Curtas

O reencontro de Nick Cave com São Paulo

Em outubro, o músico australiano retorna pela primeira vez à cidade onde morou nos anos 90 em show com sua banda, The Bad Seeds

TEXTO MANU FALCÃO

01 de Outubro de 2018

Cave, hoje com 61 anos, viveu no Brasil no início da década de 1990

Cave, hoje com 61 anos, viveu no Brasil no início da década de 1990

Foto Amelia Troubridge/Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 214 | outubro de 2018]

Nick Cave
retorna ao Brasil. Não somente Nick Cave com a sua banda, The bad seeds – mas Nick Cave, que já residiu na Vila Mariana, em São Paulo, e gostava de tomar cervejas Antarctica nos botecos do caminho entre sua casa e a Galeria do Rock. Nick Cave, o músico australiano que viera brevemente ao país em 1989 para se apresentar e acabou prolongando sua estada por quatro anos, após conhecer a garota Viviane Carneiro, com quem casou e teve um filho, Luke.

Muito aconteceu desde então. São Paulo já não é mais a mesma, tampouco o artista. É possível que, quase 30 anos depois e com um reconhecimento maior do que o que tinha na época em que viveu por aqui, muitos sequer suspeitam de suas vivências paulistanas  e de como elas reverberaram em alguns de seus trabalhos mais aclamados.

Tudo começou quando Nick e sua banda foram entrevistados por jornalistas da Bizz, extinta revista de música de grande destaque nos anos 1980, publicada pela Abril. Viviane, na época, trabalhava na editora e estava acompanhando os colegas; não demorou para que todos saíssem juntos pelos redutos undergrounds de São Paulo, como a boate Espaço Retrô, e também para que Nick e Viviane engatassem um namoro pelos anos que seguiram. Em 1991, Viviane engravidou de Luke, enquanto Nick passava por um processo de desintoxicação de heroína; a vinda ao Brasil – onde a droga era pouco comum – pareceu-lhes propícia para um recomeço. Casaram-se, e aqui ficaram até 1993.

Em São Paulo, Nick era recluso. Quando saía de casa, era para os passeios habituais e solitários às lojas de LPs, onde interagia pouco devido às dificuldades com o português. Era conhecido na região como “Chitãozinho”, em referência ao cabelo arrumado em um mullet. O apelido, aliás, gerou o boato de que o músico tenha ido atrás das canções de Chitãozinho e Xororó, que tinham a hegemonia nas rádios da época. E como tinha o costume de fazer releituras de músicas folk, foi assim que supostamente teve a ideia de compor Black hair, faixa do The boatman’s call (1997): após escutar Fio de cabelo da dupla sertaneja.

Às vezes, Nick e Viviane assistiam aos cultos evangélicos, sobretudo para escutarem os hinos gospels. Tanto que, no seu disco The good son (1990), gravado no Cardan Studios, em São Paulo, a faixa de abertura Foi na cruz é uma releitura de um canto de louvor de mesmo nome, composta por Luiz de Carvalho. Para os não lusófonos, talvez não haja diferença: é o mesmo Nick Cave de tom soturno, cuja solenidade, beirando ao sublime, parece aproximá-lo de uma sensibilidade religiosa.

No mais, Nick escrevia e cuidava de Luke, desvendando os caminhos da paternidade de primeira viagem. Entre as ocasionais idas ao Espaço Retrô, à Galeria do Rock e as paradas nos bares da região, conheceu personagens da vida noturna paulistana – travestis, prostitutas, barflies. Suas passagens ficaram registradas no clipe de Do you love me?, lançado em 1994, no qual aparece cantando em uma casa noturna com algumas dessas pessoas – cujos nomes ficaram registrados no vídeo –, tecendo um retrato dos costumes de uma São Paulo marginalizada. Os Bad Seeds também aparecem no vídeo. Na época, o grupo era constituído por Blixa Bargeld, Mick Harvey – ambos trabalhavam com Cave desde os tempos de sua primeira banda, The Birthday Party – Martyn P. Casey, Thomas Wydler e Conway Savage, falecido em setembro deste ano.

É pouco sabido o que mais Nick fez enquanto esteve no Brasil. Um dos causos que foi confirmado recentemente pelo jornalista e DJ Renato L é o de que o cantor esteve em um show do Olodum, em Olinda. Não apenas isso, como também esbarrara com Chico Science na plateia – o pioneiro do movimento manguebeat teria dado a ele uma cassete de Caranguejos com Cérebro, coletânea nunca lançada em conjunto com Lamento Negro, Vinícius Enter e músicos da Loustal. Anos depois, uma amiga de Renato encontrou a fita no apartamento de Viviane, de quem era amiga.

Aos que acompanham e gostam do trabalho de Cave, essas histórias diluem as lonjuras entre os afetos que nos são táteis e aqueles que concebemos de forma mais remota, à distância: é possível que o pós-punk dialogue com o manguebeat, e é possível que nossas ruas calorosas e caóticas – nas quais Nick sofrera alguns assaltos, como contou em entrevista à Hypno Mag – inspirem as narrativas densas e pianos fantasmagóricos do I let love in (1994).

Tudo isso para dizer que, em 2018, Nick e Viviane já não são mais um casal, Luke Cave tem 27 anos e Nick ainda não revisitara sua antiga morada – nem mesmo com os Bad Seeds. Não se sabe ao certo por quê; há sempre uma ambiguidade na maneira com que o músico olha para os seus dias aqui, descrevendo o país como um lugar “assustador, ainda que seja um escape de tudo que não tolero no mundo moderno”.

Sua volta foi anunciada pelo festival Popload, que ano passado trouxe PJ Harvey – com quem Nick namorou brevemente –, e esse ano traz Blondie como um dos headliners. O show é uma oportunidade de reencontro com um Nick Cave maduro, em seus 60 anos. Um Nick Cave que casou novamente, teve mais filhos e também perdeu um deles, Arthur, em um trágico acidente em 2015. Seu último disco, Skeleton tree (2016) – que deve configurar no setlist do show – reflete o enlutamento como um processo de encontrar conforto na dor, estando exatamente onde o músico aparenta, enfim, ter encontrado um lar: em Brighton, com a esposa Susie Bick e o gêmeo de Arthur, Earl.

Nick Cave and the bad seeds apresenta-se à parte do festival; quem abre a noite é o grupo de dream pop americano Cigarettes after Sex. O evento acontece no Espaço das Américas, em São Paulo, às 20h, no dia 14 de outubro. Os ingressos podem ser comprados pelo site Ticketload

MANU FALCÃO é estudante de Jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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