***
Albano Nuno Varela fora trazido numa canoa, desembarcado no cais do trapiche, jogado à terra como volume duma mercadoria qualquer, o corpo moído da travessia realizada em condições precárias, num navio que parecia somente balançar em vez de navegar, despojado do muito que era seu, o vigor, as intenções, a esperança, tudo vomitado, ora pois, nas águas do oceano.
Cegava-o, aquela inesperada claridade tropical, revolviam-lhe o estômago aqueles odores nauseantes, agressivos, de óleos e gorduras carregados, penetrantes, enjoativos. No corpo, desfalcado de alguns quilos, a roupa colava, inundada de suor. Faltava-lhe a respiração, o alento. Doía-lhe o desamparo, intranquilizava-o o inaugural encontro com a solidão.
Teria ficado ali, entregue à fatalidade, se um dos companheiros não o tivesse pegado pelo braço, o amparasse, conduzindo-o a uma hospedaria próxima. Era o atilado da turma que em camaradagem se formara durante a travessia, o informante, o orientador: viajava pela terceira ou quarta vez, do velho ao novo continente e deste àquele.
Na hospedaria, desorientado, Albano Nuno Varela se refazia inconscientemente, sob o olhar suspeitoso do hospedeiro, que ao certo não sabia se dele receberia pagamento. Seu benfeitor havia desaparecido, Albano Nuno Varela não lhe guardara o nome e, no estado em que se encontrava, seria incapaz até de reconhecê-lo. Tampouco, pensava, seria reconhecido por ele. À chegada, todos se dispersaram. Dali em diante, cada um por si, lei natural, inerente à sobrevivência.
Somente no terceiro dia da chegada, dinheiro acabado, o hospedeiro a ameaçá-lo com a polícia, Albano Nuno Varela conseguiu lugar num armazém de secos e molhados, ali mesmo, no bairro portuário. Era dum português casca-grossa, novo ainda, o Manuel, que não lhe marcara ordenado nem lhe designara serviço específico. Albano Nuno Varela fazia de tudo e quase nada recebia de ganho, salvo a comida e um lugar para dormir, o que, nas circunstâncias presentes, já era muito.
Contudo, fora difícil a adaptação ao mundo novo que se lhe oferecia. Esquecido dos projetos açodados pelo interesse, a ambição de enriquecer facilmente, permanecia horas e horas à janelinha de guilhotina, do sótão onde se alojara, refazendo o caminho da chegada, ansioso para repeti-lo de volta. Mas as ondas do mar a quebrar com violência contra os arrecifes, os fortes do Buraco e do Brum fechando a passagem da Barra Grande, por onde chegara à Barra Pequena, esta com mais um forte a guarnecê-la, o do Picão, impediam-lhe qualquer projeto de esperança, imprimiam-lhe compressivo sentimento de impotência.
Igual ao que sentira anos atrás, ao voltar da eira e dar com a mãe sentada num tamborete, em trágica mudez, diante do corpo do pai estirado na cama grande, vestido ainda com a roupa da labuta, mas descalço, um lenço cobrindo-lhe o rosto por causa dos moscardos, ou nem por isso: talvez a morte ali necessitasse doutros resguardos. Ao retirarem-no para o ataúde, permaneceram por algum tempo duas cavas redondas, impressas pelos seus duros calcanhares na palha do colchão. Dois sulcos que, como se em ferro abrasado fossem, marcaram-no para sempre, aprisionando-o à destinação de um dono que nem por estar ausente deixava de dominá-lo, reprimir-lhe a vontade, castigá-lo. E a rematar-lhe as penas, de lá como de cá, havia, ainda, ao alcance de sua visão, uma cruz de pedra elevada sobre o istmo que seguia até Olinda. Nem portentosa nem poética: crua, muda, enegrecida. E cruel.
Segundo lhe haviam informado, Olinda continuava a ser a capital da província, embora o Recife já a ultrapassasse em número de habitantes, movimento comercial e tudo o mais, tendo avançado da ilha onde se originara até às outras vizinhas e alcançado o continente, dando mostra de que pretendia dilatar-se, enquanto Olinda minguava em seu ressentido orgulho, nostálgica dos antigos faustos, os mesmos que tinham despertado a cobiça dos holandeses, há quase dois séculos. Incendiando Olinda e instalando-se no Recife, que, nesse tempo, não passava de pequena aldeia de pescadores, os holandeses o valorizaram e o tornaram mais importante que Olinda, assim a derrotando duas vezes.
Por mais que lhe contassem fatos da história local, que o esclarecessem sobre costumes aos quais não estava habituado, Albano Nuno Varela não conseguia entender satisfatoriamente aquela nação de brancos, negros, índios e mulatos. De negros que se diziam escravos e brancos que se proclamavam livres mas que não gozavam, estes como aqueles, de plena liberdade, havendo sempre uma entidade maior que os governava a todos, um poder supremo que, vindo do rei, dos governadores, dos senhores de engenho, dos altos comerciantes, dos potentados, enfim, unifica-se, tornando-se um só, impalpável, invisível mas invencível.
A princípio, Albano Nuno Varela julgara que ia encontrar portugueses como os da Terra, mas aqui os próprios portugueses se dividiam, alguns bandeados com os nativos que deveriam igualmente ser portugueses, mas que como tal não se consideravam. Enquanto que o rei, que deveria sê-lo tanto de lá como de cá, era-o somente de lá, segundo proclamavam, descontentes, os de cá. Daí a insatisfação geral, o clima de guerra em que se vivia, a insegurança dos reinóis, de consequências penosas a recair sobre os menos afortunados ou privilegiados, como ele, pejorativamente chamados de marinheiros. Marinheiro-pé-de-chumbo, galego, cotruco, cupê, mascate, mondrongo, talaveiro, parrudo, e tudo que de depreciativo pudessem encontrar para insultá-los.
O bairro portuário era o mais densamente povoado, com sobrados de quatro, cinco e não raro seis andares, que abrigavam no térreo grandes casas comerciais, armazéns fornecedores de açúcar, algodão, madeira e outros produtos da terra destinados ã exportação. Assim como pequenas indústrias de fios, cordas, artefatos de couro, móveis e utensílios, vasilhames de cobre, instrumentos de ferro, colchoarias, teares. Em certos aspectos, lembrava Lisboa, que ele não chegara a conhecer a fundo. Em Lisboa, foi só chegar, tomar o navio e vir desiludir-se. Pelas esquinas e ruelas que lhe lembravam sempre quelhas imundas que ele vira de passagem por Lisboa, aglomeravam-se tanoeiros, marceneiros, entalhadores, relojoeiros, sapateiros que, em seus ofícios, eram geralmente orientados por indivíduos que os exerceram anteriormente e que, tendo através deles obtido algum rendimento, os transferiam para a execução dos escravos. Para os brancos, na maioria portuguesa, e para os brasileiros que lhes imitavam os costumes, era vergonhoso executar trabalhos manuais, artesanais, peculiares às classes baixas, senão aos escravos. No mercado e no pátio da igreja, vendiam-se frutas, raízes e cascas de pau. Negras quase nuas preparavam comedorias, carnes e peixes em molhos de cores vivas, a mexer com colheres de pau os panelões reluzentes de gordura e de fuligem, que lhes lançavam ao rosto o vapor que se lhes misturava ao suor, nem por isso impedindo-as de fumar o cachimbo que quase todas acomodavam, pachorrentas, na boca de lábios grossos, repuxados com desdém.
Negros recém-chegados d’África, uns na força da idade, machos e fêmeas, crianças e até velhos, agrupavam-se em frente aos armazéns, à espera de compradores. Encurralados, submissos, sem aparentar nenhuma vontade consciente de fuga ou de revolta, tal o estado em que se encontravam, espalhavam-se, desligados de afeição ou afinidade uns com os outros. Deitados, acocorados, ausentes, só as crianças brincavam, despreocupadas, livres em sua inocência. Vestiam-se sumariamente, os homens cobertos por uma tanga, as mulheres de peitos à mostra, algumas delas ocupando-os na amamentação dos filhos. Vários traziam na pele marcas de doença, pústulas ou cascas de bolhas mal saradas, ressequidas, que eles coçavam, ferindo-se. Nos riscos cinzentos deixados pelas unhas passavam o dedo molhado de saliva, talvez procurando apagá-los, como se aquilo fosse a única mácula a desonrá-los.
Do magote exposto, de vez em quando aproximavam-se outros negros — estes cativos mas acomodados, já propriedade de algum senhor — à procura de entendimento, notícias do mundo deles, quem sabe por solidariedade. Davam-lhes frutas, doces, roletes de cana, puxavam conversa em dialetos, para ver se descobriam donde tinham vindo. Os escravos à venda recebiam os mimos e os mastigavam sem dar mostra de estarem prazerosos ou agradecidos.
Muitos havia prodigiosos, de músculos notáveis em sua carnadura, cujo suor devia ser preto como a pele que os exsudava. O cheiro deles, muito ativo, deixava em Albano uma dúvida. Seria do seu corpo aquele odor, ou do humor de suas chagas, ou da imundície em que se encontravam, ou era aquela a fragrância própria da escravidão? Albano Nuno Varela apressava-se em se afastar dali, porquanto lhe parecia vislumbrar nos olhares de algumas negrinhas adolescentes o desejo humilde e terno de serem compradas por ele.
Até então, por certo, Albano não as desejava nem mesmo para deleite do corpo, prática em que as iniciavam senhores inescrupulosos, em conluio com os demais empregados de suas casas e até com outros escravos, incentivando-os abertamente, com vistas à prosperidade de seus plantéis. As negrinhas, logo parindo, aumentavam-lhes o cabedal. Relativamente apenas ao prazer, isso desses senhores inda era pouco, se comparado à atividade de certos comerciantes que costumavam servir-se de jovens impúberes, trazidos da Terra para caixeiros e amantes, jovens imberbes que, muita vez puros, muita vez inocentes, a tudo se submetiam, por timidez e necessidade.
A propósito, Albano Nuno Varela verificava que se amava em demasia no novo mundo. Nas esquinas, nas areias do trapiche, à sombra morna de sensualidade pegajenta das jaqueiras, às bermas das estradas, nos porões, nos sótãos dos sobrados coloniais, às margens do rio, no massapé enlameado, voluptuoso atrativo do excitamento ao sexo, com seu rumor lembrado de lascívia. Havia como uma premente inadiável deliberação em povoá-lo, sem que para isso o bem-estar ou os interesses de todos fossem consultados, tivessem algum sentido útil. Isso era o que se via nas classes menos importantes, publicamente, as mulheres pobres abrindo as pernas à procriação desenfreada. Se bem que as senhoras da classe alta, nunca vistas senão em cerimônias religiosas ou a caminho de reuniões fechadas, também elas fechadas em liteiras portadas por escravos, assim como em carruagens tiradas por cavalos de escol, fossem protagonistas, segundo se comentava, de romances secretos em cantos de jardim, caramanchões floridos, em parceria com primos estudantes de Coimbra, jovens bacharéis recém-vindos da corte — os dedos fidalgos ainda livres da marca do anel de pedra de rubi — e até com robustos escravos, a quem caprichosamente seduziam e em seguida faziam-nos sacrificar.
Persuadido de desejos, a Albano Nuno Varela as vibrações sonoras provocadas pela viração marítima não eram nada mais que ofegos de cansaço no ato do amor; o bafio instável da maresia, glutâmico, não mais que o do cio, de instigante lubricidade. Sabia-se entretanto despreparado à submissão daquela orgia de luxúria, portanto se retraía em caminhadas solitárias, uma mágoa antiga a sufocá-lo, a reprimir-lhe a vontade: arrependia-se de ter vindo. Se era pra viver debaixo da mesma contenção, da pobreza inata, não devia ter saído de sua terra. Lá pelo menos contava com a mãe, estava mais perto da lembrança do pai.
Furtava ao patrão as horas de lazer, com o intuito de encontrar melhor ocupação, talvez um emprego mais promissor. Deixava o bairro portuário, aventurava-se mais longe. Uma ponte dava acesso à Ilha de Santo Antônio, que prosperava, com a igreja frontal, ruas novas, edifícios em construção, o erário público situado no que restava de um dos palácios construídos por Maurício de Nassau, a cadeia, casas de espetáculos. Mais além havia outra ponte, esta ligando Santo Antônio ao Bairro da Boa Vista, que se formava sobre mangues aterrados. Restaurada, com bancos para sentar enfileirados no passeio, a Ponte da Boa Vista atraía senhores bem situados no comércio, cachopas e gamenhos. Em constante movimento, entendendo-se como cachopas as mulatinhas livres, vestidas com elegância, prazenteiramente oferecidas.
Na Ponte da Boa Vista, Albano tivera sua primeira oportunidade amorosa, na pessoa duma dessas mocinhas, uma de pele quase branca, que o abordara delicadamente com o bico dos seus sapatinhos brancos de cetim, seu olhar langoroso a sobressair-se debaixo da capa negra que lhe protegia a cabeça. Albano logo deduziu: mulher de vida alegre que, pelos atavios mais ou menos luxuosos, deve cobrar bem caro. E pôs-se em retirada, sob o espanto irônico da mestiça. Dias depois, um patrício de meia-idade, que fazia compras no armazém em que Albano trabalhava, mostrou-se-lhe simpático, ao saber que ele provinha da mesma região de Portugal donde também viera. Por conta disso, convidou-o a visitá-lo em sua quinta, perto de Olinda. Num domingo ensolarado, mandou dois escravos apanhá-lo no armazém. Com a permissão excepcional do Sô Manuel, Albano seguiu-os, apagado, neutro, sumido entre seus poderosos músculos. Navegaram de canoa, margeando o istmo, subindo o Rio Beberibe que, àquela altura, já tinha suas águas tomadas pelo mar, as margens bordadas de manguezais. Ao passarem perto da cruz de pedra, a mesma que Albano avistava da janela do sótão, os negros largaram os remos a fim de se benzerem. Era a Cruz do Patrão, disseram-lhe, muitos de sua raça estavam enterrados por ali, junto com criminosos, por isso o local era mal-assombrado. À noite povoava-se de duendes, almas do outro mundo, zumbis. Ouviam-se gemidos pavorosos, gritos e arrastar de correntes.
Para além dos manguezais, brotavam árvores frondosas, clareiras donde surgiam casebres e uma ou outra residência de aspecto senhorial. Olinda postava-se à direita, era a capital da província, quase que simbolicamente. Permanecia como sede do bispado e seis meses por ano hospedava o governador. Tinham-lhe dito isso, não lembrava quem. Albano pediu confirmação aos negros que, sob a compulsão dos remos, apenas riram. Nada tinham compreendido, haviam tomado a pergunta por uma pilhéria, pilhéria de branco.
Logo mais a canoa peitava a praia, a quilha pontuda enterrando-se na areia. Os dois escravos carregaram Albano nos braços, depuseram-no em terra firme. O patrício o esperava, em ceroulas, camisa de algodão aberta ao peito, donde despontava um emaranhado de cabelos negros, alguns já embranquecidos. Festejou-o, conduziu-o à casa, um chalé de ar simpático, batido por ventos salinosos. Duas redes já se encontravam armadas no alpendre, além de outra cujos punhos se amarravam em coqueiros.
Uma negra risonha, de quadris redondos, em longa saia estampada, casaco de meias-mangas, um pano branco na cabeça, braços roliços repletos de pulseiras e berloques, apareceu com a bandeja composta de licores, vinho, queijo e guloseimas várias, tudo do reino, do de além-mar, conforme se apressara a esclarecer o patrício, acrescentando, com referência à matrona:
— É minha esposa —, seguindo-se à revelação uma piscadela marota, percebida pela mulher, que fez questão de emendar, ao mesmo tempo em que se lhe afastava do rosto o riso festeiro de há pouco:
— Mas não sou escrava não, não sou escrava, fique sabendo, meu senhor.
O português riu a gosto, batendo-lhe nos quadris:
— Mas que tal despropósito disseste, meu tesouro? Na verdade, eu é que sou teu escravo. Não é pra ti que trabalho?
Depois do almoço foi que a outra apareceu. A outra era a mestiça que topara Albano no passeio da Ponte da Boa Vista. Aqui mais bela, porque mais simplesmente vestida, e mais discreta, porque em casa. Na casa dos seus pais. Era filha do português com a negra dos quadris redondos. Albano, por outro lado, não sabia dizer se estava sendo reconhecido. A moça inundada em água-de-cheiro, não dava mostra disso. O patrício, que já se havia livrado do casaco e arrastado para a rede a suposta esposa, fez um gesto para que Albano se afastasse com a filha. Albano nada disse, mas demonstrou, numa expressão de surpresa, o embaraçoso da situação. O patrício largou uma gargalhada comprida, sem peias e, quando pôde, cochichou:
— Oras, são negras.
Albano ficou assistindo em casa do português. Sempre que tinha oportunidade ia ao chalé passar o dia e lá ficava com a filha dele, aprendendo as novidades da terra. E a mulatinha, nesse ínterim, deixou de frequentar o passeio da Ponte da Boa Vista. Certamente se resguardava para Albano.
Entretanto, uma vez o patrício apareceu no armazém de modo inesperado, demonstrando certa preocupação. Fora somente pedir a Albano que não mais o visitasse. Havia uma pessoa de posição interessada em sua filha. Assunto sério, negócio pra casamento. Homem de posse, ele dizia, um figurão.
— E ela quer? — perguntou Albano, ingenuamente.
O português bateu-lhe na barriga, então divertido e auspicioso:
— E tem escolha, catano? Ela vai ser uma senhora branca.
Desde 2016, a Cepe Editora tem reeditado obras de
Gilvan Lemos. Imagens: Reprodução
GILVAN LEMOS nasceu em 1928, em São Bento do Una, agreste pernambucano. Noturno sem música, seu primeiro romance, foi escrito em 1951 e publicado em 1956. Vencedor de vários prêmios regionais e nacionais, publicou romances, livros de contos e novelas. O escritor pertencia à Academia Pernambucana de Letras e faleceu em agosto de 2015.