ILUSTRAÇÕES HALLINA BELTRÃO
01 de Julho de 2018
Ilustração Hallina Beltrão
Em um século que desperta devastado pela onda funesta da literatura comercial, tendência que só se interessa pela legibilidade, pela clareza e pela digestão, faz muito bem, um imenso bem, apesar de produzir também inquietude e algum medo, apesar de nos fazer até sofrer um pouco, é muito inspirador reler esses quatro grandes romances de Raimundo Carrero. Prepare-se: é uma experiência inesquecível, mas não é também uma tarefa fácil. Tom Jobim dizia que “o Brasil não é para principiantes”. Nos tempos estranhos em que vivemos, a máxima de Tom ecoa como uma prece. O que fazer diante de nosso instável presente? Pode a literatura produzir respostas, ainda que só esboços de respostas, para nossos dias? Como a realidade não anda fácil, como ela exige de nós, talvez mais do que nunca, resistência e paciência, muitos pensam que a literatura, frágil instrumento estético, perdeu de vez a sincronia com o real. Perdeu o passo, ficou para trás. É um grande engano — e Carrero nos prova isso. A relação entre ficção e realidade não é mecânica, tampouco imediata. É um fato que a maior parte dos romances de hoje guarda uma aparência um tanto anêmica, estéril, insuficiente mesmo, em contraste com o dinamismo e a brutalidade do real. Os romances comerciais nos trazem a impressão de que, em contraste com a rapidez dos avanços tecnológicos e das ciladas da História, a literatura simplesmente fracassou.
Grande engano. Basta retroceder um pouco e ler, ou reler, Tangolomango, de 2013, ou O amor não tem bons sentimentos, de 2007, ou ainda Somos pedras que se consomem, de 1995, ou por fim Maçã agreste, de 1989. Basta ler, com entrega e com o coração na mão, a escrita luminosa de Raimundo Carrero. Em um espaço de 18 anos, período que se iniciou há 29 anos, Carrero escreveu quatro narrativas espantosas, que se oferecem, agora, como um espelho devastador de nosso presente. Pensando melhor: a gasta metáfora do espelho talvez não seja suficiente. O espelho se limita a refletir a realidade. Contudo, não sabemos, nunca saberemos, o que um espelho, de fato, é. Clarice Lispector viveu obcecada pelo desejo impossível de mirar um espelho vazio. Nem assim ela o decifrou. Clarice queria chegar à essência dos espelhos — desejava descobrir o que os espelhos fazem, o que finalmente eles são quando estão sozinhos. Repenso o que escrevi linhas acima: a metáfora do espelho vale, sim, se considerarmos que as imagens metodicamente nele refletidas são apenas a camada mais superficial do que conseguimos captar. Se é um espelho, a literatura é um espelho vazio, e só Deus sabe de que coisas um espelho vazio é capaz. Sabemos que dois espelhos perfilados, como nas paredes dos elevadores, se tornam um buraco negro que guarda o infinito. Mas, e um espelho solitário? Mais do que mostrar, ou copiar, provavelmente ele mastiga, dilacera e devora o real. Sim, se pensarmos em um espelho vazio, ele pode ser uma metáfora exemplar para a ficção de Raimundo Carrero.
Não vou facilitar as coisas: a leitura desses quatro grandes romances de Carrero dilacera. Rasga a proteção íntima que costumamos usar para nos defender do mundo. A verdade é: eles nos atordoam. Enquanto relia os quatro livros, senti, muitas vezes, uma mistura desconfortável de espanto e horror. Por quê? Simplesmente porque, diante das narrativas de Carrero, não somos — não podemos ser - simples leitores. Se nos entregamos para valer, se escorregamos para dentro dos livros com fé e paixão, eles simplesmente nos engolem. O atordoamento, uma espécie de estrondo interior que rompe todas as nossas defesas, se parece, então, com uma mágica. Eu lia, me afastava um pouco, fechava o livro, voltava a ler, fugia mais uma vez; mas, enquanto fugia, o desejo de retornar à leitura era sempre incontrolável. Essa experiência, na verdade, nós, leitores, a dividimos com os próprios personagens. Já na primeira página de Maçã agreste, também o jovem Jeremias experimenta uma dissolução paradoxal em que a beleza e a aversão se igualam. “Quando voltou para casa, não podia estar mais inquieto, mais inquieto e, no entanto, mais satisfeito.” Assim também ficamos nós, abnegados leitores de Carrero, expostos à escrita em brasa: queremos, mas fugimos, mas queremos e voltamos. E não conseguimos largar o livro que temos nas mãos.
Já nesse romance de 1989, o grande tema é a experiência do insuportável. A literatura, a grande literatura, nos abre vias mágicas, mas também descerra alçapões que nos engolem. É preciso pagar esse preço: nenhuma maravilha é de graça. Poucas páginas à frente, o personagem não suporta encarar as jovens prostitutas que, vendidas a mendigos ou ladrões, rastejam por alguma comida. “Ver os olhos daquelas meninas, ele sabia, era mais terrível do que encarar o câncer, o sangue purulento, as chagas gangrenadas, a morte.” É exatamente disso que a literatura de Carrero trata: do que, só muito mal e mal, cabe nas palavras; das misérias mais extremas que, em vez de se traduzirem em sílabas, ainda que gaguejantes, simplesmente nos emudecem. Das situações sem saída, do desamparo, da violência que se confunde com o gozo, do gozo que nada mais é que terror e ameaça. Situações radicais, muito radicais; violência gratuita e banal e, por isso mesmo, inominável; dores que, de tão repetidas, acabamos confundindo com a apatia, ou que nos deixam mesmo atordoados e insensíveis.
Qualquer semelhança com o contemporâneo não é mero acaso. Ao contrário: não só Maçã agreste, mas os quatro romances em conjunto falam, com uma precisão espantosa, de nosso estranho presente. Comenta-se muito a respeito do caráter premonitório da arte. Mas uma coisa é a tese esnobe, ou maçante, e outra bem diferente é experimentar essa semelhança na alma. Lá está o fanatismo religioso, o desejo (a qualquer preço, mesmo o pior preço) de salvação; lá está também a busca de alguma resposta para um mundo cada vez mais mudo, mais indiferente, mais desanimador. Lá estão, ainda, os lampejos de consciência de que essa resposta é impossível, de que ela não virá, ou que ela simplesmente não se deixa pronunciar. A sensação desconfortável de um túnel escuro e sem fim, de uma armadilha ou um alçapão; e também a constatação da impotência, expressa na fala do personagem Jeremias: “Uma resposta é o que não espero nem pretendo. Que os outros procurem respostas para as danações que sou obrigado a carregar”. Danação, ruína, inferno pessoal atravessam e estremecem os personagens dos quatro romances. Seres atordoados por uma realidade bestial, seres esgotados, que não suportam carregar os próprios destinos e os próprios nomes, ou como, em dado momento, o personagem reflete, num desejo intenso de fuga de si: “Talvez as pessoas pudessem mudar de nome todos os dias. Dormiria João e acordaria Antônio, ao meio dia seria Manoel e à noite Esmeraldo. Ou mudaria o nome de acordo com a luz”. Desejo de escapar, de escapar sempre, de livrar-se da sensação de encarceramento na qual o próprio nome se torna uma mordaça. Pois tudo o que sobra diante de tanto desmoronamento e tanta desgraça é mesmo o silêncio.
Ter um nome, descobre a personagem Sofia, pode ser um atordoamento. Pode ser uma atrofia. Uma prisão. “Repetiu muito tensa: ‘Eu sou Sofia. Quando as pessoas dizem Sofia, estão falando de mim ou comigo. Agora perdi o meu segredo’.” A sensação, com a posse do nome, é de devassamento, pois dizer o nome é o mesmo que fazer uma confissão. Exatamente, outra vez, como vivemos em nosso incômodo século XXI: hiperexpostos, conectados à força (algemados) pela tecnologia, hipnotizados pelo bombardeio de informações, de denúncias, de escândalos, e também de apelidos, de ideias fake, de assinaturas indignas de confiança. Enfim, afundados em um presente no qual a noção de intimidade se esfarela, dinamitada por um bombardeio de palavras que, no fim, nada mais querem dizer. Nesse mundo, e apesar de tantos nomes, perdemos a nossa face e a nossa expressão. Pensa Sofia: “Sou tão inexpressiva como este lápis. E ele tem um nome: lápis”. Os nomes (as palavras) perdem a potência, eles devassam, em vez de proteger e delimitar. Sim, nosso mundo se encontra atravancado de palavras e mais palavras, e também isso, esse estorvo, Maçã agreste, já no fim dos anos 1980, anuncia. Conclui Sofia que, no fim das contas, o grande risco não está só no nome, mas na própria existência. Existir, ainda que em silêncio, se torna perigoso. “Então, restava-lhe, unicamente, caminhar para a velhice?”
Para se consolar, ela sai em busca da liberdade conferida pelo inominável — que não é o mesmo que o silêncio. “Não queria embriagar-se, apenas respirar com alguma liberdade, a liberdade dos que não têm nome.” Sofia trata então de visitar Jeremias no quarto da irmã Raquel, onde ele se refugiou depois de abandonar a casa dos pais. Diante dele, ouve palavras duras: “Não precisa me compreender, isso não tem significação alguma. Sou o que sou”. Jeremias lembra, então, que se limita a repetir as palavras da Bíblia: “Eu sou aquele que sou”. Apesar de todo o horror, aceitar-se. Aceitar-se, simplesmente, sem considerar nem o passado, nem o futuro. Aceitar o presente, aceitar aquilo que é. “Nessas circunstâncias, é melhor um desconhecido do que um amigo. Os amigos incomodam muito, tentam evitar muitas coisas, demonstram apreensão, tornam-se antipáticos.”.A aceitação do outro, ao contrário, é neutra: nada deseja, nada espera, nada exige. Em um mundo saturado de pregadores e atordoados por tantos desejos impossíveis, é difícil, ainda hoje, encontrar alguém que simplesmente nos veja, e que nos acolha sem nada exigir. Jeremias tem consciência de nossa falta de serventia: “De repente, a gente se dá conta de que é uma inutilidade, começa a ficar fraco, e é um perigo”. Em nosso século do deus Mercado, não passamos de fichas lançadas para lá e para cá sobre o grande tapete das apostas. Isolados, distanciados do verdadeiro jogo, nada valemos. (...)
Maçã agreste é um romance que se contorce no tempo. Uma narrativa que experimenta os estados mais extremos do ser. Ernesto, o pai, viveu muita coisa, mas nada o preenchia. Nenhum feito, nenhuma palavra. “Descobriu (passados tantos anos) que apenas o silêncio acompanhava-o, cercava-o e amparava-o.” O silêncio — preciosidade em nosso mundo ruidoso, barulhento, escandaloso — se torna, na escrita feroz de Carrero, não uma ausência, mas um tesouro. Hoje, mais do que nunca, como numa partitura enlouquecida na qual as notas se sucedam em avalanche, nos faltam as pausas, os intervalos, a respiração. Só eles trazem significado às palavras. Os filhos — Raquel, a prostituta, e Jeremias, o vagabundo — não conseguiram dar conta do pai. Ninguém dá conta de ninguém. Ao contrário: por mais que tentemos, por mais que gritemos, que nos esgoelemos, apenas as paredes nos ouvem. De novo, a antevisão de nosso presente infernal: universo de ruídos, de chiados, de interferências, de gritos desesperados, no qual talvez consigamos tudo, menos parar. Parar onde? No próprio Ser. Nessa respiração secreta, mas fiel, que nos mantém vivos. De novo, uma pequena epígrafe, versos de Emily Dickinson, surgem para me ajudar: “Primeiro — arrepio — depois — estupor — depois — seja o que for”. Para além do monstruoso e do inumano, há, sempre, o roteiro do nome que devemos cumprir e que é tudo o que nos resta.
Ofegante — a escrita de Carrero me tira o fôlego —, piso as páginas em brasa de Somos pedras que se consomem, de 1995. Lançado seis anos depois de Maçã agreste, esse novo romance de Carrero arrasta atrás de si, como uma cauda infernal, a sombra do anterior. Camila também é Sofia, Jeremias também é Leonardo, Mateus também é Matheus. Mais ainda que no romance anterior, o erotismo e a tragédia se misturam e se devoram. “Preferia sangrar para não ter que se unir ao tédio e à náusea”, o herói Leonardo anuncia logo à primeira página. Trata-se de um relato aberto à interferência de outros autores — Sylvia Plath, John Updike. D. H. Lawrence, Norman Mailer, Henry Miller, John Donne e tantos outros — que, desse modo, não esconde sua condição de invenção. E, no entanto, no avançar das páginas, a história nos faz tremer, nos agita, arrastando-nos, a nós leitores ingênuos. Há um triângulo amoroso: Leonardo, a irmã Isis - fotógrafa da sociedade - e o estranho Siegfried. É um relato movido por impulsos e, como nos é dito em dado momento, “um impulso não deve ser contido”. A prostituta Biba, “pássaro da tarde”, se joga de uma janela e se transforma em personagem da mídia. Sobrevive. Também um romance, Maçã agreste, sobrevive dentro do outro, Somos pedras. De repente, Leonardo se torna leitor de Maça agreste, rompendo, com força, os tolos limites realistas da ficção. A atração pelos romances, pelos poemas e pelo suicídio une Leonardo e Siegfried. A beleza e a morte, o gozo e o horror, a vida e a catástrofe. Sofrem apenas de um pequeno mal: estão sempre a comparar vida e literatura. A sombra do Marquês de Sade se imiscui entre eles: a literatura é uma forma de sexo, e o sexo uma forma de literatura.
De maneira ainda mais violenta, a realidade brutal — a nossa realidade bestial de hoje — interfere e se encarna na narrativa. Leonardo vê Joaquim, o policial, queimar um menino vivo. A maldade se instala como um valor. Depois de queimar o garoto, Joaquim enfia estacas em seu corpo, como se o menino fosse um vampiro. Uma das características da maldade é não ter limites. Enquanto isso, Siegfried desenvolve (e pratica) uma asquerosa tese sobre a relação entre o feminino e a violência. Biba ainda está em coma, mas, apesar disso ou por isso, Siegfried invade seu quarto e a estupra. Justifica seu ato falando da suposta atração das mulheres pelos desgraçados: “Toda mãe quer ter um filho bandido”. Surge um espelho para ele: a imprensa noticia a prisão de Nancy K., uma mulher que “gostava de viver perigosamente: maltratando, injuriando, assassinando”. As faces da crueldade se desdobram, como um espelho fragmentado que, no entanto, justamente por estar despedaçado, reflete com perfeição o mundo em torno.
Biba sai do hospital e é levada para a pensão onde Raquel, Jeremias e Alvarenga — personagens de Maçã agreste — se hospedavam. Os relatos se misturam, se devoram, a escrita de Raimundo Carrero trepida e range. Há, como pano de fundo, um projeto de limpeza da raça (de eugenia) que Jeremias encarna. A violência se justifica com uma ideia absurda do bem. Também não é assim em nossos dias? Também Siegfried se julga “um homem superior”. A sombra do fascismo — exatamente como ocorre hoje — os persegue. Todo o livro se comprime em direção ao insuportável. Como cenário, um Recife triste e sem rumo, sem margens, sem limite, “sempre engolido pela noite”. Viver é isso: consumir-se, mortificar-se, destruir-se. Aos poucos, compreendemos que o homem é seu próprio carrasco. Não é fácil ler Carrero, pois ele nos defronta com tudo o que temos de pior. Ergue a cauda de nossa empáfia e exibe, sob ela, uma alma sombria, que se arrasta, que rasteja como uma serpente. Os tabus humanos se espatifam: as relações incestuosas, o gozo com a tortura alheia, a atração pelo mal, enfim, tudo o que temos de pior sai, de repente, à luz do sol. É essa simpatia pelo demônio — para usar as palavras de Bernardo Carvalho, tomadas de empréstimo dos Rolling Stones — que, enfim, se impõe. Num estranho capítulo 58/53 — a numeração do relato também parece enlouquecida — surge uma síntese, atribuída ao cronista recifense Renato Carneiro Campos. Diz assim: “Os medíocres não conseguem ser derrotados, pois não sabem distinguir nem o que significa realmente vitória do que seja derrota. A verdade é que não atingem a condição plena do humano, por não terem ideias próprias, não se individualizam. Fazem parte de uma enorme e poderosa classe, constituem verdadeiras legiões, imbatíveis”. Não há imagem melhor para o inferno do que o triunfo da mediocridade.
Carrero nos confronta, todo o tempo, com uma zona obscura que ultrapassa os limites humanos. Assim, ele nos leva a desconfiar do próprio humano e a considerar a possibilidade de uma esfera do inumano. É aos trancos, com bruscos intervalos para respirar, mas também para meditar, meio trêmulo — e espremido no interior do livro — que eu continuo a ler. A ficção de Carrero se vale dos paradoxos do Ser. Queremos, mas não queremos, sentimos atração, mas também repulsa, avançamos sempre, mas sempre com um desejo de recuar. Aí reside sua grandeza como escritor: a capacidade de destruir nossa zona de conforto — a imagem clássica e benigna de um leitor acomodado em sua poltrona sob uma luz acolhedora — para nos alçar, sem nenhuma piedade, mas também com intenso amor, para além de nós mesmos. Só um escritor que ama muito a literatura e que, em consequência, nutre intenso respeito por seus leitores, pode sustentar um projeto assim. Só o amor à literatura, um amor intenso, justifica a explosão da própria literatura. No final, o leitor é apenas um homem que insiste em respirar. Um sobrevivente da escrita que, no entanto, aderiu a ela para sempre. Manto ambíguo, desafiador, mas também protetor, a ficção, de uma forma estranha e inesperada, não deixa, assim, de nos salvar.
Por detrás do aparente caos, da narrativa ansiosa e trôpega, Raimundo Carrero mantém, no entanto, rígido controle sobre sua escrita. Também a desordem de Carrero — assim como a suposta ingenuidade de um Picasso, ou de um Miró, por exemplo — é esmeradamente fabricada, sendo o resultado de um longo e aplicado aprendizado, que se concretiza em refinadas estratégias narrativas. Como não poderia deixar de ser, pois a literatura se ergue sobre o inominável, no fundo de tudo persiste um enigma — que Carrero desenha, de forma ainda bastante obscura, em uma Roda do Enigma, mensagem gráfica que gira entre a força e o êxtase e que ele nos oferece como esperança. O enigma, essa intrusão do incompreensível no real, é o fio sutil em torno do qual o relato se desenrola. E talvez aqui se possa arriscar um nome para o que não tem nome: talvez possamos chamar o enigma de Recife. Cidade mítica, regida por forças incontroláveis e por desejos desnorteados, o Recife bem pode mesmo exprimir isso que, sem sucesso, tentamos nomear, isso que é provavelmente a própria vida. Cidade viva, na qual os opostos convivem, mas também entram em luta, terror e desejo, brutalidade e prazer, miséria e fausto. Cidade ardente, repleta de personagens misteriosos, o Recife é um resumo não só do Brasil daqueles anos 1980, mas também do Brasil de hoje.
(...) Nisso está a dificuldade, mas também a atração, que a literatura de Carrero desperta em seu leitor. É difícil, é dolorosa, machuca, mas quem consegue abdicar de tanta beleza? Quem pode desistir, qual de nós está autorizado a abdicar do humano? Ali está o homem, de corpo inteiro, com seu melhor e com o seu pior. Com seus terrores, mas também com seus sonhos, e os dois vêm sempre amarrados e ninguém consegue separá-los. É como pensa Ísis, a irmã de Leonardo: “Ainda nem chegara aos 20 anos e não queria sonhar. Sonhar dói muito. Sonhar é como ficar apaixonada. Sofrendo e apaixonada”. No fundo, no fundo, somos pedras. Somos duros, fechados, temos um coração forte que se aperta, seguimos em frente, mas, apesar de todo o esforço para não se machucar, algo sempre desmorona.
Agora é o argentino Ricardo Piglia quem se intromete em seus pensamentos. Carrero é assim: quanto mais se lança sobre a chama viva do real, quando mais se queima e se entrega, mais a literatura se apresenta como uma via de salvação. Ao perfurar a realidade, porém, é de novo na fantasia — na ficção — que ele desemboca. Aqui há, sem dúvida, um alerta aos leitores: que não levem tudo tão ao pé da letra, que não acreditem demais, que não se assustem tanto, porque no fundo, bem no fundo, a ficção se oferece como uma paisagem mítica. Uma cortina que nos envolve e nos protege do real, embora, e ao mesmo tempo, nos lance sobre ele. Torna-se nossa arma para enfrentar um mundo cada vez mais incompreensível. A depravação pode ser sinal de beleza; a crueldade pode apontar uma chance, ainda que remota, de paixão; o mal e o bem se misturam; os sentimentos humanos se embaralham como cartas enlouquecidas; não dá para celebrar o homem sem carregar junto a ambiguidade que o sustenta.
A escrita de Carrero se torna cada vez mais cifrada. É uma trança de vozes que se misturam, se acasalam e se agridem, é uma enigmática sinfonia. Sim, porque, apesar de tudo, apesar de todo horror e toda a dor, persiste em sua escrita uma inesquecível música de fundo, uma partitura delicada, quase invisível, sem a qual, no entanto, todo o relato desmoronaria. Como acordes agressivos que rompem o andar melodioso, novas interferências se impõem: D. H. Lawrence, Robbe-Grillet e seu O ciúme, Clarice Lispector que sussurra: “Em tudo, em tudo você terá a seu favor o corpo. O corpo está sempre ao lado da gente. É o único que, até o fim, não nos abandona”. Importante essa insistência no corpo, não só como instrumento de prazer, ou de dor, mas como manifestação do Absoluto, ali onde o caos parece tudo desfigurar. A ficção de Raimundo Carrero está atravessada pelo corpo — como se fosse escrita sobre um corpo, como em Livro de cabeceira, o espantoso filme de Peter Greenaway. No filme, uma menina japonesa cultiva a arte de escrever sobre a pele, arte que herdou do pai. Escrever sobre o corpo, fazer da pele um caderno, é para a menina Nagiko não só um ritual de purificação, mas uma imposição da anatomia como principal suporte do real. Do mesmo modo, em Carrero o corpo, todo o tempo, se apresenta como uma última fronteira de realidade; derradeira garantia não só de que a vida persiste, mas de que o real, apesar de tudo, merece ser celebrado.
Já ofegante, mas sempre agarrado às páginas sangrentas, salto para o terceiro livro, O amor não tem bons sentimentos, de 2007. Estamos, mais uma vez, diante de Jeremias, o personagem insistente e persistente, que propaga a seita Soldados da Pátria por Cristo. Mais uma vez, laços potentes ligam as narrativas de Carrero, transformando-as numa longa corrente. Talvez devamos ler os quatro romances como um romance só. Talvez eles sejam, de fato, um único romance. Lá estão também Biba, Ísis, lá estão o sexo, a brutalidade e a morte. A história começa com a cena dolorosa do corpo nu de Biba que boia nas águas do Capibaribe. Diante do cadáver da irmã, Matheus — como o Mersault de O estrangeiro, de Albert Camus — constata: “Não sinto nada”. Ainda tenta refletir: “Devo sentir algum tipo de sensação. Digamos, devia ter pelo menos... compaixão, piedade... piedade e compaixão não são a mesma coisa? Não, nem compaixão nem piedade”. Há apenas um grande vazio, que se iguala à morte, única experiência humana a que nenhuma palavra corresponde. “Não significa que eu não sentisse a morte de Biba, se é que ela estava morta mesmo.” Até a fronteira entre a vida e a morte não passa de um vasto campo vazio.
A cena — a irmã nua boiando nas águas do rio - o leva a rememorar sua vida, afastado da mãe desde o nascimento: “nunca ninguém me disse nada, nunca ninguém me explicou”. Outro vazio, outro buraco. Vai então viver com a tia Guilhermina. Um homem despojado de sua origem: “quem me trouxe ao mundo foi a dor”. Um desenraizado, que só depois compreenderá que a mãe, Dolores, assassinara o pai, Ernesto. Sem raízes, desfigurado, ele se defronta com a turbulência da vida. “Na minha vida as coisas vão acontecendo e sumindo, tropeçando, avolumando-se, nunca retornam, parecem sempre provisórias.” Mas haverá alguma vida que não se passa no provisório? Não é o tempo, ele mesmo, que sustenta a vida? Não somos todos arrastados pelo desaguar nas águas sujas da morte? Diante da instabilidade humana, Matheus descobre que só lhe resta inventar. Decide: mentir é sua melhor qualidade. Sua arte (marcada também ela pela flutuação e pelo tempo que escorre) é a música. Começou pelo clarinete, depois passou para o sax-alto e enfim para o tenor. Mas nada o preenche. Medita: sentir-se vazio é pior do que sentir-se louco.
Mais uma vez, Carrero escreve para desafiar o vazio e desmascará-lo. Diante dele, Matheus chega a sentir o desejo de enlouquecer, porque na loucura, pelo menos, existem fantasmas, assombros, alguma coisa se agita e ainda parece viva. A visão da irmã morta não o abandona: “Diante da minha insensibilidade, pensei que era a loucura se instalando definitiva, porque devia me emocionar pelo menos com a nudez”. Raciocina: a loucura pode ser uma vantagem, pois quem enlouquece se ausenta do mundo e assim se protege. Mas nem isso ele consegue viver. “De repente, compreendi: ela era o corpo da loucura para que eu me apaixonasse por ele e assim me apaixonasse pela loucura.”.O vazio, esse deserto onde nem mesmo a loucura floresce, se mascara em fingimento. A vida se torna, então, um teatro, onde todos encenam seus papéis com correção, todos se comportam como deve ser, mas, no entanto, ninguém vive. A vida se torna um simulacro. Retorno aos nossos tempos, tristes tempos, regidos por falsificadores e falsos profetas: nomes falsos, arremedos lamentáveis, montagens, o primado do fake, mentiras que ganham o status de verdade. A pergunta que governa nosso triste tempo é: afinal, onde estou? Desde a Antiguidade: afinal, quem sou eu? Um carnaval de máscaras fabrica simulacros da verdade. Mas, quanto mais essas imagens se duplicam e se propagam, mais distantes da verdade nós estamos. Já era assim (Carrero nos mostra) nos primeiros anos de nosso novo século. Já era assim desde sempre? (...)
Continuo a avançar na leitura, com a atenção presa, mas o espírito em frangalhos. É impressionante como Carrero consegue manipular a perversidade com extrema delicadeza. Impressionante ainda como, mesmo diante dos personagens mais abjetos, ele desperta em nós, leitores desamparados, já inteiramente reféns de sua voz, uma piedade inesgotável, porque sabemos que todo o horror que ele nos mostra, tudo o que diz e descreve, é nosso próprio horror. Outra vez a mesma sensação insuportável: somos nós, pobres leitores, que - como o ingênuo Gepeto - habitamos a barriga do livro. Como escapar? Como sair de um mundo que nos pertence? Não é nada agradável o caminho que a escrita de Raimundo Carrero nos abre. Contudo, alguma coisa muito forte nos arrasta para dentro das páginas, uma torrente, um ímpeto. Tempestade e ímpeto — mas Carrero está muito distante, e muito além, muito mesmo, dos preceitos do Romantismo. Realismo? A palavra também é insuficiente porque, provavelmente, estamos muito além do real. Não distantes, mas em seu interior, naquelas zonas a que, por hábito, costume, preguiça, medo, nunca temos acesso. Os relatos de Raimundo Carrero nos defrontam com aspectos bastante odiosos de nós mesmos. Apesar disso, é impossível deixar de olhar. É impossível desistir de ler.
Pensemos em Dolores, a mãe. “Uma mulher de ausências, essa mulher, essa mãe.” Também a mãe (até ela) parece ocupar outro lugar. Nenhum de nós está onde devia estar. Todos nos deslocamos, nos pervertemos, nos perdemos. Já não cabemos dentro de nós mesmos. De novo: ter um nome já não basta. Tampouco basta ter um sangue, uma linhagem, uma ascendência. Nada assegura nada. O próprio livro, O amor não tem bons sentimentos, é uma armadilha de que devemos, todo o tempo, desconfiar. No fim, só o crime e o extermínio trazem a impressão (enganosa) de recolocar as coisas em ordem. Apenas uma impressão já que, o tempo todo, há um desencontro entre o pensamento e a ação. Não mandamos em nós mesmos. “Meus pensamentos me contrariam”, Matheus diz. Não passamos de fantoches, manipulados por forças que desconhecemos. Encenamos uma peça cujo script nunca leremos. Paradoxo: a condição humana, ao contrário das esperanças dos clássicos, é a ausência de condição. O que rege o humano não é o conhecimento, mas o desconhecimento. Só a cegueira — já está no Édipo, de Sófocles — nos faz agir.
Matheus não sabe o que fazer com seu crime. Como o Luis da Silva de Angústia, o romance de Graciliano Ramos, há também aqui o medo de ser pego, o tormento da culpa, o horror diante do próprio ato. Algumas cortinas atrás, passeia a sombra de Rodion Raskólnikov, o torturado protagonista de Dostoiévski em Crime e castigo. Um homem diante de seus atos — como se eles fossem atos alheios, como se eles não lhe pertencessem. Um homem que não se reconhece no que fez, que não é o autor da própria obra. O pensamento fracassa: transe, febre, horror tomam a frente da cena. “Chega uma pessoa aqui pensando que eu sou doido, aí eu vou ter de ficar doido mesmo.”.Pensa Matheus, então, na hipótese extrema de uma loucura consentida. “Está certo, eu sempre quis ser doido. A loucura é uma proteção muito boa, espacial, ajuda a suportar a dor nos ombros, ajuda a suportar o corpo, ajuda a suportar a alma.” Raskólnikov novamente: vale a pena ser lúcido? Em um mundo desregrado, insalubre, adoentado, vale a pena insistir na posse de si? Ou, ao contrário, essa aposta na sanidade será sempre a prova definitiva da própria loucura? No fim, de consistente resta-lhe o corpo, mas ainda este lhe causa incômodo, como uma roupa muito apertada. “Não é questão de beleza. É de adaptação. Nunca me adaptei a meu corpo.” Para que serve um corpo, só para morrer? (...)
Matheus — possivelmente, o maior personagem da ficção de Raimundo Carrero — é um homem enredado em uma teia de pensamentos desconexos; ideias sábias, outras vezes rotas, lógicas que se embaralham e se desmentem; um homem, enfim, atolado em sua própria mente. Digamos a verdade: não é assim que vivemos todos? Só que em alguns, e Matheus parece ser uma vítima especial, essa luta se agrava. Torna-se uma doença. Em dado momento é o próprio Matheus quem resume seu conflito, que é também o nosso conflito: “Os meus pensamentos são invadidos pelos outros. Se meus pensamentos não fossem invadidos pelos outros o meu eu não brigava tanto com meu eu”. A questão do amor próprio, em um mundo tão necessitado de amor, é também uma questão contemporânea. Não é à toa que os consultórios de psicólogos, psicanalistas, terapeutas estão cheios de pessoas que lutam para gostar de si. Admite Matheus: “Meu temperamento não gosta de mim, o que é que vou fazer? Gostar já não digo, diverge. Meu temperamento diverge de mim mesmo. Assim como meu corpo”. Esse afastamento entre o homem e si mesmo, mundo em que as pessoas cada vez mais se consomem em seus próprios conflitos internos, tem no miserável Matheus um símbolo. Na verdade, somos sempre, um pouco, o outro, e Matheus sabe disso. Impossibilitado de conservar a coesão, nosso Eu escorre pelos poros, alastra-se, e ao mesmo tempo se contamina com o que vem de fora. Nunca estamos sozinhos porque o outro está sempre dentro de nós. “Somos muitos”, diz Matheus. “Eu, meu outro eu, meus muitos eus, meu temperamento, meus pensamentos, meu corpo, meu sangue.”.Como sustentar uma vida que é plural e ambígua? Como saber, realmente, onde se pisa? (...)
E aqui, enfim, chego a Tangolomango, o quarto romance da tetralogia, de 2013. Vinte e quatro anos se passaram desde o lançamento de Maçã agreste, mas a escrita de Raimundo Carrero continua a borbulhar e a queimar. Aqui ressurge Tia Guilhermina, personagem do romance anterior. Ressurge como um clarão e também um susto, tanto que, já na primeira página, em nota de advertência, Carrero nos alerta: “Este romance foi escrito para ser lido de um fôlego só, de preferência das seis horas ao meio-dia, com a força da luz e do sol”. Bem que tentei, comecei minha releitura no horário sugerido; mas as páginas tremiam de tal modo em minhas mãos que só terminei alguns dias depois. Todo leitor é, também, um traidor. Justifica Carrero sua sugestão: “As primeiras horas da manhã possibilitam, ainda, um maior envolvimento com o clima sombrio e denso da personagem”. Ele diz toda a verdade: em sua escrita, sufocamos, mas é um abafamento tão intenso, e ao mesmo tempo tão sedutor, que já não importa saber de onde ele vem, ou o que fará de nós, leitores abnegados. Ler é sempre uma atividade de alto risco, porque nos coloca no lugar (na alma) do autor. Porque nos transfigura e nos arranca de nós mesmos. Não é fácil, mas sigo em frente.
Já na epígrafe, tomada de empréstimo a James Joyce, alguns elementos fortes se apresentam: o êxtase, a desordem, a tremedeira, a selvageria. Ressurge também Matheus, o sobrinho de Tia Guilhermina, que vai a julgamento, acusado de duplo assassinato. Aqui a submissão e o apagamento se reafirmam: um homem segue sempre um cachorro. “O que surpreende é o fato de ele seguir o cachorro. Sem mudar de rua, de beco, ou de esgoto”. Não pode mesmo haver outro destino para o vômito dos deuses senão a sarjeta e o vômito. Ao vomitar, o homem despeja para fora o que traz dentro de si, aquilo que, nojento, odioso, decadente, sempre o sustentou. De novo a violência enlouquecida e a loucura como borda. Enquanto isso, Tia Guilhermina — como tantas mulheres abandonadas de hoje — chora por um amor que não existe, que nunca existiu. Chora por um sonho que se despedaçou antes de se encorpar. Tia Guilhermina (a mulher) é um mistério. Todos se perguntam quem ela é, afinal. Adoradores da intriga e da maledicência, os vizinhos querem sempre saber quem ela realmente é. Podemos aqui repetir a velha sentença de Freud: mas quem sabe, de fato, o que quer uma mulher? “Assim: não tinha namorados nem amigos nem amigas, alimentava a solidão abandonada.” Entrem em uma lan house ou em um internet café, observem as meninas e os meninos que se debruçam sobre telas luminosas. Vocês já viram, já viram mesmo, tanta solidão? Não é a solidão, apesar de tanta luz, essa luz ofuscante que nos atordoa e submete, uma marca de nosso tempo? Por que só Tia Guilhermina, a sombria, estaria solitária?
Carrero escreve, de certo modo, não só as memórias do Recife, mas as memórias íntimas do Brasil. A presença do Carnaval coloca em cena não só a alma de nosso país, mas o tema da liberdade, objeto hoje sob constante ameaça e que, por isso mesmo, ganha um valor especial. Mas, quando enfim temos a liberdade, o que fazer da liberdade? Publicado há apenas cinco anos, Tangolamango guarda toda a vibração e o nervosismo de nosso instável presente. Entre as fagulhas do hoje, o bloco O Cachorro do Homem do Miúdo avança aos tropeções pelas ruas assimétricas do bairro da Boa Vista. “Não era nada romântico ou lírico observar aquele homem com fantasia de Carnaval, acompanhando um único cachorro, a tocar pandeiro e a cantar como quem se despede do mundo.” O mundo decai e a alegria se dissolve na tristeza. “Quem estava mais bêbado? O homem ou o cachorro?” Os limites se afrouxam, a beleza da paisagem se confunde com a aflição dos maltrapilhos. É uma paisagem borrada, opaca, de difícil decifração, que Carrero, usando mais uma vez seus esplêndidos instrumentos de cronista, luta para fisgar. Tia Guilhermina e Matheus são apenas duas sombras que nele se agitam e se dissipam. Falta nitidez a esse mundo feito de tantos paradoxos e tantas agonias. É preciso ter sabedoria, ou não se vive. Tudo o que se quer é respirar, ser dono de si, sentir-se livre. A epígrafe, tomada de empréstimo a Pessoa, resume: “Não prazer, não a glória, não o poder; a liberdade, unicamente a liberdade”. (...)
Os capítulos do romance se comprimem, as imagens se sobrepõem, os cenários se confundem. O mundo — repetindo o que sentimos em nosso presente — tem cada vez menos solidez. Mundo trêmulo, inquieto, vacilante, no qual as coisas já não estão mais onde deveriam estar. Mundo devorado pela miséria, e diante dela, qualquer noção de intimidade, ou de pudor, não passa de uma ilusão. Mundo expelido à força do interior de deuses derrotados. No fim, como um resto da existência, ficam sombras, ficam fantasmas, ficam apenas algumas visões. Não é fácil sobreviver em um mundo que já não pode mais se manter de pé. Tristeza, muita tristeza, mas é disso que devemos partir. A literatura de Raimundo Carrero se oferece, assim, como um projeto de salvação. Tangolomango é um desdobramento de O amor não tem bons sentimentos, que por sua vez sai de Somos pedras que não se consomem. Todos eles começam em Maçã agreste. Em nota ao pé do livro, Carrero não só assinala esses vínculos sanguíneos, como anuncia que três deles formariam um tríptico que se chamaria Comigo a natureza enlouqueceu. Um pedaço dos célebres versos de Maiakóvski: “Comigo a natureza enlouqueceu, sou todo coração”. Na mesma nota, o escritor fala de um Quarteto áspero, que seria composto também por Seria uma sombria noite secreta, romance que ele publicou em 2011. Também Carrero, com sua alma inquieta e em fragmentos, que se agita sob uma força descomunal, faz vários recortes diferentes em sua obra, até chegar a esse Condenados à vida. O título que escolheu para a tetralogia se baseia em uma pergunta incômoda: pode mesmo a vida ser denominada uma condenação? Matheus, a mãe Dolores e a irmã Biba se revezam na paisagem escrita, atravessam vários relatos, costuram vínculos, que fazem de sua obra uma sinfonia. Seus livros, no fim das contas, podem ser lidos em qualquer ordem, e até mesmo aos pedaços, porque são, todos eles, partes de um coração que, para não explodir de tanta fúria e paixão, não consegue parar de escrever.
RAIMUNDO CARRERO nasceu em Salgueiro-PE, em 1947, e já na infância mostrava pendores literários. Em mais de 50 anos, escreveu novelas, contos e romances, angariou prêmios e ocupou cargos públicos. Membro da Academia Pernambucana de Letras, formou centenas de escritores em sua famosa Oficina de Criação Literária.
JOSÉ CASTELLO é escritor, jornalista e crítico de literário.