“Quando você está mascarado, é como se você não fosse mais um ser humano, o corpo está lá, mas você está em outro lugar com ele. Nas ruas de Lagos, esse outro lugar proporcionado pela máscara permite que as mulheres façam coisas que não são socialmente aceitas, não necessariamente de um jeito negativo. Nós não fazemos certas coisas na vida diária, mas a máscara permite que você entre em outro lugar espiritualmente, talvez até ‘cosmicamente’. O mundo é de um jeito, e aí você vai e fala para as pessoas ‘então, agora o mundo vai ser desse jeito aqui’.”
Independentemente do espaço que ocupem, os corpos femininos criados por Wura estão sempre empoderados, mesmo quando submetidos a trabalhos árduos, como em Will I still carry water when I’m a dead woman?. Nessa performance, um grupo de mulheres carrega barris de água amarrados aos tornozelos, uma referência crítica ao esforço da coleta de água, em grande maioria realizada pelas mulheres nigerianas. Para a artista, nas sociedades contemporâneas, em que as mulheres estão constantemente trabalhando (as chamadas “jornadas duplas de trabalho”, no espaço público e no lar), não há tempo para a população feminina simplesmente experimentar o lazer e a diversão. Em resposta a isso, a arte se torna esse agente ativador para a imaginação, trazendo novas possibilidades de vivenciar espaço e tempo.
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Apesar de ter nascido em Saint Louis (Texas), Estados Unidos, país onde estudou Antropologia e Fotografia, Wura é cidadã do mundo. Mora há seis anos na nigeriana Lagos, cidade em que nasceu seu pai, tendo morado também na Espanha. Integrando a curadoria descentralizada de Gabriel Pérez-Barreiro para a Bienal de São Paulo deste ano, o trabalho de Wura chega pela primeira vez ao Brasil com a coletiva Sempre, nunca, na qual é artista-curadora. Para acompanhá-la, convidou apenas artistas mulheres: Lhora Amira (África do Sul), Mame-Diarra Niang (França), Nicole Vlado (EUA), Ruby Onyinyechi Amanze (Nigéria) e Youmma Chiala (Líbano). No pensar horizontal do projeto, são trabalhados dois conceitos que também integram a obra da curadora-artista: o íntimo – corpo, memória e gesto – e o épico – história, nação e o cosmos.
“Quando falo do íntimo, penso em relações entre as pessoas que são muito pessoais, mas também momentos em que você tem interações com estranhos que são muito íntimas e que podem acontecer no ambiente público. Estou interessada no que essas interações podem mostrar e inspirar. O épico tem a ver com essa intimidade privada, mas é como se fosse algo maior do que a vida. Escolhi essas artistas porque elas pegam experiências muito pessoais e tornam isso algo compartilhado que tem uma presença muito forte no mundo, seja visualmente ou socialmente. Você tem a sensação de fazer parte de alguma coisa”, explica Wura, sobre a exposição na Bienal, que acontece entre 7 de setembro e 9 de dezembro próximos.
No início de sua trajetória, o trabalho de Wura tomava forma através de vídeos, utilizando técnicas como stop motion. Mesmo na produção videográfica, aspectos da performance e a presença do corpo da própria artista sempre foram explorados. “Na Espanha, eu estava muito isolada. O trabalho que fiz lá tinha muito de uma manifestação física, da presença do meu corpo, e acho que, parcialmente, porque eu me sentia muito invisível lá enquanto mulher negra e estrangeira. Eu estava interessada em deixar uma marca e sentir minha presença no mundo, e em como isso ficaria no filme, como ato físico”, explica Wura, que também produz desenhos, geralmente ligados aos temas das performances.
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Pela carga corporal de sua obra, muito ligada ao próprio corpo e, junto a isso, todo um conjunto de traços históricos e sociológicos que esse corpo feminino e negro evoca, outras chaves interpretativas podem ser ativadas a partir do contexto em que se está inserido. Nos Estados Unidos, diferentemente da Nigéria, onde “todos são negros”, segundo a artista, o conflito racial é uma questão forte.
A ativista americana Angela Davis disse certa vez, em visita ao Brasil, que “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Tal frase talvez carregue em palavras sentimentos evocados pelo ato realizado por Wura durante o Festival Fusebox, em 2010, na cidade de Austin, Texas – estado marcado pela escravidão do povo negro. Em One hundred black women, one hundred black actions, 100 mulheres negras de diversos países foram convocadas para uma marcha, atravessando a fronteira entre o Texas e o Tennessee, enquanto uma projeção exibia a travessia ao vivo do outro lado da fronteira.
Sobre isso, ela também indaga: “Acho que nossa jornada pessoal está conectada com questões mais amplas sobre a vida e o universo, e sobre liberdade. O que é liberdade? E o que significa estar livre enquanto artista e o que nós podemos criar, se estamos completamente livres? Como nós, artistas, podemos nos esforçar para encontrar a nossa linguagem criativa mais honesta? E o que essa liberdade pode trazer para outras pessoas?”.
SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente e fotógrafa.