a 444 Hz, por exemplo. É certo que, com o passar do tempo, o diapasão foi crescendo, mas há um limite a ser respeitado, para não extrapolar a afinação das notas superagudas de um piano ou de um órgão.

Segundo Ibaney Chasin, que é autor do livro O canto dos afetos. Um dizer humanista: aproximações à reflexão musical do renascimento tardio italiano (Perspectiva, 2004), o aumento do diapasão “foi o resultado da busca de uma maior projeção sonora, que subentendeu o desejo de um brilho sonoro mais intenso. O diapasão que sobe é exigência social de brilho, intensidade, força sonoras – exigência que, sem dúvida, tem por impulso a necessidade de uma sonoridade capaz de dar conta de teatros cada vez maiores e maiores”. Um diapasão mais baixo, portanto, como encontramos na música antiga, tende a ter efeito menos instigante sobre nosso subconsciente.

Outro fenômeno acústico digno de nota, que alterou significativamente a percepção (e também a escrita) musical, na Renascença, foi o emprego dos cori spezzati (coros separados): devido à disposição da Basílica de São Marcos, em Veneza, os coralistas não haviam como se posicionar à frente do altar-mor, então a solução adotada consistiu em dividirem-se entre as naves laterais, mas sem cantarem simultaneamente – e, sim, responsorialmente –, já que o eco interno da igreja possui uma reverberação acima do comum. Tal prática começou por volta dos anos 1540 e teve seu apogeu com os irmãos Andrea e Giovani Gabrieli, em cerca de 1580.

Esse eco, ainda por cima, atrapalhava o tratamento polifônico, que, por sua vez, tinha como fórmula mais consagrada o cânone – no qual as linhas vocais introduziam uma mesma melodia em entradas (momentos) diferentes, criando um efeito de eco próprio (eco, aqui, em sentido figurado) que, numa igreja como a de São Marcos (sob um eco propriamente dito), tornava mais ininteligível ainda o texto cantado. Todos os compositores principais do séc. XVI que puderam ir a Veneza para apreciar essa ocorrência natural de som estereofônico o fizeram, inclusive Monteverdi, que se mudou de Mântua para lá e assimilou o estilo dos cori spezzati.

Por fim, com o passar do Alto Barroco (séc. XVII), muitos instrumentos musicais foram caindo em desuso, enquanto outros foram ocupando lugares cada mais centrais na cena camerística e orquestral. O aflorar da música instrumental, do final da Renascença para o início do Barroco, delineou, ainda por cima, os primeiros respectivos gêneros musicais: a sonata de igreja e a sonata de câmara, a fantasia, a tocata, o prelúdio.


Max Scholz Chorkonzert. Imagem: Reprodução.

Hoje, instrumentos como a tiorba, o alaúde, a viola da gamba e o cravo praticamente são ouvidos apenas na execução de música antiga, com relativa exceção do último, a quem diversos compositores desde o século passado voltaram a escrever obras. Outros, a exemplo do trompete, da sacabuxa (que evoluiu para o trombone moderno) a trompa e a flauta transversa, sofreram modificações mais tardias. O piano veio mais tarde, depois de 1700.

Nessa evolução e “seleção natural” das famílias de instrumentos, o violino emergiu como o maior protagonista. Seu polo de luteria pioneiro, na cidade italiana de Cremona, adquiriu renome mundial graças a famílias de luthiers que aperfeiçoaram a construção do violino (bem como da viola, do violoncelo e do contrabaixo), elevando-a a um nível inigualável: os Stradivari, os Guarneri e os Bergonzi, mas sobretudo os Amati, cujo primeiro representante, Andrea (c.1505-c.1578), estabeleceu os parâmetros de confecção violinística que conhecemos.

Os instrumentos de metais e madeiras, em sua maioria, passaram por avanços técnicos de fabricação nos períodos clássico e romântico (1750 a 1830, nomeadamente). Mesmo assim, não possuem rigorosamente o mesmo timbre dos atuais, pois há sutis diferenças, pelos materiais atualmente utilizados. Os instrumentos de cordas friccionadas constituem exceção, mas até certo ponto, pois os violoncelos ganharam espigões, para que ficassem apoiados no chão, e não mais no colo dos instrumentistas, o que permitiu melhor projeção sonora; alguns contrabaixos ganharam uma corda mais grave, para duplicarem sem restrições os violoncelos; e as cordas mudaram da tripa animal para o metal.

Se nos dias atuais dispomos de instrumentos musicais de feitura sofisticada, preocupamo-nos com uma afinação precisa, temos uma consciente percepção tridimensional do som, apreciamos musicais e óperas-rock, deparamos com a força da música gospel e lemos música sem precisar necessariamente de partituras, devemos agradecer às inquietações intelectuais e artísticas oriundas da Itália renascentista. Florença, Cremona, Mântua e Veneza valem mais do que pensamos: não nos fizeram apaixonados por elas só pelos olhos, por sua arquitetura, mas também pelos sons.


CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista, crítico musical, pesquisador e mestre em Comunicação (UFPE). Pela Cepe publicou, entre outros, Clóvis Pereira – No reino da pedra verde, sobre o maestro pernambucano. Organizou o livro Coletânea de crítica musical – Alunos da UFPE (independente) e colaborou com o livro O ofício do compositor (Editora Perspectiva).

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