Artigo

Aby Warburg, arte e sobrevivência

Crítico cultural e historiador de arte traz como proposição fundamental do seu pensamento um modo divergente de interpretar o retorno ao paganismo no Renascimento

TEXTO Fábio Andrade

01 de Março de 2018

Warburg faz uma interpretação distinta do conjunto escultório de Laocoonte

Warburg faz uma interpretação distinta do conjunto escultório de Laocoonte

Foto Reprodução

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 207 | março 2018]

Há um trecho
do escritor Thomas Carlyle que sempre me impressionou: “Os que se foram estão ainda aqui; embora ocultos, eles se revelam; embora mortos, ainda falam”. E isso sugere uma pergunta difícil, mas essencial: Qual o significado da morte para as artes? Ela é um tema frequente, porque parte essencial da vida? Mas, se é possível falar da morte de um indivíduo e de muitos através da arte, também será possível falar da morte da e na arte. Como ela morre? O que nela morre? Essas questões obsedaram um dos mais controversos teóricos da arte. Teórico que só agora parece vencer a segura barreira que o racionalismo dos dois últimos séculos impôs através do esquecimento ao seu nome. Tem-se falado de Aby Warburg em muitos lugares. O mais importante: tem-se editado a obra de Warburg.

Um verdadeiro outsider, Warburg foi acometido pela esquizofrenia no auge de suas atividades intelectuais. Foi internado na mesma clínica em que Nietzsche padeceu, porém, foi capaz, negando o destino do filósofo que muito o influenciara, de conquistar seu retorno ao convívio social dando uma palestra sobre a arte e sua conexão ritualística com a religiosidade dos índios pueblos da América do Norte. A preleção convenceu seu médico – importante discípulo de Freud: Ludwig Binswanger – a permitir seu retorno ao mundo dos “sãos”. Mas é menos por sua biografia do que por suas ideias ousadas e pioneiras que Warburg foi marginalizado. Suas ideias foram capazes de influenciar alguns dos principais teóricos da arte no século XX e abalar pressupostos básicos da história da arte.

Será injusto resumir as proposições fundamentais que o pensamento de Warburg nos lança, pois seus desdobramentos são muito variados. No âmbito da história da arte, ele se contrapõe radicalmente àquele que é considerado o “pai” dessa disciplina, o filósofo e teórico alemão Johan Joachin Winckelmann. A ousada atitude de Warburg foi substituir a visão biologicista e historicista de Winckelmann por um modelo cultural e simbólico. Warburg interessava-se pela sobrevivência de temas e motivos artísticos, simbólicos e espirituais que atravessavam os anos, as décadas e os séculos, constituindo-se como verdadeiras presenças fantasmais. Acreditava que – em vez de nascerem, desenvolvendo-se, amadurecendo, declinando e morrendo – os temas, os estilos e os motivos exprimiam um jogo de recorrências, reminiscências, deslocamentos, retornos e obsessões que denunciavam uma lógica pulsional e sintomatológica. Um “eterno retorno” – para usar a expressão de Nietzsche – de elementos artísticos de natureza religiosa e simbólica, dificilmente extinguíveis. Uma espécie de repertório básico e profundo e, por vezes, não facilmente apreensível. Levando-se em conta a força com que o biologicismo e o historicismo atravessam o pensamento e a filosofia do mundo ocidental no final do século XIX, período em que Warburg consolida sua obra, pode-se ter com mais clareza o ímpeto questionador de suas ideias.

O ponto de partida para algumas das mais controversas ideias de Warburg diz respeito justamente ao período do Renascimento. Sua obra mais importante é um conjunto de escritos sob o título A renovação da antiguidade pagã, publicada em 1932. Nela, ele expõe uma leitura completamente oposta à longa tradição interpretativa iniciada por Winckelmann, que observava na arte renascentista e na imersão dela no paganismo a busca por um ideal de serenidade, harmonia e sobriedade. Para essa tradição, o artista renascentista através da imitação (imitatio) – princípio fundamental da estética clássica – alcançava a expressão da beleza eterna e imutável que residia na nobre racionalidade que emanava do mundo antigo. Para Warburg, o que o artista renascentista foi buscar na antiguidade pagã não se tratava de serenidade e harmonia, mas da possibilidade de exprimir, principalmente, dor e movimento. Os renascentistas mergulham no mundo pagão em busca daquilo que Warburg denominou de pathosformeln (“fórmulas de páthos”), padrões gestuais e simbólicos que dariam forma às experiências cruciais vividas sempre pelos homens nas mais variadas épocas.

Um grande exemplo da releitura do Renascimento por Warburg é a interpretação que ele faz do conjunto escultórico de Laocoonte. Wincklemann interpreta essa escultura, redescoberta em Roma em 1506, como uma das mais bem-acabadas expressões da visão austera dos gregos, do racionalismo sereno diante do sofrimento que se materializa na luta de Laocoonte e seus filhos contra as serpentes enviadas pelo deus Apolo para vingar-se de seu antigo sacerdote. Warburg lança uma luz completamente diferente sobre essa escultura; para ele, o jogo de tensões entre as serpentes e os corpos de Laocoonte e seus filhos, os músculos retesados e o movimento dos corpos das serpentes contra a carne talhada no mármore falam de dor e movimento, de uma força humana trágica que se debate contra o sofrimento e a morte. Resgata-se o elemento dionisíaco da arte. É impossível observar esse conjunto escultórico com os mesmos olhos depois da leitura de Warburg. Para ele, os renascentistas foram buscar as “fórmulas de páthos” na antiguidade, não a serenidade que os neoclássicos do século XVIII, como o próprio Winckelmann, tentaram nos fazer acreditar.

Outra propriedade fundamental das imagens da arte figurativa seria aquilo que Warburg definiu como Nachleben (que geralmente tem sido traduzido por “sobrevivência”, ou “vida póstuma”). Marcadas por deslocamentos, rasuras e acumulações de acréscimos e subtrações de toda ordem, as imagens peregrinariam através dos tempos como o retorno do recalcado. Aquilo que, do ponto de vista da psicanálise, retorna para assombrar o sujeito. Mas também é possível falar desse retorno como a possibilidade de conferir sentidos, muitas vezes como coligações e nexos relativamente longínquos, porém enraizados nas estruturas profundas do imaginário.

FIGURA ANDRÓGINA
Tentarei dar um exemplo concreto e relativamente próximo sobre essa noção de sobrevivência das imagens. O festival Rec beat 2017, que ocorreu em fevereiro daquele ano, evento já tradicional no carnaval recifense, dedicado à música pop e ao rock, teve sua identidade visual definida por uma ilustração de Ayodê França que traz uma longevidade do ponto de vista da sobrevivência das imagens que talvez o próprio autor desconheça.

A ilustração nos apresenta uma figura andrógina no centro, traços femininos e brincos, além de bigodes e barba assinalam seu rosto. Com quatro braços, dois levantados e dois abaixados, apresenta seios que são divididos pela barba longa e azul. Essa figura central está ladeada por duas outras figuras dispostas simetricamente também uma de cada lado. Apoiam-se em caixas de som que são prédios que lembram, por sua vez, a arquitetura do casario do Recife Antigo. Essas duas figuras representam a fusão do humano com o animal: uma da cintura pra cima é raposa e humana daí pra baixo. Na outra, esse mesmo esquema se inverte: da cabeça à cintura é humana, e da cintura pra baixo lembra uma raposa. Esse princípio de fusão de contrários pode ser percebido também nas mãos da figura central: a mão do braço direito levantado está fechada, e a esquerda aberta; nos braços abaixados o esquema se inverte. A mão do direito está aberta e a do esquerdo fechada. Evidente que esses elementos periféricos reforçam a fluidez de gênero que domina a figura central, num jogo que esfuma as fronteiras entre o masculino e o feminino. Consciente disso, Ayodê afirma que tentou provocar o público, procurando nessa figura central da ilustração algo que “transcendesse estereótipos de gênero com os quais somos atualmente bombardeados”; pois o que ele procurava representar era “o ser humano para além do óbvio, do nicho, sem gênero, origem ou classe social determinada”.

A partir do princípio de sobrevivência das imagens, segundo Warburg, pode-se reconstituir, até certo ponto, a associação da ilustração com a ancestral e rica iconografia da árvore da vida. Já entre sumérios, acadianos e fenícios sua representação aponta para um princípio de fusão do masculino com o feminino como via para acessar o sagrado. Em geral, a árvore pode ser substituída por uma divindade feminina (Ishtar, Astarte), o que reforça o ponto de vista de que originalmente a mulher ocupava o centro da vida religiosa, embora nosso conhecimento sobre os antigos matriarcados seja ainda muito reduzido. Ora, essa iconografia “pagã” aterrissa na rica iconografia cristã medieval como se vê no quadro do pintor alemão Lucas Cranach (século XVI); mesmo que nele já esteja presente a figura da serpente em sua interpretação judaico-cristã, como entidade opositora ao Deus Jeová.

Um desdobramento posterior do simbolismo da árvore da vida encontra-se na figura de The green man, o Homem Verde. Entidade conectada com a natureza e com o mundo vegetal, muito ligada à cultura dos anglo-saxões, e que muitas vezes é representada como uma figura andrógina também. Numa conhecida imagem, que ilustra uma carta de tarô, alguns dos elementos presentes na árvore da vida aparecem ao lado do Green man, como os animais, nesse caso, o lobo, a coruja e o cervo. Ele e a árvore que aparece em segundo plano formam um contínuo, ambos pertencem à mesma função simbólica de representação da unidade, da fusão de opostos (do masculino com o feminino, do homem com a natureza da qual se exilou).

Vejo na figura central da ilustração de Ayodê França tanto a árvore da vida, como a figura do Green man. O lobo e a coruja também estão presentes de forma deslocada e perifericamente. O lobo se transforma em raposa e a figura com cabeça humana tem algo de pássaro, de coruja na forma como olhos, nariz e cabelos estão apresentados. A encarnação desse princípio simbólico da fusão e da unidade, representado nas religiões não cristãs pela mescla do masculino com o feminino, com valorização inclusive do corpo e da sexualidade como formas de acesso ao divino, parecem acrescentar dados novos à arte que deu forma ao Rec-Beat 2017. Para além de todo conservadorismo e obscurantismo que parecem insistir em repovoar o mundo contemporâneo, a ilustração de Ayodê assume o caráter de uma afirmação do corpo, do desejo e de um equilíbrio, mítico, sagrado e perdido entre os gêneros que o nosso tempo, à sua maneira, põe em pauta.

Warburg é considerado um dos pais da iconologia, ramo que se ocuparia, diferentemente da iconografia, em estudar o conteúdo simbólico das imagens. Esse conteúdo simbólico, partindo das ideias do próprio Warburg, retorna sempre como algo que encanta, assombra e obseda. Mesmo que ignoremos a ponte profunda que nos une aos mortos, continuamos a falar o que eles falaram e a ver o que eles viram. Ao mesmo tempo, a dinâmica de retorno das imagens permite dizer que o que falamos não é exatamente o que eles falaram e o que vemos é também outra coisa. No “eterno retorno” das imagens, passado e presente estão cruzados – vivemos o passado e lembramos o presente.

Os tempos se interpenetram na vida póstuma de que gozam as imagens, numa trama da qual participamos como vítimas e algozes ao mesmo tempo. As imagens surgem para mostrar a espessura das pequenas coisas, dos detalhes e das experiências do nosso tempo não como coisas prestes a se fechar, a terminar, mas como fluxo, corrente impossível de conter, prolongando a experiência da dor, da ruína e da morte; insistindo também na unidade estranha da qual participamos. Na qual, para além do tempo, nos encontramos.

FÁBIO ANDRADE, escritor, poeta e professor de Literatura da UFPE.

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