Comentário

Cultura em um mundo virtual

TEXTO LOURIVAL HOLANDA

01 de Dezembro de 2018

Ilustração Luísa Vasconcelos

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 216 | dezembro de 2018]

Este mundo, meu menino, é um mundo em movimento

As tecnologias definem uma cultura. E a cultura contemporânea vem se redefinindo com rapidez, sobretudo desde os anos 1970, com a disseminação das novas tecnologias. (Novas? Prestígio fetiche da novidade já antiga…). Na literatura, o fenômeno não é novo: literatura sempre foi um modo de ser virtual. Madame Bovary é tão real quanto nossas trocas de recados por e-mails. A prevalência do virtual modificou, no dia a dia, a concretude do real anterior, desrealizando-o ou alargando-o.

Em Redburn, um romance de Hermann Melville – o Melville que Moby Dick notabilizou –, o marinheiro vai visitar Liverpool com um mapa feito ainda na geração de seu pai: as ruas, os monumentos, as referências, já nada corresponde. Assim a alta rotatividade da cultura atual: impossível mapear uma realidade incessantemente em movimento – sobretudo com a vertigem da velocidade do mundo contemporâneo. Redburn visita os pontos turísticos de Liverpool, mas com um mapa já defasado; a cidade já não é mais a mesma.

Mapear o mundo cultural nesse momento impregnado de virtualidade por todo lado é tarefa impossível. Nenhum mapa, nenhum guia, nenhuma teoria, nada tem mais a pretensão de abarcar a profusão incessante do que vai ocorrendo: por isso os livros, as escolas – lugares de um saber instituído – insatisfazem. As regras do passado são inadequadas. As coisas do mundo, a moral, as ideias, tudo transita. Esse mundo, meu menino, é um mundo em movimento. Qualquer tentativa de fixar valores já está condenada desde o início. Assim, a literatura: o guia do pai já não serve. Quer aprender romance? Dê uma volta num grande porto, ganhe o mundo. A literatura desperta desejos – não dá estradas nem mapas. Sua realidade é virtual. Da literatura se poderia dizer o mesmo que Bergson fala sobre o tempo: o jorrar contínuo de uma imprevisível novidade.

No romance de Amílcar Bettega – Barreira – um pai busca a filha desparecida na Turquia; o último traço real que traz da filha é uma imagem captada pela webcam; índice mínimo a que alguém se apena em meio a muito desespero. É preciso saber ler os sinais, os índices. Esses recursos tecnológicos fazem parte de nosso modo de vida; no corpo e na mente somamos tecnologias que naturalizamos já, como sendo extensão do que somos. O smartphone é uma prótese, um órgão que somamos ao nosso cotidiano.

O mundo virtual é uma realidade largamente corrente na literatura. O computador, o smartphone fazem parte integral de nosso cotidiano. As redes sociais, como o imaginário literário, não têm fronteiras. Ninguém fica fechado em sua paróquia social, em um só grupo; os novos laços se alargam. De novo, o sonho antigo de Goethe: a Weltliteratur – a literatura mundial dependendo de um clique; um polegar basta para acessar esses mundos. Mesmo nossa relação com o saber, nossa relação com a autoridade, tudo muda em nuances e variações.

Portanto, a vida e a técnica estão estreitamente ligadas. A bifurcação, mais nítida a partir dos anos 1970, com o advento da cultura virtual, remodelou o homem, redefiniu a cultura. Nossa relação mais frequente com o mundo é uma janela (Windows) de onde nos conectamos com o mundo, seja a tela ou a telinha – um objeto-mundo? A cultura digital é profundamente móvel, plástica.

O homem já nem se define como essência, palavra cara à antiga filosofia, mas como um modal. Nossa liberdade é uma modalidade do possível. Quem ousaria definir, de modo peremptório, o sexo de alguém? Cada um é um campo de possibilidades; de liberdades. Em Avalovara (Osman Lins), o narrador fica diante do misterioso sexo de Cecília, como Riobaldo frente a Diadorim: o corpo sabe o que a personagem não entende. Recentemente, a Corte Constitucional Federal da Alemanha determinou que se pudesse inscrever na carteira de identidade: masculino, feminino e diverso. No entanto, bem antes da Corte Constitucional alemã, a literatura antecipa a atitude moderna: um albergue, em Le père Goriot, traz a inscrição: para homens, mulheres e outros. E estamos em 1842! O sexo é uma carta em branco: cada qual fará o uso que lhe convier.

Assim como não se ousaria definir para que serve o cérebro: um instrumento aberto a mil possibilidades; assim como a mão: seus tantos usos a indefinem. A arte? Aquilo que nos toca, excita, irrita, convoca; a não arte: o que nos deixa sem estesia – anestesiados. Nas redes sociais, há inteligência desde que alguns elementos imprevistos, através de links inesperados permitem um ângulo inédito. Assim, o homem contemporâneo vive já sem angústia o princípio da indeterminação enquanto liberdade; a liberdade sendo a soma de nossos possíveis.

Por isso a literatura em muitos momentos vai no sentido do preditivo: permite prever, deixar possível – mas não fecha as questões que levanta; ela se enriquece menos pelas respostas que pelas interrogantes que suscita; os termos descritivos insatisfazem. O conceitual não casa com o real literário. De tal virtualidade, nenhum mapa daria conta. Os avanços sociais foram primeiro sonhados pela literatura como utopias possíveis. Depois passam do sonho ao projeto.

Baudelaire louvava o artifício que sua época redescobria. Joaquim Nabuco previa um mundo mais linkado, depois do telégrafo, a grande invenção daquele momento. As máquinas de comunicação (soft) tomaram uma velocidade vertiginosa; e atuam mais que os meios anteriores, as forças de produção. A literatura é soft, virtual, incompressível. O homem contemporâneo somou à vida diária comodidades que redefinem a cultura: a comunicação vertiginosa e que não se mede por coordenadas geométricas: entre minha casa e sua, penso a distância, sim; mas, qual distância entre seu e-mail e o meu? Esse endereço virtual, no entanto, faz a realidade mais concreta de nossa comunicação. A literatura sempre convocou esse potencial; agora, estamos diante de um tipo novo de homem – computantropo? Esse novo humano se refaz a partir das tecnologias; seu corpo se refaz, a sociedade, também.

A política própria à literatura propõe, sugere – quando a política partidária, como a religiosa, impõe. Literatura tende a ter grande desafeição pelo dogma, pela doutrina – quando a voz individual se perde sendo eco da voz alheia, do chefe, do mentor. Romances são os grandes diálogos socráticos de nosso tempo; fazem repensar e, com o grão da dúvida, temperar o fervor – para evitar as adesões fáceis. Infelizmente, a política brasileira desse momento parece fechada para balanço; e, suponho, com dificuldade nesse inventário

Ainda na política, a mentira, as fake news, se impõem como real: partem do prestígio do poder, dão um simulacro de credibilidade e se disseminam rápido; não se pode medir suas consequências. Vindo de Donald Trump ou de um outro político, a verdade parece já não ter consistência, ante a forma peremptória de negação. A veiculação rápida agrava o poder nefasto. Há corrupção, há fatos, mas ninguém confessa. O real parece não ter realidade.

Mas o virtual provoca uma maior ebulição no mundo cultural. A criação contemporânea, na qual prevalecem a imagem e a velocidade, toma a forma virtual. A literatura se reencontra com sua função de fermentar possibilidades, de alargar o leque dos possíveis. É de se crer, uma nova humanidade de anuncia. Em qual direção? Com que linha política? O melhor da literatura não fecha com respostas definidas; antes, as interrogações arrombam o horizonte, transgridem o impasse.

No entanto, o virtual, na literatura, não é nenhuma novidade. As tecnologias mais recentes alargaram o acesso ao mundo: o GPS, o Google Earth, o Wikipédia. Qualquer moleque curioso aparelhado com um smartphone pode saber mais do mundo que o imperador romano Marco Aurélio. Isso, sim, é novidade. Hoje, o coitado do Redburn atualizaria seu velho mapa num clique. Por esse corredor passam também crime e mentira, certo; mas o ganho evidente paga o esforço de um filtro crítico que pede um espírito vigilante. O comércio, a saúde, o conhecimento, as linhas de ônibus, tudo verte para o virtual. Não há, portanto, como mapear a dinâmica desse mundo pragmático; há, sim, alegria e entusiasmo, porque ele alarga as funções da vida, conectando o real com o possível, provocando o imprevisto, as bifurcações bruscas na cultura, local e global.

Não podemos evocar aqui um novo humanismo? E esse mundo ainda novo continua promissor: Vós que sois moços vereis prodígios. O código de acesso é a aposta, a esperança. As redes sociais, essa epiderme coletiva do mundo contemporâneo.

LOURIVAL HOLANDA é professor universitário, diretor da Editora UFPE.

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