O moçambicano Ruy Guerra imigrou para o Brasil em 1958, aos 27 anos. Ficou famoso pelos filmes Os cafajestes (1962) e Os fuzis (1964), que ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim. Realizou também filmes como Eréndira (1983) e Kuarup (1989). Como letrista, foi parceiro de compositores como Chico Buarque e Francis Hime. Agora aos 86 anos, foi tema da biografia Ruy Guerra – Paixão escancarada, escrita pela historiadora Vavy Pacheco Borges (Editora Boitempo), e de um documentário chamado O homem que matou John Wayne, dirigido por Bruno Laet e Diogo Oliveira, este, um ex-aluno e atualmente colega de docência na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro.
Nesta entrevista, realizada durante o Festival Aruanda, em João Pessoa, Ruy Guerra fala sobre o cinema político, as inovações estéticas trazidas pelo Cinema Novo, e sobre a paixão pelos musicais norte-americanos. E revela sua esperança na volta da película em 35 milímetros como meio de expressão no cinema.
CONTINENTE Passados mais de 50 anos da realização de filmes como Os fuzis e Os cafajestes, o que sente quando revê essas obras hoje?
RUY GUERRA Quando acaba de fazer, você está tão saturado pelo processo, que não tem postura crítica. Sabe o filme de cor. Você não vê o filme, vê o processo de trabalho. Ele está lá e você não sabe o que é. Eu sempre digo, vamos esperar cinco anos para conversar sobre o filme. Vejo exaustivamente no lançamento e depois não vejo. Vinte anos depois, ver o filme com recuo é quase como se fosse de outra pessoa. Quando começa a esquecer, é um bom momento para ver com certa isenção. Os dois citados são filmes que eu vejo e gosto. Dá para o gasto. Sou generoso comigo mesmo. Claro, há sempre um lado afetivo, do prazer de ter feito. Você nunca é um bom crítico de si mesmo. É uma crítica muito parcial, seja por que motivos forem. Há uns de que gosto mais do que outros. Nunca fiz um filme que não quis fazer. Por isso passei 10 anos sem fazer, porque só apareciam filmes que não me interessavam. Quase cheguei à tentação de fazer uma porcaria só para ter o prazer de filmar. Mas resisti. Não gostar porque você errou a mão faz parte do processo. Agora, saber que não gosta do que vai fazer, acho péssimo.
CONTINENTE Como analisa as mudanças estéticas trazidas pelo Cinema Novo?
RUY GUERRA O Cinema Novo foi muito importante, teve repercussão internacional, grandes diretores declararam a sua influência e admiração. Mudou certos rumos da própria estética e das cinematografias. Claro que, como os grandes deuses do cinema são norte-americanos, o lado colonialista nosso valorizou quando Marin Scorsese declarou que é um apaixonado e causou impacto na sua obra, esse aval ele dá ao Cinema Novo. Werner Herzog e Wim Wenders reconhecem que foi um cinema muito iconoclasta. Revelou-se como uma forma de coragem, mesmo que tenha sido uma forma de inconsciência nossa, que com o tempo se revela uma forma de coragem. Talvez não fôssemos tão corajosos, mas suficientemente convictos de que nosso processo tinha de passar por ali. Fizemos obras irregulares como todas as coisas. Classicismo não é um atributo da arte que surge, mas tinha o vigor que caracterizou o Cinema Novo, a capacidade de inventar, buscar expor e lograr muitas coisas. Tem uma matriz forte, estética, intelectual e linguística. Tenho grande orgulho de ter estado nesse caldeirão.
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