Curtas

Com olhos de náufrago ou onde fica o próximo porto

Exposição no Mamam faz uma retrospectiva da trajetória de mais de 30 aos de carreira da artista paraibana Alice Vinagre

TEXTO Paula Mascarenhas

01 de Janeiro de 2019

'Ofélia', 2018, acrílica sobre tela, 79 x 190 cm

'Ofélia', 2018, acrílica sobre tela, 79 x 190 cm

Imagem Alice Vinagre/Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 217 | janeiro de 2019]

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"Iniciar uma jornada espiritual é como entrar em um barquinho muito pequeno e sair pelo mar em busca de terras desconhecidas." A frase, estampada em uma das paredes do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), no centro do Recife, integra a mais recente exposição da artista visual Alice Vinagre. A metáfora usada pela pintora é um trecho do livro Quando tudo se desfaz: orientações para tempos difíceis, da monja Pema Chödrön, e revela a influência budista em suas obras: a espiritualidade, a fluidez da água e os percalços da vida ganham outros formatos e significações não só nas pinturas, mas também em fotografias, grafismos e instalações reunidas na mostra Com olhos de náufrago ou onde fica o próximo porto.

Natural de João Pessoa, a artista plástica Alice Vinagre nutre uma intensa relação de afeto com o Recife, onde mora há 20 anos e onde já realizou diversas exposições. Embora tenha voltado a expor na cidade este ano após uma pausa, a artista possui uma extensa trajetória nacional e internacional, com coleções apresentadas em diversos museus e em salões de arte em outras cidades como Natal, São Paulo e Berlim.


Com olhos de náufrago ou onde fica o próximo porto, 2018, acrílica e colagem sobre tela, 102,5 x 194 cm. Imagem: Alice Vinagre/Reprodução

A estreita ligação entre Alice e as artes plásticas se inicia muito antes da sua vivência no Recife, revelando-se ao longo da sua carreira como uma reverberação da sua prática de rabiscar na infância: a artista aprendeu a desenhar ao mesmo tempo em que começou a ler. “Foram dois processos de muita descoberta e encantamento. Sempre desenhava e usava lápis de cores, bloco de desenho, cadernos e também outros suportes menos tradicionais, como calçada de terra ou chão, enfim, qualquer coisa passível de receber riscos, figuras”, relembra ela, em entrevista à Continente.

Foi em 1984, quando se formou em pintura na Escola de Belas Artes da UFRJ, que a artista efetivamente começou suas experimentações em tela com a tinta acrílica. Na mesma época, Alice fez parte e foi influenciada pela chamada Geração 80, movimento histórico e cultural de retomada da pintura no Brasil, decorrente da liberdade artística e política no país após o período ditatorial. Em diálogo com múltiplas referências da história da arte, o grupo de artistas abusou dos hibridismos e do uso de diferentes suportes e materiais em suas obras, que refletiam uma consciência estética inovadora. E essa mistura de técnicas se reflete diretamente na produção artística de Alice, não só a partir da união de elementos híbridos, mas também na utilização de símbolos abstratos que envolvem sua memória coletiva e arquetípica.


O mar não está pra peixe, 1985, acrílica sobre eucatex, 102 x 102 cm.
Imagem: Alice Vinagre/Reprodução

Lembranças pessoais, vivências próprias e traços autobiográficos também emergem nas peças da artista e nesta nova exposição no Mamam. Além de reunir obras inéditas que contemplam o tema principal, Com olhos de náufrago ou onde fica o próximo porto realiza uma retrospectiva da carreira de Alice, tanto revelando peças inéditas, como exibindo outras produções que poucas vezes foram apresentadas ao público. As 30 obras selecionadas pela jornalista e pesquisadora Julya Vasconcelos estão dispostas em três espaços do museu e foram reunidas de acordo com sua estética e temporalidade, além de se conectarem através do uso do azul e da simbologia da água.

Também em entrevista à Continente, Julya explica que a curadoria foi realizada a partir da análise do conjunto dos trabalhos mais recentes de Alice, que se reportavam constantemente ao elemento água. “As obras fazem um uso maciço dos azuis, dos efeitos translúcidos, das camadas e da água como elemento que é representado pelo mar, pelo rio. A fluidez e o fantasmático também estão presentes e se associam às características da água. Além disso, o simbolismo do elemento e da ideia do naufrágio também são muito importantes para o conceito da exposição.”

Assim, o espaço térreo do Mamam ficou reservado para uma retomada das obras de Alice, com pinturas datadas dos anos 1980 aos anos 2000. Nessa primeira coletânea, há o uso marcante de colagens e cores, principalmente do vermelho, para a representação da força feminina e da natureza, com desenhos de mulheres que denotam também uma referência neoexpressionista na artista, com imagens criadas de forma subjetiva, distorcendo a realidade a partir do auxílio de cores fortes.


Vulcão I, 2014-2016, acrílica e encáustica sobre tela, 80 x 160 cm.
Imagem: Alice Vinagre/Reprodução

Já nos outros andares, um destinado para a exposição principal e algumas fotografias e outro para as grafias e o vídeo produzido pela própria artista, apresenta-se uma série de suas produções mais recentes, mais associadas ao mar, à fluidez e ao azul. São obras que continuam a abordar elementos da natureza e místicos, às vezes de forma onírica, outras de forma figurativa, que contrastam entre “barulho” e o “silêncio”, como a própria Alice Vinagre denomina.

A intensidade das cores, dos contrastes e das texturas provoca no espectador a sensação de agitação. Ao mesmo tempo, as menores mudanças nas tonalidades das cores e das texturas também geram o silêncio e a calmaria das águas. A exposição Com olhos de náufrago ou onde fica o próximo porto fica em cartaz até 24 de fevereiro, no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), com entrada gratuita.

PAULA MASCARENHAS é graduada em Letras pela UFBA, estudante de Jornalismo pela UFPE e estagiária da Continente.

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