Portfólio

Wura-Natasha Ogunji

Uma afirmação de presença no mundo

TEXTO SOFIA LUCCHESI 

01 de Junho de 2018

'Will I still carry water when I'm a dead woman?' (2013) discute questões sobre a incidência do trabalho nos corpos e mentes femininas

'Will I still carry water when I'm a dead woman?' (2013) discute questões sobre a incidência do trabalho nos corpos e mentes femininas

FOTO Ema Edosio/Divulgação

[conteúdo na íntegra (degustação) | edição 210 | junho de 2018]

O dia está
ensolarado em Lagos, na Nigéria. Numa das cidades mais ricas do continente africano, vez ou outra pode ser vista uma cena que remete a algumas metrópoles brasileiras: entre automóveis, avenidas e prédios modernos, cavalos e seus cascos estalam o concreto das ruas. Essa dualidade traz ao plano material outras contradições mais subjetivas do país, mas não reduz sua complexidade. Em meio ao avanço e ao anacronismo, cinco corpos mascarados vêm descendo pela rua. Suas formas são humanas e femininas, porém; ali cobertas por um novo rosto afrofuturístico, mais parecem criaturas etéreas ou alienígenas.

Essa foi a primeira apresentação da qual a artista visual Wura-Natasha Ogunji não participou como performer. Em Strut, título que pode se referir a uma maneira de andar ereta e firme, como um tipo de marcha, a artista convidou cinco amigas para desfilarem nas ruas de Lagos. Na Nigéria, país em que os corpos e subjetividades femininas são relegados à invisibilidade e subjugação, ela faz da performance um modo de afirmação dessa presença no mundo. “Aqui, uma mulher pode estar falando em público e ser completamente ignorada, ou, se está andando com um homem, alguém pode dizer ‘bom-dia’ para o homem e não falar nada para você”, conta, em entrevista à Continente.


Nas ruas de Lagos, Wura utiliza a arte para reposicionar o lugar da mulher no mundo. Foto: Allyn Gaestel

A máscara tem sido um elemento bastante utilizado na pesquisa da artista, com inspiração nas tradições africanas, a exemplo do Egungun, associada à mitologia iorubá, subvertida e ressignificada em seus atos performáticos como dispositivo para criar uma atmosfera épica, gerando uma certa atitude “respeitosa” dos passantes em espaço público.

“O Egungun é muito interessante, porque ele pode ir aonde quiser e fazer tudo que quiser. Tem essa liberdade de movimento que ninguém tem, pois para o trânsito e as pessoas saem do caminho quando está passando. Só homens podem participar do Egungun, então eu penso: o que significa uma mulher usar essa tradição de um jeito diferente? Como artista, quero proporcionar a outras pessoas a sensação de liberdade e movimento que normalmente não temos.”

A pesquisa com máscaras também envolve a presença feminina em outras dinâmicas espaciais, como os espaços privados de galerias e museus. Há, no trabalho da artista, uma noção de público e privado como conceitos mais diluídos e menos determinantes; estando presentes em sua obra não só como espaços físicos, mas enquanto lugares simbólicos, aliados a questões sobre a presença feminina. Apresentada em espaços museológicos e executada pela própria artista, The kissing mask consiste basicamente na presença da performer mascarada, que permanece sentada e parada durante todo o tempo. O título incentiva os visitantes a interagir beijando a máscara. “Quem você beija quando beija uma máscara?”, provoca a artista.

“Quando você está mascarado, é como se você não fosse mais um ser humano, o corpo está lá, mas você está em outro lugar com ele. Nas ruas de Lagos, esse outro lugar proporcionado pela máscara permite que as mulheres façam coisas que não são socialmente aceitas, não necessariamente de um jeito negativo. Nós não fazemos certas coisas na vida diária, mas a máscara permite que você entre em outro lugar espiritualmente, talvez até ‘cosmicamente’. O mundo é de um jeito, e aí você vai e fala para as pessoas ‘então, agora o mundo vai ser desse jeito aqui’.”

Independentemente do espaço que ocupem, os corpos femininos criados por Wura estão sempre empoderados, mesmo quando submetidos a trabalhos árduos, como em Will I still carry water when I’m a dead woman?. Nessa performance, um grupo de mulheres carrega barris de água amarrados aos tornozelos, uma referência crítica ao esforço da coleta de água, em grande maioria realizada pelas mulheres nigerianas. Para a artista, nas sociedades contemporâneas, em que as mulheres estão constantemente trabalhando (as chamadas “jornadas duplas de trabalho”, no espaço público e no lar), não há tempo para a população feminina simplesmente experimentar o lazer e a diversão. Em resposta a isso, a arte se torna esse agente ativador para a imaginação, trazendo novas possibilidades de vivenciar espaço e tempo.

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Apesar de ter nascido em Saint Louis (Texas), Estados Unidos, país onde estudou Antropologia e Fotografia, Wura é cidadã do mundo. Mora há seis anos na nigeriana Lagos, cidade em que nasceu seu pai, tendo morado também na Espanha. Integrando a curadoria descentralizada de Gabriel Pérez-Barreiro para a Bienal de São Paulo deste ano, o trabalho de Wura chega pela primeira vez ao Brasil com a coletiva Sempre, nunca, na qual é artista-curadora. Para acompanhá-la, convidou apenas artistas mulheres: Lhora Amira (África do Sul), Mame-Diarra Niang (França), Nicole Vlado (EUA), Ruby Onyinyechi Amanze (Nigéria) e Youmma Chiala (Líbano). No pensar horizontal do projeto, são trabalhados dois conceitos que também integram a obra da curadora-artista: o íntimo – corpo, memória e gesto – e o épico – história, nação e o cosmos.

“Quando falo do íntimo, penso em relações entre as pessoas que são muito pessoais, mas também momentos em que você tem interações com estranhos que são muito íntimas e que podem acontecer no ambiente público. Estou interessada no que essas interações podem mostrar e inspirar. O épico tem a ver com essa intimidade privada, mas é como se fosse algo maior do que a vida. Escolhi essas artistas porque elas pegam experiências muito pessoais e tornam isso algo compartilhado que tem uma presença muito forte no mundo, seja visualmente ou socialmente. Você tem a sensação de fazer parte de alguma coisa”, explica Wura, sobre a exposição na Bienal, que acontece entre 7 de setembro e 9 de dezembro próximos.

No início de sua trajetória, o trabalho de Wura tomava forma através de vídeos, utilizando técnicas como stop motion. Mesmo na produção videográfica, aspectos da performance e a presença do corpo da própria artista sempre foram explorados. “Na Espanha, eu estava muito isolada. O trabalho que fiz lá tinha muito de uma manifestação física, da presença do meu corpo, e acho que, parcialmente, porque eu me sentia muito invisível lá enquanto mulher negra e estrangeira. Eu estava interessada em deixar uma marca e sentir minha presença no mundo, e em como isso ficaria no filme, como ato físico”, explica Wura, que também produz desenhos, geralmente ligados aos temas das performances.

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Pela carga corporal de sua obra, muito ligada ao próprio corpo e, junto a isso, todo um conjunto de traços históricos e sociológicos que esse corpo feminino e negro evoca, outras chaves interpretativas podem ser ativadas a partir do contexto em que se está inserido. Nos Estados Unidos, diferentemente da Nigéria, onde “todos são negros”, segundo a artista, o conflito racial é uma questão forte.

A ativista americana Angela Davis disse certa vez, em visita ao Brasil, que “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Tal frase talvez carregue em palavras sentimentos evocados pelo ato realizado por Wura durante o Festival Fusebox, em 2010, na cidade de Austin, Texas – estado marcado pela escravidão do povo negro. Em One hundred black women, one hundred black actions, 100 mulheres negras de diversos países foram convocadas para uma marcha, atravessando a fronteira entre o Texas e o Tennessee, enquanto uma projeção exibia a travessia ao vivo do outro lado da fronteira.

Sobre isso, ela também indaga: “Acho que nossa jornada pessoal está conectada com questões mais amplas sobre a vida e o universo, e sobre liberdade. O que é liberdade? E o que significa estar livre enquanto artista e o que nós podemos criar, se estamos completamente livres? Como nós, artistas, podemos nos esforçar para encontrar a nossa linguagem criativa mais honesta? E o que essa liberdade pode trazer para outras pessoas?”.

SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente e fotógrafa.

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