Artigo

Poliamor, uma das vertentes de uma nova revolução sexual?

As novas configurações amorosas refletem as transformações de uma sociedade complexa

TEXTO DUÍNA PORTO
ILUSTRAÇÕES LUÍSA VASCONCELOS

01 de Outubro de 2018

Num recuo histórico, o poliamor fundava-se em formulações mais espiritualizadas. Hoje, há um viés mais pragmático e cosmopolita, alavancado pela internet

Num recuo histórico, o poliamor fundava-se em formulações mais espiritualizadas. Hoje, há um viés mais pragmático e cosmopolita, alavancado pela internet

Ilustração Luísa Vasconcelos

[conteúdo exclusivo para assinantes | ed. 214 | outubro de 2018]

A celeuma

O debate sobre o reconhecimento jurídico do poliamor em terra brasilis adquiriu novos tons em 2018, quando o Conselho Nacional de Justiça proibiu os cartórios de registrar uniões afetivas divergentes do modelo de casal a dois, formadas por três ou mais pessoas que se relacionam harmonicamente entre si.

Em 2012, um casal a três de duas mulheres e um homem – um trisal – afirmando conviver na mesma casa há três anos, procurou o cartório de Tupã/SP e oficializou a primeira união poliamorosa do país. Entre 2015–2016, um cartório do Rio de Janeiro também escriturou uniões similares.

Registrando oficialmente que vivem um relacionamento poliamoroso, os interessados declararam-se integrantes de núcleos familiares poliafetivos, uniões estáveis públicas, contínuas e duradouras sob o mesmo teto, buscando estipular direitos e deveres inerentes às relações de conjugalidade.

Por que a celeuma sobre essas declarações de vontade levadas a registro público?

Ao escriturar uniões estáveis poliafetivas, os tabeliães lhes conferiram contornos jurídicos por um documento que pode servir de prova futura, e isso incomoda setores da sociedade (sobretudo do universo jurídico) resistentes a mudanças e avessos à diversidade.

Não há como negar que as tais escrituras conferiram maior visibilidade a estruturas familiares diferentes do casamento e da união estável legalmente regulamentadas, ou seja, a esse tal de poliamor.

Se o poliamor já dava os ares da graça no mundo virtual, em sites, blogs e grupos específicos, documentários, filmes, seriados e estudos acadêmico-científicos, seu registro oficial, no mundo jurídico (e no formato familiar!), reflete a quebra de um paradigma arraigado na sociedade ocidental e no Direito que a rege: a monogamia.

Até quando será possível – ou conveniente – sustentar a monogamia como único caminho afetivo, mantendo o poliamor sob invisibilidade social e jurídica?

O termo poliamor

Antes do termo poliamor ser conhecido na língua e na cultura do Brasil, a expressão inglesa polyamory significava o tipo diferente de relacionamento afetivo desviante do padrão convencional monogâmico. Segundo a pesquisadora Deborah Anapol, uma das fundadoras do movimento poliamorista americano nos idos de 1980, a palavra polyamory surgiu no final daquela década, nos EUA, criada pelo casal Morning Glory Zell e Oberon Zell, ativistas do relacionamento aberto em que os envolvimentos extraconjugais são permitidos.

Casados desde 1974, eles fundaram a Church of All Words, passaram a publicar a revista neopagã Green Egg Magazine e mantiveram uma relação estável com uma terceira pessoa por mais de 10 anos.

A junção do termo grego poly (many) e do latim amor (love) fez surgir esse neologismo desafiador de conjugalidades tradicionais. Em artigo pioneiro de 1980, Zell defendeu o relacionamento aberto responsável, cujo fim seria cultivar relações complexas, contínuas e de longo prazo, pautadas pela honestidade e ciência dos partícipes acerca dos propósitos do poliamor.

Isso não significa afirmar que Morning Glory e Oberon Zell inventaram o estilo de vida poliamoroso, pois suas raízes remontam a eventos como a revolução sexual da década de 1960 e o movimento de contracultura hippie da década de 1970 do século XX, que defendiam o amor livre e contestavam condutas e valores impostos pela sociedade (monogamia e casamento heterossexual).

Porém, antes disso, ainda no século XIX, comunidades americanas viveram sob a ideologia não monogâmica, todas de alguma maneira ligadas à religião e/ou à espiritualidade.

A Oneida Community, comunidade espiritual fundada em 1848 em Nova York, chegou a ter 300 integrantes que viviam sob um regime comunitário não apenas da propriedade, mas também das pessoas, rompendo paradigmas tradicionais e regras de gênero, tendo como filosofia o casamento complexo em que todos os homens e mulheres integrantes do grupo eram casados entre si, inclusive com a vedação de exclusividade monogâmica para o casal. Para eles, o casamento complexo trazia uma dimensão espiritual da sexualidade, aproximando-os de Deus e sendo um meio de eliminar o ciúme e a possessividade do casamento tradicional.

O modelo da Oneida Community é provavelmente o que mais se assemelha ao ideal moderno de poliamor, ao menos em alguns dos seus aspectos mais característicos, como a não monogamia consensual, igualdade de gênero, liberdade e primazia da honestidade entre os parceiros.

Em comparação à comunidade mórmon, cujas convicções originárias afinavam-se com o gênero da poligamia em sua espécie de poliginia, tolerava-se a não monogamia só para os homens, pois para as mulheres isso era adultério. O casamento plural (celestial) defendido pelos seguidores da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, fundada nos EUA por J. Smith no século XIX, era viável na conformação patriarcal do homem como o cabeça das relações simultâneas que mantinha com suas esposas.

A poligamia mórmon dos primeiros tempos destoa profundamente do ideal poliamorista atual, pois ligava-se a uma estrutura de poder, reprodução e supremacia masculinas, além do quê de racismo/eugenia estimulando uniões com homens brancos e nativas americanas para purificar a raça. A poligamia só passou a ser oficialmente rejeitada pelos mórmons com pressões políticas que chegaram à Suprema Corte americana, envolvendo a independência de Utah, onde a doutrina dos mórmons predominava. Houve intensa campanha no estado contra o casamento plural praticado por eles, associado à escravidão e pedofilia.



Outra comunidade, a Brook Farm Community, surgiu na Nova Inglaterra em 1841 como cooperativa agrária voltada ao estilo de vida mais natural e saudável, combatendo os males da Revolução Industrial. O fundador, George Ripley, religioso da Igreja Unitária e graduado em Harvard, era famoso por seu vasto acervo de livros, além da proximidade com intelectuais do movimento transcendentalista americano. Dissidente dos líderes de sua religião, moldou a Brook Farm a partir desses ideais e também do socialismo utópico de Fourier, ultrapassando aspectos organizacionais comunitários para abranger pontos de vista inusitados sobre a monogamia.

A experiência comunal da Brook Farm, a mais intelectual das comunidades utópicas surgidas nos EUA à época, que publicava artigos e revistas apoiando a ideologia fourierista, arruinou-se após um incêndio. A Oneida Community abandonou o casamento complexo após desavenças entre o sucessor de Ripley e hostilidades das comunidades vizinhas, transformando-se em uma sociedade anônima. O casamento plural mórmon, como dito, passou a ser oficialmente rejeitado pelos seguidores da religião. Mas o século XX trouxe movimentos que mudaram concepções sobre as relações sociais e afetivas e influenciaram o que contemporaneamente é denominado de poliamor.

Movimentos libertários

A apologia ao amor livre e o questionamento a condutas e valores tradicionais e opressores como a imposição do casamento heterossexual, patriarcal e monogâmico – por muito tempo indissolúvel – caracterizaram a revolução sexual, o movimento hippie e outros movimentos diretamente conectados ao ideal poliamorista.

A feminista Emma Goldman foi uma das precursoras da fase inicial da revolução sexual, lutando pela liberdade de expressão e independência das mulheres antes mesmo de adquirirem o direito ao voto nos EUA, exercendo papel pioneiro na defesa da liberdade sexual e econômica femininas e apoiando o amor livre.

O termo amor livre, nesse contexto, ligava-se à descrença na imposição de quaisquer estruturas, regras ou legislação sobre os relacionamentos amorosos. Os defensores originais dessa ideologia eram contra a ingerência do Estado nas relações de amor.

Em 1949, Simone de Beauvoir publicou O segundo sexo, e causou grande impacto ao tratar da condição e da sexualidade femininas, sendo sua contribuição fundamental para a teoria feminista e análise das transformações sociais, notadamente na família e no casamento, geradas pela emancipação da mulher. A própria filósofa, adepta do casamento liberal e não monogâmico com Sartre, não pode deixar de ser lembrada como influência para o poliamor.

O cenário seguinte, nas décadas de 1960 e 1970, foi palco para acontecimentos concernentes a mudanças de códigos e condutas sexuais: a invenção da pílula anticoncepcional (transformando a sexualidade feminina); a legalização do divórcio em sociedades ocidentais (acabando com a indissolubilidade do casamento); o sexo fora do casamento e as relações heterossexuais monogâmicas (alterando estereótipos convencionais atrelados a dogmas religiosos); a luta pelos direitos dos gays e das lésbicas (trazendo à baila a diversidade sexual e relacional); o movimento hippie e o lema peace and love (pregando posturas pacifistas e de liberdade sexual).

Nessa toada, surgiu em São Francisco (CA) a Kerista Village, formada por poliamoristas que defendiam a polifidelidade: seus integrantes só poderiam se relacionar entre si. A comunidade, que durou cerca de 20 anos (1970–1990), absorveu também influências da Oneida Community e inspirou a criação de uma revista dedicada ao poliamor, a Loving More, essencial à organização do movimento poliamorista e editada desde 1985.

Essas circunstâncias – formatando uma verdadeira revolução no comportamento sexual – abriram portas para a crescente visibilidade, debate e aceitação paulatina do que contemporaneamente se caracteriza como a não monogamia consensual, gênero do qual o poliamor é espécie. A mudança de valores sexuais e normas culturais advindas da revolução sexual criou um clima favorável a que, pela primeira vez desde o surgimento da Igreja Católica, pessoas no mundo ocidental pudessem conviver e/ou experimentar o estilo de vida ou de relacionamento que passou a ser conhecido como poliamor.

Pelo recuo histórico sobre as raízes do poliamor, viu-se que, num primeiro momento, sua formulação e práxis pendiam mais para o lado religioso, espiritualizado ou transcendental, mas a compreensão atual tem um viés mais pragmático e cosmopolita alavancado pela internet, concatenado com a problemática das relações amorosas não monogâmicas consensuais e o gerenciamento dos relacionamentos poliafetivos.

A discussão sobre o poliamor tomou fôlego com a velocidade e o alcance da comunicação cibernética, as ferramentas da tecnologia virtual, que permitiram a disseminação de informações e ideias sobre comportamentos relacionais não monogâmicos fundados no consenso a um patamar antes inimaginável. Práticas restritas a redutos passaram a ser do conhecimento de um público maior e mais conectado ao redor do globo terrestre. O papel das redes e dos aplicativos sociais foi (e tem sido) fundamental no amadurecimento e na aceitação da diversidade relacional.

Será o poliamor uma das vertentes de uma nova revolução sexual?

A propósito de definições

Os próprios poliamoristas divergem sobre as concepções e a prática dessa conduta, identidade ou modo de vida. Já os que não são adeptos tendem, à primeira vista, a ligar o poliamor à poligamia, infidelidade, libertinagem ou promiscuidade, por enfoques pejorativos que turvam a compreensão. Os dicionários o registram como o envolvimento simultâneo e consentido de pessoas em múltiplas relações sexuais e/ou românticas.

Para além dos dicionários e dos achismos, o conceito que se delineia procura se distanciar da identificação do poliamor à referência exclusivamente sexual, fruto do amadurecimento das perspectivas desenvolvidas precipuamente por ativistas da causa.



Entre os aspectos que o definem, podem ser citados os relacionamentos íntimos concomitantes entre mais de duas pessoas, com o pleno conhecimento e consentimento de todas elas, no âmbito da não exclusividade sexual, sentimental, monogâmica, responsável, ética, honesta e transparente. As circunstâncias, pois, pendem antes para a conexão do poliamor a relações romântico-afetivas do que àquelas puramente instintivo-sexuais.

Até a escolha do termo poliamor provavelmente representa isso, ou a opção poderia ter sido polissexo. A polissexualidade – o sexo com várias pessoas, simultaneamente ou não – caracteriza, em tese, conexões mais carnais do que relacionamentos afetivos. Há os que enfatizam a distinção com o poliamor e os que pensam que ambos podem coexistir.

Em geral, os poliamoristas não se identificam em literalidade ou substância com outras práticas que se vinculam de maneira mais estreita a condutas meramente sexuais, como o swing, e também não se identificam com a poligamia mais ortodoxa ou a promiscuidade, tendo ainda outro olhar sobre a infidelidade.

Apesar de o poliamor ser uma forma de poligamia, o histórico da poligamia traz uma carga negativa de desigualdade entre os sexos, hierarquia e dominação do marido sobre suas esposas, tão marcantes no casamento patriarcal plural, muitas vezes realizado por questões culturais, religiosas e econômicas, e não pela livre vontade das mulheres contraentes, de quem a monogamia sempre foi exigida.

Histórias sobre haréns nas sociedades orientais provocam desde sempre o imaginário ocidental, pelo fascínio exercido através de obras literárias ou o repúdio às situações de rapto, submissão e escravização de mulheres na vida real. Diferentemente do poliamor, que prega a possibilidade de mais de um parceiro para os envolvidos na relação, seja qual for gênero – denotando maior igualdade e reciprocidade –, na poligamia tradicional, o casamento gira em torno de um centro de poder, comumente o homem, que não depende do consentimento de sua(s) esposa(s) para assumir outros relacionamentos.

A ênfase na igualdade de gênero, portanto, é uma das bandeiras levantadas pelo movimento poliamorista, revelando-se como um distintivo em comparação às relações múltiplas (poligâmicas) anacrônicas. O poliamor preconiza a viabilidade de múltiplas parcerias afetivas não só para o homem, mas também para a mulher que participa da relação, sendo essa possibilidade conferida às mulheres uma das suas características primordiais.

No contexto contemporâneo de emancipação feminina, a pretensa igualdade é mais factível, o que se observa nas mulheres poliamorosas entrevistadas por Elisabeth Sheff em pesquisa científica iniciada em 2000 na Universidade do Colorado, incluindo um denso trabalho de campo com poliamoristas nos EUA.

Na investigação, ela concluiu que a maioria dos adeptos é branca, de classe média ou média alta, com educação superior e independência profissional que lhes conferem autonomia e maior liberdade para tomar decisões conscientes. Considerando a cultura e a sociedade em que tais relações vão se desenvolver, assimetrias de gênero poderão continuar a ocorrer: talvez menos graves, por haver duas ou mais mulheres teoricamente unidas, com potencial de enfrentar as complexidades de um relacionamento múltiplo, ou quiçá mais graves, se elas estiverem submissas, especialmente em termos financeiros.

Perfis poliamorosos

Como isso acontece no Brasil? Ainda não há estudos sistematizados e conclusivos… As experiências do poliamor que demonstraram maior ocorrência da igualdade de gênero têm sido comuns em países onde essa igualdade já floresceu, como Austrália, Canadá, EUA e a parte ocidental da Europa.

Além do diferencial relativo às perspectivas de a mulher possuir outros parceiros em iguais condições do homem, a relação poliamorosa contemporânea também diverge da poligamia tradicional pelas possibilidades de serem entabuladas entre pessoas do mesmo sexo, ou com bissexuais. Na pesquisa de Sheff, a bissexualidade feminina está muito presente no poliamor. Ademais, os homossexuais – gays ou lésbicas – há tempos rompem paradigmas para afirmação social de suas identidades. O reconhecimento jurídico das uniões de casais homoafetivos pelo nosso STF, em 2011, foi uma vitória nesse sentido.

Os poliamorosos investigados por Sheff, em geral, possuem perfis mais liberais quanto a ideias, política e religião e são intelectualizados, o que parece facilitar a negociação de regras e limites desse tipo de relação que desafia as convenções sociais. São várias as razões pelas quais escolheram o poliamor: maiores possibilidades de realização afetiva e pessoal através das interações com múltiplas pessoas, mais companheirismo e atenção e menos solidão, variedade sexual, expansão familiar e liberdade…Tais motivos divergem daqueles que levam aos relacionamentos poligâmicos tradicionais!

A vinculação do poliamor à promiscuidade, igualmente, não é bem-vista entre os poliamoristas. Via de regra, eles não pretendem fazer apologia à devassidão ou impor seu modo de vida: apenas não são adeptos da exclusividade sexual e sentimental que caracteriza a monogamia, imposta como norma social, cultural e jurídica.

O conceito de poliamor atrela-se a relacionamentos consensuais abertamente conduzidos em que se permitem parceiros além dos dois que compõem o casal convencional. Para os poliamoristas, essa prática idealmente não é traição, pois os envolvidos sabem das possíveis relações plurais: os arranjos afetivos múltiplos são negociados e permeados de regras construídas pelos interessados.

Para os poliamoristas, o ato de amar não deve sofrer coação para seguir um caminho particular ou direção determinada, importando mais numa atitude de escolha pelo relacionamento amoroso sem tantas expectativas ou cobranças do que na preocupação da quantidade de parceiros envolvidos. Mais válido que a quantidade de parceiros permitidos é o abandono de condicionamentos que impõem formatos a serem seguidos e que não são apropriados para todos.

É contra a formatação de modelo(s) relacionais que os defensores do poliamor se insurgem, pois sua essência não se encontra na forma que o relacionamento adquire, mas nos valores que lhe são subjacentes e na liberdade de escolher e de usufruir as diversas possibilidades das relações afetivas.

Um dos sites mais antigos de apoio ao poliamor é de uma organização sem fins lucrativos, The Polyamory Society, criada em 1996 em Washington para trazer visibilidade global a essa filosofia de vida e contribuir com mudanças sociais positivas no assunto, dando suporte – inclusive jurídico – e defendendo os adeptos da prática, as famílias poliamoristas e as crianças que convivem nesses arranjos afetivos.

Além de questionar o monopólio da monogamia e buscar elucidar certos mitos, dissipando estereótipos de promiscuidade que rondam o poliamor, o principal objetivo desse grupo é lutar pela igualdade política, educacional, social e econômica dos poliamoristas e das famílias poliamoristas, pois o poliamor está no contexto de uma subcultura ou de uma minoria sexual passível de discriminação.

Como se vê, o debate sobre o poliamor há algum tempo já encontra espaço em terras estrangeiras, numa fase de amadurecimento diferente do Brasil, o que não impediu que os poliamoristas brasileiros batessem às portas dos cartórios para oficializar suas uniões! O assunto, portanto, palpita por aqui também! Há publicações nacionais de artigos, livros e trabalhos acadêmicos em várias áreas científicas, sem falar na disseminação do tema na mídia e nas redes sociais.

Paradigmas relacionais

Enfim, o poliamor pode ser visto como a filosofia e a prática não possessiva, honesta, responsável e ética de amar simultaneamente múltiplas pessoas, com ênfase na escolha consciente e comprometida de um tipo de relacionamento aberto ou não monogâmico, o que pela óptica monogâmica parece paradoxal. Para compreender esse novo paradigma relacional afetivo, é preciso desnudar noções de comprometimento, fidelidade e lealdade.

Nem todos os poliamoristas concordarão com a concepção de comprometimentos estáveis. Percebi isso ao participar de grupos fechados de poliamor no Brasil: identifiquei-me como pesquisadora e permaneci como observadora durante o desenvolvimento de minha tese de doutorado sobre o tema (2014 – 2017). De um modo geral, observei certo descompasso por aqueles que viam o poliamor como um relacionamento estável entre mais de duas pessoas e por outros que estavam à procura de sexo e de amor livre sem maiores compromissos.

Não se trata de crítica, mas da constatação de que o poliamor é uma nova forma de envolvimento em estágio de maturação e que não tem (e quiçá não terá) modelo pré-definido nem tipologia única: pode-se apresentar via relações eventuais e simultâneas entre mais de duas pessoas, namoros mais (ou menos) firmes e até uniões estáveis, mas sempre pautados pelo consentimento entre todos os envolvidos em assumir condutas não monogâmicas.

Na tese, optei por investigar o poliamor como união estável entre três ou mais pessoas, pois o viés da pesquisa foi jurídico e meu objetivo era demonstrar a possibilidade de seu reconhecimento como multiconjugalidade e estrutura familiar apta a merecer a proteção estatal, na medida em que dessas relações, além dos eventuais filhos, surgem também direitos e deveres ligados a patrimônio, previdência e sucessão, além de implicar na mudança dos laços de parentesco, apenas para citar alguns efeitos.

Assim, é preciso esclarecer que nem todas os adeptos do poliamor querem, devem ou podem se enquadrar nessa perspectiva.

A discussão que trago, portanto, é sobretudo sobre o poliamor em nosso Estado Democrático de Direito: enquanto estava apenas na seara da autonomia privada, nos blogs, sites, livros, artigos, filmes, documentários e no imaginário das pessoas, não havia ainda um incômodo para o universo jurídico. Mas no momento em que esse universo é provocado para se manifestar – e as escrituras públicas foram um primeiro passo nesse norte –, aí o Direito precisa entrar em cena.

Apesar de o Brasil ser um país que preza a liberdade, a pluralidade familiar e a ideia eudemonista de família identificada pelo envolvimento afetivo e a busca da felicidade de seus integrantes, no campo jurídico, as definições do poliamor ainda são ambíguas, confundindo-se muitas vezes com concepções do concubinato e da deslealdade. Há quem o defina como engodo e estelionato jurídico.

Não nos esqueçamos de que o poliamor, em sua essência, recusa conceitos de traição e adultério. E mais: de ciúme! O ciúme é algo a ser constantemente gerenciado entre eles, ao ponto de ter sido substituído pelo termo compersão – tradução livre da palavra compersion – cunhada pelos poliamoristas para descrever um sentimento que se aproximaria do seu antônimo. A compersão seria a alegria de alguém ao ver seu (sua) parceiro(a) envolvido e feliz com outrem, a superação do ciúme. Na teoria, é bastante libertador, mas, na prática, parece ser difícil para a maioria das pessoas…

O fato é que, seja como filosofia, conduta ou estilo de vida, o poliamor revela-se como prática de relacionamentos afetivos múltiplos não monogâmicos concomitantes, consenso e comprometimento entre os participantes, implicando em responsabilidades e valores integrantes de uma ética própria que desafia algo tão enraizado em nossa sociedade: a monogamia.

A monogamia: esse tabu

O poliamor conflita, essencialmente, com a monogamia. O relacionamento monogâmico baseia-se na premissa de que o casal – formado por duas pessoas – deve manter exclusividade relacional entre si, sendo inaceitáveis, portanto, envolvimentos extraconjugais que extrapolam essa díade. A exigência de exclusividade parece ser sobretudo sexual: o monopólio da sexualidade entre o casal emerge como elemento caracterizador da monogamia.

O sexo com outra pessoa além da relação de namoro, união ou casamento parece ser a principal violação ao dogma monogâmico. Não significa dizer que a transgressão à monogamia limitar-se-ia à questão sexual, até porque a concepção de monogamia não se encerra em termos puramente lógicos e envolve construções mais complexas permeadas por outros valores. Mas o arquétipo relevante de ofensa ao postulado monogâmico é a infidelidade, cujo significado está bastante atrelado ao contato sexual além da conjugalidade a dois.



Os clichês mais fortes que assomam da infidelidade – na percepção inicial das pessoas, filmes, músicas e televisão – são de alguém tomando conhecimento ou flagrando condutas sexuais de seus parceiros com outrem. Assim, a infidelidade é colocada constantemente como o oposto da monogamia, criando-se a dicotomia traição/monogamia.

No Direito brasileiro, a quebra do princípio monogâmico conjugal pela infidelidade era crime de adultério até 2005, quando o artigo 240 do Código Penal foi revogado. Essa criminalização denotava a intervenção repressora do Estado na vida privada das pessoas, a persistência de normas de cariz conservador e patriarcal, mesmo após intensas transformações sociais que mudaram a feição dos relacionamentos conjugais e familiares.

O adultério sempre foi posto de forma mais grave para as mulheres, fortalecendo comportamentos sexistas e discriminatórios em razão do sexo/gênero. Ao contrário, a naturalização e a tolerância da traição masculina sempre estiveram presentes em nossa sociedade, inclusive com embasamentos jurídicos que refletiam isso.

Mesmo com a saída do adultério do cenário criminal, a monogamia transparece como categoria e princípio estruturante das relações de conjugalidade, tanto que ainda existe o crime de bigamia no artigo 235 do Código Penal, refletindo uma consequência da infidelidade.

A monogamia foi construída social e normativamente sob preceitos de fidelidade recíproca, lealdade, respeito e consideração mútuos impostos como deveres pela legislação civilista. Parte-se do pressuposto de que a ruptura da monogamia consiste na infração a tais premissas e configura a traição ao cônjuge/companheiro(a), sendo justamente nesses aspectos que o poliamor pauta-se por outro ponto de vista.

No livro A cama na varanda, Regina Navarro Lins discorre sobre o fato de a fidelidade não ser algo natural, e que, apesar de nosso tabu cultural contra a infidelidade, as relações extraconjugais são muito comuns. Mesmo com os ensinamentos que recebemos – família, escola, amigos, religião – e que nos estimulam a investir nossa energia sexual em uma só pessoa, na prática, a coisa não funciona exatamente assim.

O poliamor nos faz refletir sobre monogamia, relacionamento, fidelidade, traição.

Ora, princípios éticos como boa-fé, integridade e comprometimento recíproco são válidos e esperados sejam as relações monogâmicas ou não. Mesmo contrariando a regra hegemônica da monogamia que dita a exclusividade afetivo-sexual, a escolha pelo poliamor não avilta a lealdade e a fidelidade, se houver consenso entre as partes, se a expectativa de confiança e a própria confiança não forem maculadas.

Franqueza, honestidade, integridade, igualdade, compromisso e acordos mútuos são inatos ao poliamor. Não significa afirmar – ressalte-se, para não levar a interpretações equivocadas – que o poliamor soa melhor ou pior que a monogamia, que um deva prevalecer sobre o outro, que as relações conjugais monogâmicas também não tenham esses valores como esteio ou, ainda, que nos arranjos poliafetivos sempre haja o respeito a tais parâmetros.

O poliamor é apenas uma forma de relacionamento diferente da monogamia, através do qual os poliamoristas envolvem-se em relações afetivas múltiplas, consensuais e concomitantes.

Além do poliamor, há envolvimentos sem exclusividade afetivo-sexual que transgridem o padrão monogâmico ocidental e são desviantes desse modelo cultural, social e normativo, podendo ser reunidos em um tipo de umbrella concept que cabe na expressão não monogamias.

Como visto, a bigamia e a poligamia estão no âmbito das não monogamias, mas associadas à traição, adultério, má-fé e assimetrias de gênero. Já o poliamor é espécie das não monogamias que desafia a ordem monogâmica, mas com o consentimento e a possibilidade dos envolvidos terem outras parcerias amorosas. Eis o seu diferencial.

As não monogamias consensuais manifestam-se por mais de um modelo de relações íntimas que não exigem o monopólio-fidelidade dos partícipes, como os relacionamentos abertos, o swing e a BDSM (bondage, disciplina, sadismo e masoquismo). O poliamor é a única conduta contrária à monogamia. Embora não se confundam, principalmente pelo viés mais sexual e menos comprometido daqueles, possuem em comum o consenso. O consenso, assim, é axioma fundamental do poliamor.

Não é de hoje que a monogamia é contestada. Madame Bovary, Ana Karenina, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dona Flor e seus dois maridos e A vida como ela é a colocaram em xeque, mas o fator consentimento não estava presente como agora: a tônica era traição, ciúme e adultério. Por outro lado, a série vanguardista Armação ilimitada exibia, na TV aberta dos anos 1980, enredo cujos personagens viviam uma relação não monogâmica consensual – ou seja, nada menos que o poliamor – e ainda tinha como ingrediente uma criança adotada! A aceitação do público foi surpreendentemente positiva!

Ficamos mais caretas?

Em 2000, o filme Eu, tu, eles retratou a história verídica de uma mulher e seus três maridos e filhos em pleno nordeste brasileiro, formando uma estrutura familiar (minoritária) divergente do protótipo monogâmico brasileiro. Em 2012, a novela da Globo Avenida Brasil exibiu o relacionamento entre três mulheres e um homem que casaram no capítulo final, registrando a maior audiência do ano, com ampla aceitação do público. Na novela, também havia uma relação afetiva entre uma mulher e dois homens, que igualmente ficaram juntos no último capítulo, mas a aceitação do público não foi a mesma, o que nos faz refletir sobre a persistência do machismo.

A GNT exibiu o documentário Amores livres, trazendo diferentes relacionamentos não monogâmicos e focando sexualidades queer, mas o impacto não se compara às tramas novelescas, seja pela dimensão menor do público atingido ou por revelar relacionamentos não convencionais verídicos – destoantes da monogamia – que ainda sofrem rejeição e preconceito sociocultural.

Nas redes sociais, há incontáveis comunidades dedicadas às não monogamias consentidas, além de aplicativos para relacionamentos não monogâmicos, como o Pitanga Club. Também há movimentos ativistas – Rede Relações Livres (RLi) Brasil que declaram abertamente o combate ao tabu da monogamia.

Assim, as tipologias não monogâmicas trazem a lume a diversidade relacional e provocam reflexões sobre sexualidade e relacionamento, no contexto pluralista de ampliação de espaços e reivindicações do exercício dessa diversidade. É preciso repensar a monogamia, não só enquanto escolha, mas como única forma de legitimação de relacionamentos no meio social e jurídico.

Impacto na sociedade

Não há mais lugar, nas sociedades pós-modernas democráticas e inclusivas, para que concepções singulares sigam hegemônicas, pois a multiplicidade – de relacionamentos, vínculos afetivos, gêneros, arranjos familiares, parentalidades – clama por aceitação e passa a ter visibilidade compatível com a velocidade dos compartilhamentos instantâneos da era da informação cibernética.

A multiplicidade, a diversidade e a complexidade são tons da contemporaneidade. No século XXI, essa multiplicidade, que na verdade é uma profusão de heterogeneidades, desvela-se ainda maior que no século XX, quando teriam se iniciado o que Foucault denominou de heterogeneidades sexuais.

Mais que heterogeneidades sexuais, vivencia-se uma era multiplicadora de heterogeneidades relacionais e identitárias, traduzidas pela legitimação jurídica de uniões homoafetivas, o desenvolvimento de técnicas de reprodução assistida e meios artificiais de reprodução humana que repercutem na constituição de novos arranjos familiares, a pulverização de demandas relacionadas a gênero/transexualidade, o reconhecimento de um terceiro gênero além do feminino e masculino, por exemplo.

As circunstâncias parecem refletir algo que vem dando sustentação a uma visão de mundo lastreada pelo amor, perspectiva de Luc Ferry em A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. O fortalecimento da lógica do sentimento e da afetividade robustecem o nascimento de novas representações e faces do humanismo, e a lógica do amor, por mais intrincada que seja, transborda progressivamente do espaço privado para o público, revelando a desconstrução de valores tradicionais como um dos traços característicos desse tempo presente.

A busca pela aceitação e o reconhecimento sociojurídico de identidades e arranjos relacionais diversificados espelha esse ponto de vista. Nessa seara, ao tempo em que há a desconstrução de certos valores e autoridades, há também a eclosão de outros, ou a refundação dos mesmos, e as reações negativas dos mais apegados aos conservadorismos. As reflexões sobre as relações afetivas múltiplas consensuais, que não se norteiam pela monogamia convencional, estão imersas nessa conjuntura. O debate sobre a possibilidade do reconhecimento jurídico do poliamor como multiconjugalidade e estrutura familiar também.

A conformação das multiconjugalidades poliamorosas como estruturas familiares pressupõe – tal qual as demais entidades familiares – a comunhão e o compartilhamento de vidas, o entrelaçamento de laços afetivos e/ou também sanguíneos, os propósitos de união visando à realização pessoal, à busca da felicidade, ao companheirismo, à mútua assistência, ao suporte emocional e ao desenvolvimento de um núcleo existencial.

A substância da família identifica-se com relações de afeto, convivência, responsabilidade e solidariedade, premissas que não são exclusivas de um só tipo de família. A estrutura familiar não pode ser limitada por formulações abstratas normativas que elegem determinados modelos como padrões.

Independentemente das formas que adquiram, monogâmicas ou poligâmicas, os relacionamentos e as famílias se estabelecem como estruturações psíquicas e afetivas dos sujeitos que a integram.

Entidades familiares surgem a partir de conjugalidades e/ou de parentalidades: as famílias conjugais e/ou parentais são espécies que podem assumir variadas feições e vínculos. A pluralidade de vínculos afetivos pode emergir tanto das famílias conjugais (multiplicidade relacional/conjugal) como das parentais (multiplicidade parental).

Nessa última hipótese, o Direito avança a passos largos tutelando multiplicidades de elos, desde que passou a reconhecer as famílias denominadas de recompostas, reconstituídas, redimensionadas ou mosaico, formados por laços familiares diversos, até chancelar a multiparentalidade que autoriza o filho ser registrado por mais de dois pais e/ou duas mães.

Porém, persiste a resistência à aceitação da multiplicidade relacional/conjugal, pois a monogamia, os moralismos e preconceitos são empecilhos evidentes. A proibição do CNJ é reflexo disso.

Não nos esqueçamos de que construções plurais de amor e conjugalidade acontecem num contexto contemporâneo de incertezas e fluidez, dos amores líquidos de Bauman, mas também do fortalecimento e da permanência de valores familiaristas, ainda que com outra roupagem que não a tradicional.

Diante disso, de que maneiras a sociedade e o Direito devem lidar com as relações afetivas múltiplas consensuais como o poliamor? Como sustentar, no âmago de realidades em constante movimento, que relacionamentos e conjugalidades são apenas as decorrentes do casamento e das uniões monogâmicas hetero e homoafetivas?

A abordagem do poliamor como multiconjugalidade apta a caracterizar uma estrutura familiar emerge no cenário em que imposições de modelos exclusivos das relações humanas já não cabem na complexidade de uma sociedade plural e heterogênea, nem na pretensão de prever, normativa e taxativamente, estruturas familiares em todos os seus formatos.

As relações humanas e suas estruturas afetivas e familiares são como caleidoscópios de transformações que adquirem nuances diversificadas. Aguardemos, pois, as cenas dos próximos capítulos quanto aos destinos do poliamor

Duina Porto
, advogada, professora da UFPB e pesquisadora, autora da tese O reconhecimento jurídico do poliamor como multiconjugalidade consensual e estrutura familiar.
Luísa Vasconcelos, estudante de Design e ilustradora.

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