Uma das características da banda é a força da performance no palco. Foto: Divulgação
CONTINENTE Me fala mais dessa experiência e amizade com Naná Vasconcelos… Como foi para vocês já no primeiro álbum tê-lo como produtor musical?
LIRINHA Em 1999, quando o grupo fez a transição do espetáculo para show e batizou o nome da banda como Cordel do Fogo Encantado, que era o nome do espetáculo, fizemos uma apresentação que define tudo isso; essa opção por um caminho de banda, de show, que foi a do Rec-Beat, em 1999, no Carnaval, na Rua da Moeda. Naná Vasconcelos assistiu a esse show e fez uns comentários sobre a presença da percussão no nosso trabalho, sobre o protagonismo que ela assumia na nossa mensagem e que ele tinha gostado muito. Aí, começamos a pensar nele para produzir o nosso primeiro disco. Mas o disco saiu em 2001, então, desde esse primeiro momento, de 1999 a 2001, aprofundamos essa ligação com ele. Fizemos uma turnê proposta por ele, inclusive, para que nos conhecêssemos melhor e viajamos por algumas cidades do país com um show conjunto. Ele fazia a primeira parte sozinho e apresentava a banda. Foi definidora nas escolhas por uma música inventiva, essa presença de Naná.
CONTINENTE Em Lira (2011), seu primeiro álbum solo, você traz muitas canções de amor, mas com um tom mais melancólico. É um disco mais autobiográfico?
LIRINHA O Lira tem muitos desafios. Fiz um disco de canções e me desafiei na interpretação, que é muito diferente da que faço no Cordel. A estrutura musical também é muito diferente. A ampliação dos recursos harmônicos era um objetivo. É uma poesia mais pessoal, por se tratar de um trabalho solo, mas é um disco que eu gosto muito, em que trabalhei com grandes afetos, como por exemplo, Angela Ro Ro, que era e continua sendo um mito para mim. Na madrugada e nas boemias de Arcoverde, escutava muito ela. Nunca imaginei que faria uma música e ela cantaria. Então, foi um disco muito isso. Também sou muito fã de Neílton (Carvalho), da Devotos. Bactéria (da Mundo Livro SA) fez os trabalhos de baixo e de teclado, e Pupillo (da Nação Zumbi) produziu. Grandes músicos. Para mim, sempre foi um sonho trabalhar com eles e são todos sonhos realizados. Esse disco simboliza esse encontro com o que desejava ser feito.
CONTINENTE Mas as trocas e parcerias com outros artistas fazem parte dos seus trabalhos, tanto esses, como também a cantora Céu, os artistas visuais Mônica Rodrigues e Mozart Fernandes e outros… Como isso influencia suas criações?
LIRINHA Tenho uma busca por uma expressão artística que esteja presente e acesa em todas as artes, que assuma essa potência artística. Todas essas pessoas compartilham dessa experiência de comunidade. Meu trabalho é feito desses encontros com o outro. Cresci numa cultura que você mesmo nunca dizia que era poeta, quem dizia era o outro. É o outro que lhe dá esse título.
CONTINENTE Você, que vem de Arcoverde, no Sertão do Moxotó, conta como a poesia lhe chegou.
LIRINHA Sempre penso nisso, qual foi exatamente o primeiro momento do impacto. Lembro que foi na convivência com os violeiros repentistas, a cantoria de viola, bem criança. Meus pais, meus tios e meu avô e avó paternos tinham isso muito presente. Os repentistas mais fortes da época fizeram cantorias no sítio do meu avô. Aí eu comecei a decorar poesias de Patativa do Assaré, Zé Laurentino, Chico Pedrosa e a recitar nos intervalos dessas cantorias. Depois, fui convidado, para fazer um festival de violeiros, em 1987. Isso com uns 12 anos. Essa foi minha primeira apresentação fora da casa de minha família. A partir disso, comecei a viajar fazendo essas declamações, que são poesias decoradas. Eu lembro que Patativa do Assaré começou a improvisar mesmo com ela falada, já era um grande avanço dessa performance. Quando a gente pensou em fazer o Cordel do Fogo Encantado, vinha muito dessa experiência da declamação. A ideia inicial era de que a música fosse uma base para se dizer essas poesias.
CONTINENTE Seu processo de composição no Cordel é diferente do trabalho solo?
LIRINHA É, sim. No Cordel, geralmente é uma narrativa em cima de um espetáculo que idealizamos. Agora, é todo no Viagem ao coração do sol. Tem toda uma história. As canções são muito voltadas para isso. Tem a coisa de estar representando outras pessoas também, isso faz com que a poesia mude um pouco. No trabalho solo, é outro processo, fica mais depoimento, testemunho. É assim que faço.
Grupo despontou em 1999 e seguiu até 2010, quando deu uma pausa. Foto: Divulgação
CONTINENTE O que você sente quando está no palco?
LIRINHA O meu entendimento sobre o momento do palco é muito diferente do processo que vivo nos ensaios. Para mim, a parte técnica dos ensaios é até a tarde em que passamos o som. Na hora do espetáculo, entendo como uma espécie de celebração daquela mensagem e o encontro com as pessoas, porque só nesse momento toda essa mensagem ganha outras características e se torna poderosa. Quando dialoga, quando chega nesse momento do público, para mim, já não existe mais o erro, tudo é parte. Tem que deixar fluir como se um rio passasse por nós. Ao mesmo tempo, somos MCs e, por sermos MCs, temos que ter a responsabilidade da noite, do espaço, das pessoas, principalmente em shows públicos. Nunca podemos vacilar. É aquela emoção, mas estou também com um microfone amplificado.
CONTINENTE O público é parte do espetáculo.
LIRINHA Sim, tem uma terceira coisa que acontece em todo o trabalho artístico, que é o contato dele com uma outra pessoa.
CONTINENTE Sair de Arcoverde. Como se deu a mudança para viver em cidades como o Recife e São Paulo?
LIRINHA Em Arcoverde, não só nasci, como vivi até meus 22 anos. O Cordel do Fogo Encantado nasceu nessa cidade. Começamos a viajar e nessas viagens fomos para o Recife, depois São Paulo. Para mim, São Paulo era uma “grande Caruaru”, aquela lógica eu entendi rapidamente. Gosto de lugares diferentes uns dos outros, das diferenças que eles têm. Gosto de São Paulo, daqui do Recife, de Arcoverde. A ideia é não esperar dos lugares o que se tem no outro. Então, me dou bem com essa circulação.
CONTINENTE Lembrei que na canção Ducontra, do seu álbum Lira, você fala algo como “cidades destruídas”, o que seriam?
LIRINHA As cidades onde moramos nesse mundo em que herdamos o contexto histórico. Cidades destruídas que foram construídas no genocídio, etnocídio, escravização e aldeamento. Essas são as cidades que herdamos de um processo de capitalismo que hoje, por exemplo, é um grande desafio para todos nós. O verso da música diz: “Viajar em estado de calma e morar em cidades destruídas”. Ainda mais: somos colocados diante desse desafio. Por esses tempos e por essa estrutura de sociedade, temos que manter a calma, encontrar o equilíbrio, desenvolver o amor, morando em cidades destruídas. Essa é a nossa condição.
CONTINENTE Já ouvi você falar de vários poetas, de Virginia Woolf, de Italo Calvino… Mas comente aqui algumas de suas referências literárias.
LIRINHA São muitas e participam de fases diferentes. Por exemplo, a importância que foi a poesia de Micheliny Verunschk. Era algo muito diferente da poesia que eu vivia com os cantadores. Os poetas Manoel Filó, que era de Afogados da Ingazeira (PE), mas morava em Arcoverde, e Zé de Cazuza são presenças de influência muito forte para mim. Alguns discos também são bastante influenciados, o Transfiguração (2006) tem O barão nas árvores, do escritor Italo Calvino. Meu disco Lira tem muito de Virgínia Woolf, até na música Ducontra mesmo. Ultimamente, estou muito interessado numa poesia lusófona, de Cabo Verbe, Angola, Moçambique, que me deixa muito curioso.
CONTINENTE Você e Micheliny Verunschk são referências para muita gente da atual geração de declamadores pernambucanos, a exemplo de Luna Vitrolira, Gleison Nascimento, Ícaro Tenório, e mesmo na música para Vertin Moura e Helton Moura, que são de Arcoverde. Como você observa isso?
LIRINHA Acho que as coisas não morrem, elas vão sendo mantidas por novas pessoas e vão ganhando novos intérpretes. Você sente isso na poesia rimada e metrificada do Sertão. As rodas de glosas só aumentam com um pessoal novo fazendo improvisos em cima de motes tradicionais, estruturas que foram desenvolvidas aqui e também na música. O pessoal que vai fazer música em Arcoverde, de alguma forma, tem que entender o som que foi feito. Principalmente, porque sempre existem ligações.
CONTINENTE A poesia no corpo e na voz ganha outras dimensões. A seu ver, o que acontece?
LIRINHA É diferente. Ela não fala só pelas palavras, assume outras emoções, é interpretada. A interpretação modifica qualquer poesia. Então, existe uma atuação dessas palavras, através da presença do corpo. Podemos ver uma poesia brilhar, explodir e ser inesquecível. Mas também pode ficar encolhida e se perder dentro do corpo, se não se sabe o que está dizendo, ou não conseguiu dizer.
CONTINENTE Nos anos 2000, em entrevista a Antônio Abujamra, no programa Provocações, ao ser perguntado quem você era, você afirmou que sabia pouquíssimo sobre si mesmo. Descobriu algo mais?
LIRINHA (Risos) Não, minha grande busca é por não existir mais e me derreter na música e na poesia. Esse é o meu grande objetivo. Há pouco, teve uma quadrilha junina de Arcoverde que fez o que seria a história da minha vida. No casamento matuto, eu casava com a poesia. Quando eles me disseram isso, achei que estava muito distante, mas como eu queria alcançar. Como queria que fosse profético.
CONTINENTE Tem um mote que, se não me engano, é do “poeta da saudade”, Antonio Pereira, que diz: “Não ter saudade de nada é não ter nada na vida”. Do que você sente saudade?
LIRINHA Não sei te dizer se é dele mesmo, mas é possível que seja. É bem ele. Ah, eu sinto saudade de muita coisa. Tenho uma saudade agindo dentro de mim, aqui, sem parar. Tenho muita saudade do Sertão, de um jeito, de alguns… é isso. Acho que é isso, não sei te dizer, não.
CONTINENTE E o que você anda lendo?
LIRINHA Estou lendo Noêmia de Souza e duas traduções de Leonard Cohen, que são A mil beijos de profundidade e Atrás das linhas inimigas do meu amor. Achei muito interessante essas traduções.
CONTINENTE Você pretende lançar um livro?
LIRINHA Pretendo, sim, pretendo me dedicar mais à literatura agora. Já tenho um livro publicado, que é o Mercadorias e futuro (2008) e outro infantil, de uma parceria com Alê Abreu, Garoto cósmico (2007). Pretendo lançar a história da Viagem ao coração do sol, que são textos que contam a narrativa de todas as canções desse disco. E continuar a escrever.
CONTINENTE O verso do poeta Pinto do Monteiro diz que ser poeta é tirar de onde não tem e botar onde não cabe. E como é que se faz isso?
LIRINHA A arte é essa fenda que se abre no mundo, para uma outra dimensão. (Sorrindo, abre os braços.) É rasgar o espaço e o tempo. No meu entendimento, aí é que entra o impossível. “Tirar de onde não tem e botar onde não cabe”. A arte é o impossível, o sonho e o além disso.
ERIKA MUNIZ é estudante de jornalismo e colaboradora da revista Continente.