O compositor italiano Giovanni de Palestrina. Imagem: Reprodução.
Harry Crowl aponta que, além das colaborações musicais empreendidas por Palestrina, Monteverdi prestou uma contribuição essencial por adotar amplamente o baixo contínuo, variar a metrificação (utilizar mais opções de compassos) e reforçar o conteúdo dramático do texto, conforme absorvera indiretamente da Camerata Florentina – indiretamente porque, a Monteverdi, que vivia no ducado de Mântua, é atribuído algum grau de contato com a música de compositores florentinos. Não se contesta a revolução da concepção operística que foi a estreia de Orfeu (1607), o primeiro drama musical monteverdiano, 10 anos depois da Dafne de Peri. Apenas não temos como precisar qual foi o grau de contato entre esses compositores.
Com a ópera, no ocaso da Renascença, a música secular ultrapassou a música sacra em interesse do público e fundiu outras artes tão diversas quanto a música, a literatura, a dança (balé) e o teatro. O balé clássico, em particular, sistematizou-se (como o conhecemos hoje) na França, em 1661, graças à fundação da Academia Real de Música, na corte de Luís XVI. Contudo, o balé clássico vem, igualmente, da corte florentina, no século XVI. Seus espetáculos agregavam outras artes, tal qual a ópera, porém sem que houvessem logrado algo único.
O professor do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, Ibaney Chasin, concorda que a influência entre a música clássica e a profana passou a ser de absoluta mutualidade. “Pense-se, por exemplo, que, a fanfarra musical que abre o Orfeu, de Monteverdi, é a mesma com a qual o compositor abre sua obra sacra Vespro della Beata Vergine. O que conecta as duas obras, de fato? Os afetos humanos expressos! Portanto, o que as liga, radicalmente, é o modo como Monteverdi pensa e faz música: para ele, nada mais é do que expressão da interioridade que vive e sofre, alegra-se e entristece, nasce e morre – seja isso uma polifonia ou uma melodia, as quais, aliás, em Monteverdi, interpenetram-se à exaustão. De fato, são uma e a mesma coisa” disserta.
“A necessidade do uso de afetos abrange tanto a música sacra quanto a profana. Como na música sacra há um limite imposto pelo conteúdo dos textos litúrgicos, esta tende a ficar mais confinada, enquanto a música profana começa a se expandir, especialmente no campo instrumental”, complementa Harry Crowl. Como Monteverdi transitava com maestria entre ambas, sua influência reverberou tanto nos motetos e missas que escreveu quanto nas óperas e madrigais.
Monteverdi e Palestrina, por sua vez, tiveram um grande sucessor em terras alemãs: Schütz, que abriu caminho para a construção do hinário protestante (ou, se quisermos usar outras palavras, sem estarmos errados, da música gospel). A Reforma, por promover a tradução da Bíblia para as línguas nativas e envolver os fiéis na pregação da palavra e na liturgia, impulsionou uma tendência de hinos rimados, e calcados em melodias simples e lentas, de modo que não precisam mais lançar mão de cantores monges ou sacerdotes. Michael Praetorius (1571-1621) e Dieterich Buxtehude (1637-1707) contribuíram sobremaneira para essa “nova tradição” da música sacra que vai do luteranismo até o neopentecostalismo hodierno – este, bem-influenciado pela música pop.
CONSIDERAÇÕES ACÚSTICAS
Existe uma sensível diferença entre muitas gravações de música antiga e de música pós-barroca, que está no diapasão, costumeiramente mais baixo nas obras de antanho. Conhecemos por diapasão o objeto metálico utilizado para emitir uma nota musical padrão (por convenção, a nota lá, acima do dó central do piano), usado no processo de afinação de um instrumento. Essa nota é materializada em uma quantidade X de vibrações por segundo (hertz), que serve de base para as demais, pois todas as notas guardam uma proporção matemática exata entre si.
Por extensão, o termo diapasão aplica-se a essa frequência convencionada. Atualmente, o diapasão mais disseminado para a nota lá é 440 hertz (enquanto no séc. XIX o predominante era de 432 Hz), mas podemos encontrar variações de 410 a 444 Hz, por exemplo. É certo que, com o passar do tempo, o diapasão foi crescendo, mas há um limite a ser respeitado, para não extrapolar a afinação das notas superagudas de um piano ou de um órgão.
Segundo Ibaney Chasin, que é autor do livro O canto dos afetos. Um dizer humanista: aproximações à reflexão musical do renascimento tardio italiano (Perspectiva, 2004), o aumento do diapasão “foi o resultado da busca de uma maior projeção sonora, que subentendeu o desejo de um brilho sonoro mais intenso. O diapasão que sobe é exigência social de brilho, intensidade, força sonoras – exigência que, sem dúvida, tem por impulso a necessidade de uma sonoridade capaz de dar conta de teatros cada vez maiores e maiores”. Um diapasão mais baixo, portanto, como encontramos na música antiga, tende a ter efeito menos instigante sobre nosso subconsciente.
Outro fenômeno acústico digno de nota, que alterou significativamente a percepção (e também a escrita) musical, na Renascença, foi o emprego dos cori spezzati (coros separados): devido à disposição da Basílica de São Marcos, em Veneza, os coralistas não haviam como se posicionar à frente do altar-mor, então a solução adotada consistiu em dividirem-se entre as naves laterais, mas sem cantarem simultaneamente – e, sim, responsorialmente –, já que o eco interno da igreja possui uma reverberação acima do comum. Tal prática começou por volta dos anos 1540 e teve seu apogeu com os irmãos Andrea e Giovani Gabrieli, em cerca de 1580.
Esse eco, ainda por cima, atrapalhava o tratamento polifônico, que, por sua vez, tinha como fórmula mais consagrada o cânone – no qual as linhas vocais introduziam uma mesma melodia em entradas (momentos) diferentes, criando um efeito de eco próprio (eco, aqui, em sentido figurado) que, numa igreja como a de São Marcos (sob um eco propriamente dito), tornava mais ininteligível ainda o texto cantado. Todos os compositores principais do séc. XVI que puderam ir a Veneza para apreciar essa ocorrência natural de som estereofônico o fizeram, inclusive Monteverdi, que se mudou de Mântua para lá e assimilou o estilo dos cori spezzati.
Por fim, com o passar do Alto Barroco (séc. XVII), muitos instrumentos musicais foram caindo em desuso, enquanto outros foram ocupando lugares cada mais centrais na cena camerística e orquestral. O aflorar da música instrumental, do final da Renascença para o início do Barroco, delineou, ainda por cima, os primeiros respectivos gêneros musicais: a sonata de igreja e a sonata de câmara, a fantasia, a tocata, o prelúdio.
Max Scholz Chorkonzert. Imagem: Reprodução.
Hoje, instrumentos como a tiorba, o alaúde, a viola da gamba e o cravo praticamente são ouvidos apenas na execução de música antiga, com relativa exceção do último, a quem diversos compositores desde o século passado voltaram a escrever obras. Outros, a exemplo do trompete, da sacabuxa (que evoluiu para o trombone moderno) a trompa e a flauta transversa, sofreram modificações mais tardias. O piano veio mais tarde, depois de 1700.
Nessa evolução e “seleção natural” das famílias de instrumentos, o violino emergiu como o maior protagonista. Seu polo de luteria pioneiro, na cidade italiana de Cremona, adquiriu renome mundial graças a famílias de luthiers que aperfeiçoaram a construção do violino (bem como da viola, do violoncelo e do contrabaixo), elevando-a a um nível inigualável: os Stradivari, os Guarneri e os Bergonzi, mas sobretudo os Amati, cujo primeiro representante, Andrea (c.1505-c.1578), estabeleceu os parâmetros de confecção violinística que conhecemos.
Os instrumentos de metais e madeiras, em sua maioria, passaram por avanços técnicos de fabricação nos períodos clássico e romântico (1750 a 1830, nomeadamente). Mesmo assim, não possuem rigorosamente o mesmo timbre dos atuais, pois há sutis diferenças, pelos materiais atualmente utilizados. Os instrumentos de cordas friccionadas constituem exceção, mas até certo ponto, pois os violoncelos ganharam espigões, para que ficassem apoiados no chão, e não mais no colo dos instrumentistas, o que permitiu melhor projeção sonora; alguns contrabaixos ganharam uma corda mais grave, para duplicarem sem restrições os violoncelos; e as cordas mudaram da tripa animal para o metal.
Se nos dias atuais dispomos de instrumentos musicais de feitura sofisticada, preocupamo-nos com uma afinação precisa, temos uma consciente percepção tridimensional do som, apreciamos musicais e óperas-rock, deparamos com a força da música gospel e lemos música sem precisar necessariamente de partituras, devemos agradecer às inquietações intelectuais e artísticas oriundas da Itália renascentista. Florença, Cremona, Mântua e Veneza valem mais do que pensamos: não nos fizeram apaixonados por elas só pelos olhos, por sua arquitetura, mas também pelos sons.
CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista, crítico musical, pesquisador e mestre em Comunicação (UFPE). Pela Cepe publicou, entre outros, Clóvis Pereira – No reino da pedra verde, sobre o maestro pernambucano. Organizou o livro Coletânea de crítica musical – Alunos da UFPE (independente) e colaborou com o livro O ofício do compositor (Editora Perspectiva).