Comentário

O monolinguismo brasileiro, depois de Sylvia Molloy

TEXTO MARIANA PIRES SANTOS
ILUSTRAÇÕES LUÍSA VASCONCELOS

01 de Janeiro de 2019

Ilustração Luísa Vasconcelos

[conteúdo na íntegra | ed. 217 | janeiro de 2019]

contribua com o jornalismo de qualidade

Ao sentar para escrever este comentário, peguei-me pensando sobre o que um livro como Viver entre línguas, de Sylvia Molloy, que trata da questão do plurilinguismo, pode nos dizer a nós, brasileiros; o que nos importa ler e pensar sobre o que é ser bilíngue, sobre como é viver na fronteira entre diversas línguas; que interesse podem nos despertar relatos de casos, anedotas e reflexões sobre a experiência de viver em múltiplas línguas… Enfim, o que este livro pode dizer a nós, que somos tão monolíngues?

Sim, vivemos em um país decididamente monolíngue. Apesar dos milhares de quilômetros de fronteiras que compartilhamos com países hispanohablantes, das cerca de 150 línguas indígenas faladas em nosso território e das mais de 50 línguas de imigração que aqui estão presentes, nossa Constituição Federal é explícita ao reconhecer o português como nossa única língua oficial.

Além disso, não existem políticas públicas voltadas à promoção da nossa diversidade linguística nem no âmbito da educação, nem no da cultura, e, nas escolas, prioriza-se um ensino instrumental da língua inglesa, enquanto outros idiomas, como o espanhol dos nossos vizinhos, ocupam espaço residual.

A experiência verdadeiramente plurilíngue, numa perspectiva multicultural, não instrumental, parece estar reservada a uma parcela muito reduzida da população. Mas a questão não parece gerar incômodo, nem preocupação. Aparentemente, estamos conformados com nosso monolinguismo. Acho até que dele nos orgulhamos. É de modo positivo, aliás, que muitas vezes nos referimos ao fato de que, em um território de dimensões continentais como o nosso, nos pensamos e nos entendemos numa mesma e única língua.

Nesse sentido, a leitura de Viver entre línguas pode ser desafiadora para nós. Quem estiver disposto a correr riscos, a se deixar conduzir às fronteiras e abismos aonde a literatura pode nos levar, poderá, por meio dessa leitura, ser levado a se perguntar sobre nossa situação linguística a partir de outras perspectivas.

Ao ler este livro, vi-me transportada para a minha própria infância linguística, que começa no Recife, capital de Pernambuco, onde nasci. Foi também inevitável pensar nos 10 anos em que morei aqui em São Paulo e na experiência do meu retorno à minha cidade natal, dois anos atrás.

Sabe-se que os pernambucanos, em geral, nutrem uma relação bastante peculiar com seu território, sua história e sua cultura. Mas não sou, acho que nunca fui, uma pernambucana típica. Não acho que nosso passado e nossas tradições nos fazem maiores nem mais importantes que ninguém, nem que somos culturalmente superiores, nem que nossas praias são as mais bonitas. Não sei de cor o hino do estado, não tenho fotos em Macchu Picchu nem na Torre Eiffel segurando a bandeira de Pernambuco, não tenho sequer a bandeira de Pernambuco. Também nunca colei adesivo nem vesti camiseta com o slogan da rede de supermercados local – “orgulho de ser nordestino” –, que continuou sendo usado mesmo depois que a empresa foi comprada por uma multinacional.



O mesmo acontece com a língua. O acento local nunca encontrou em mim pouso pacífico. Minha família paterna vem de São Luís, Maranhão. Meu pai não pronuncia o ‘t’ e o ‘d’ como os pernambucanos. E, quando eu era criança, às vezes, me repreendia quando eu falava “minha tia”… “Não é ‘tia’, menina, é ‘tchia’”. Recordo que essa mesma tia, irmã dele, corrigia-me sempre que eu pronunciava certas vogais com o som muito aberto: “não é vérmelho”, ela dizia, “é vêrmelho”. Cresci, assim, desconfiada da minha própria voz.

Por outro lado, tentava ouvir com atenção outras vozes. Lembro de que, nas aulas de inglês, me preocupava mais com a pronúncia do professor, em perceber como saía de sua boca o som de cada letra e cada sílaba, do que com o que ele dizia. Essa preocupação se reproduzia nos exercícios de leitura. Quando chegava a minha vez, esforçava-me tanto por pronunciar o melhor possível, que não prestava atenção ao sentido do que lia. E, às vezes, ao final da leitura, o professor me surpreendia com alguma pergunta e, sem saber o que dizer, eu fingia que pensava uma resposta enquanto lia tudo de novo, rapidamente, em voz baixa, tentando finalmente entender aquelas palavras.

Não fui uma criança nem uma adolescente que viajou muito. A primeira vez em que entrei num avião foi aos 15 anos. Vim passar férias em São Paulo, presente de aniversário de um tio, irmão de minha mãe, que mora aqui até hoje. Lembro quando vi pela primeira vez o Ibirapuera, o Masp, e a exposição de Monet, a Avenida Paulista, a recém-inaugurada FNAC de Pinheiros, a USP. Lembro que voltei pra casa decidida a, um dia, vir morar aqui.

Comecei mesmo a viajar durante a faculdade de Jornalismo. Eu era do movimento estudantil e isso me levou a percorrer milhares de quilômetros de estrada, em horas intermináveis, dentro de ônibus precários, para participar de encontros e reuniões em diversas partes do país. Voltava de cada cidade com uma coleção de novas palavras e expressões. Meus ouvidos pareciam estar mais abertos do que nunca.

Quando cheguei a São Paulo, em 2006, tinha aqui uma rede de amigos formada nos anos de movimento estudantil. Isso certamente me blindou de muitos preconceitos e experiências difíceis, que tantos conterrâneos relatam. Tenho consciência de que em minhas relações pessoais, e também profissionais, vivi sempre numa bolha. Ainda assim, algo curioso acontecia.

Alguns amigos se mostravam muito interessados no meu sotaque pernambucano. Detinham-se enquanto eu falava, com a máxima atenção. Pediam que eu os ensinasse a pronunciar as palavras daquele modo. Interrompiam-me sempre que eu soltava algum termo que para eles soasse estranho. Achavam lindo, achavam graça. Eu fingia também achar graça, porque não havia de fato maldade no que faziam, mas aquilo me incomodava. Sentia-me um animal exótico.

Mas, com pouco tempo, percebi que meu acento começava a se misturar. Algumas vogais se nasalizavam; o “s”, chiado, às vezes sibilava. De repente, já colocava o artigo definido diante dos nomes próprios. Encurtava os apelidos dos amigos. Incorporava novas palavras e expressões ao meu vocabulário. Não me tornei exatamente bilíngue, mas sinto que passei a falar como uma alterada, no sentido que Sylvia usa no livro.

Em um dos capítulos, ela conta como é ser surpreendida em seu bilinguismo: “Aqueles que ouvem o bilíngue falar na língua deles nem sempre sabem que ele também fala em outra; se descobrem, consideram-no uma espécie de impostor ou também, por que não, um traidor. Essa percepção não é distante da que o sujeito bilíngue tem de si. Ele esconde a outra língua que o delataria: procura que não seja notada e, se tem que pronunciar uma palavra naquela outra língua, faz deliberadamente com sotaque, para que não achem que ele passou para o outro lado”.

Esse fragmento me faz recordar algumas situações embaraçosas. Lembro uma vez que minha mãe me ligou do celular quando eu estava no trabalho, e resolvi atender ali mesmo, na sala. Quando desliguei, meus colegas todos me olhavam e riam. Um deles, então, explicou: “Mari, quando você fala com sua mãe, automaticamente, seu sotaque pernambucano volta, fica mais forte. E, quando desliga, muda de novo”. Restava-me rir junto com eles. Mas, no fundo, ficava desconcertada, sentia-me uma impostora.

Já fui surpreendida, também, em situação inversa. Em um fim de semana, no Recife, enquanto caminhava com minha mãe, atendi ao telefonema de uma amiga de São Paulo. Assim que desliguei, tive que ouvir dela a repreensão: “Mas é ‘miga’ pra cá, ‘miga’ pra lá, porque o Tchi, porque a Má… você tá falando igual à paulista”.

Para um pernambucano, perder o sotaque é trair a pátria. Trocá-lo pelo sotaque paulistano, então, é sucumbir ao império. É assim que sinto que me olham, quando me surpreendem nas minhas misturas linguísticas. E é mais ou menos como me sinto; no mínimo, é como se eu sofresse de falta de caráter.

Às vezes, conscientemente, tento me emendar, esforço-me para não cometer essa grave falta. Por exemplo, quando estou com meu tio, que vive há 40 anos em São Paulo e não perdeu o sotaque. Perto dele, sinto-me uma fraude. Visitá-lo requer vigilância. Não posso deixá-lo perceber que meu sotaque mudou, que está contaminado. Porém, confesso que, às vezes, me pergunto se também ele, de algum modo, não dissimula. Se a manutenção desse acento não exige dele uma permanente luta interior.

Curiosamente, nos anos em que vivi em São Paulo, descobri que, apesar da imensa diversidade linguística que compõe essa cidade de imigrantes, o paulistano talvez seja o mais monolíngue dos brasileiros. Tenho a impressão de que um paulistano que vai viver em outra região do país jamais altera o seu sotaque. Aliás, paulistano pensa que não tem sotaque. O Brasil inteiro tem sotaque, menos o paulistano.

Certa vez, ao conduzir uma aula de língua portuguesa para crianças de 11, 12 anos, quando realizava o estágio do curso de licenciatura, uma delas notou que eu falava de modo diferente, e disparou: “Professora, você tem sotaque”. “Tenho”, respondi. E tive que completar: “Você também tem sotaque”. A revelação gerou protestos, e, então, tivemos que iniciar uma conversa sobre a diversidade linguística em nosso país, as muitas variedades da nossa língua, suas diferenças regionais, sociais e mesmo geracionais. No livro, Sylvia faz um alerta: “Para o monolíngue”, diz ela, “não há mais do que uma língua a partir da qual se pensa um único mundo”. Espero ter conseguido ajudá-los a ampliar seus mundos. Eles me ensinaram o que é ficar “sussa”. E adotei.



Durante muito tempo, essa facilidade de ganhar, perder e misturar sotaques me angustiou. Sentia-me verdadeiramente deslocada: não falava mais como uma pernambucana, mas também nunca falei exatamente como uma paulistana. Sentia-me sem identidade, sem pertencer, linguisticamente, a nenhum lugar.

Há dois anos, voltei a morar no Recife. Experimentei a liberdade de falar “oxente” sem que ninguém me olhasse com curiosidade. Reencontrei, com alegria, a macaxeira, no lugar da mandioca, o mungunzá, no lugar da canjica, a pinha, no lugar da fruta do conde. Não os havia, nunca, abandonado. Mas levei comigo a feijuca, a padoca, a balada. E, às vezes, vacilo entre a laranja-cravo e a mexerica. Alterno o uso do artigo antes dos nomes próprios, dependendo de quem seja meu interlocutor. Mas minhas novas amizades do Recife ganharam apelidos paulistanos: Guilherme é Gui, Pedro é Pê, Tereza é Tê.

Uma das epígrafes com que Sylvia Molloy abre Viver entre línguas é esta de Fabio Morábito: “Só podemos falar porque nosso idioma não está só”. A citação foi tirada do relato La soledad linguística. Nesse texto, o escritor indaga sobre a possibilidade de que em todo o mundo existisse apenas um único idioma.

Admitindo tal hipótese, ele nos desafia a imaginar que, mesmo assim, ainda que todos os habitantes do planeta falassem o mesmo e único idioma, haveria a intuição da diversidade linguística. Isso porque o simples fato de escolher determinadas palavras e não outras para expressar o que se deseja já indica que existem modos diferentes de dizer a mesma coisa. Prova disso seriam os mal-entendidos. Todo mal-entendido, segundo Morábito, é o germe de outro idioma. E toda linguagem, por si só, é uma forma de migração.

Espero que vocês encontrem, em Viver entre línguas, o mesmo convite que encontrei a nos perceber menos monolíngues. Não importa tanto quantos idiomas falamos, nem se temos facilidade ou não de nos contaminar com diferentes sotaques. Este livro nos desafia a assumir uma perspectiva linguística mais plural, seja no interior da nossa única, porém tão diversa, língua oficial, seja por meio de um reconhecimento mais genuíno e generoso da evidente pluralidade de línguas e culturas que integram nosso país.

Por fim, peço desculpas porque sei que vocês vieram aqui para ler sobre Viver entre línguas e terminei falando tanto sobre mim. Mas acho que a literatura de Sylvia Molloy nos dá essa liberdade. Ler seus livros, especialmente seus relatos, é sempre também um convite para que nos olhemos por dentro. Espero, então, que me compreendam e me perdoem o gesto autobiográfico.

MARIANA PIRES SANTOS é jornalista e bacharel em Letras, pela USP.
LUÍSA VASCONCELOS é estudante de Design e ilustradora.

veja também

A sociedade pós-secular

Monsieur Leloup e seus cadernos de cinema

Paula Garcia