Entrevista

"Eu não pinto, eu conto história"

Autor e tema do livro 'Dr. Aloizio, profissão palhaço, ou e arrocha negrada', com lançamento este mês, o pintor José de Moura conta seus causos de vida e sua relação com a arte

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO
FOTOS BRENO LAPROVÍTERA, COM COLABORAÇÃO DE GABRIEL LAPROVÍTERA

01 de Março de 2018

O pintor José de Moura entre as obras de seu livro e exposição inspirados no universo do circo

O pintor José de Moura entre as obras de seu livro e exposição inspirados no universo do circo

Foto Breno Laprovítera

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 207 | março 2018]

Antes mesmo
de a gente fazer qualquer pergunta, José de Moura já foi falando: “Minha vida tem cada história interessante… Eu fazia terceiro ano científico e participei de um salão pernambucano de estudantes (jovens artistas). Ganhei um prêmio que tinha direito de ir ao Rio, mas só davam a passagem de ida. Aí, eu fui e passei uma semana. Levei pouco dinheiro, meu pai era pobre, só deu para alugar um quarto de 1m x 2m, que só tinha uma cama. Você abria e já pulava nela. Os quadros, eu botava nos cantos. Aconteceu que o dinheiro foi se acabando e eu comia uma vez por dia, de quatro horas da tarde. Passei uns três, quatro dias desse jeito e foi quando aconteceu a exposição. Rapaz, eu vendi todos os quadros. Ganhei dinheiro pra chuchu! Enrolei num jornal, botei num saco e fui embora. Eu tinha ido de ônibus e voltei de avião. E você não vai acreditar, de lá pra cá, voltei com os olhos fechados de medo”.

Foi a primeira vez que ele voou. Segundo suas contas, isso aconteceu entre 1968 e 1970. De lá para cá, Zé de Moura se tornou professor (de Geometria Descritiva, Arte e Educação Física) e um dos pintores conhecidos da escola figurativa pernambucana, marcante em nossa história, sobretudo dos anos 1960 para cá. Estudou na Escola de Belas Artes, ganhou prêmios e salões, expôs mundo afora e conquistou o seu lugar de artista, ao lado de outros. Seu trabalho e trajetória têm afinidades com pintores como João Câmara e Delano, por exemplo, com quem fundou a famosa Oficina Guaianases de Gravura. Eram os tempos da vocação recifense para os agrupamentos artísticos. Atualmente, ele pinta sozinho, na sua moradia-ateliê em Casa Caiada, Olinda, embora adore uma farra com os amigos e a família.

Foi criado no Bairro do Arruda, no Recife, e por isso já diz logo ser um tricolor convicto. Para o Santa Cruz, fez até um altar na entrada da sua atual casa, onde uma cobra coral de madeira divide espaço com um tapetinho preto, branco e vermelho, outros bibelôs temáticos e um leão de barro (feito por Nuca de Tracunhaém) adornado com um diadema tricolor, em “homenagem” ao Sport. Na mesma casa, viveu com seis mulheres, “mais ou menos”. Uma de cada vez e cada uma delas teve o infortúnio da separação depois que resolveu se mudar para lá. Crônica de uma morte anunciada, para lembrar Gabo. Hoje, tem uma namorada, que mora em Casa Forte e vai para lá nos fins de semana. Com ele, vive em tempo integral o papagaio Lampião. Os quatro filhos estão bem-criados, criando seus netos (seis).

Uma das histórias de sua vida está no lançamento da Cepe Editora deste mês, intitulado Dr. Aloizio, profissão palhaço, ou e arrocha negrada (112 páginas). Além da história-título – uma peça sobre o seu tio e a relação com o circo, escrita em parceria com o dramaturgo Romualdo Lisboa –, o livro faz um apanhado de sua história na pintura e vice-versa, incluindo textos de vários autores e telas de sua exposição no Museu do Estado (em cartaz até abril), ao lado de ilustrações de outros artistas que também estão no livro.

Em seu ateliê de Casa Caiada, ele nos deu a entrevista abaixo, editada a partir de seus inúmeros causos, operados por uma fala cujo hábito é emendar um assunto no outro, indo e voltando, voltando e indo. 

CONTINENTE Quando você teve consciência de que queria usar as tintas para contar história?
JOSÉ DE MOURA Olhe, é uma história da bexiga. Porque eu não pinto, eu conto história e vou contar outra história para você. A minha família é engraçada: metade é de negro e índio, e a outra metade é espanhola e holandesa. É uma mistura danada. Você vai ver na minha família negro preto e louro branco, uns de olhos azuis, outros de olhos pretos. Então, eu tinha uma madrinha que era negra africana, ela veio da África. Se tivesse viva, tinha cento e poucos anos. Madrinha Natécia. Era engraçado, ela comprava as tintas, comprava as telas e mandava eu pintar aquelas besteirinhas. Eu devia ter uns oito, 10 anos. Ela comprava tinta, pincel; tinta ruim, mas comprava. Aí, eu pintava aqueles quadros feios e ela dizia: “Puxa vida, que coisa linda! Quanto é? Eu quero comprar”. Ela comprava todo o material e ainda me incentivava comprando o quadro. Eu dizia: “É tanto”. E ela: “Ah, muito bom, vou comprar”.

CONTINENTE Então foi assim que você começou a pintar?
JOSÉ DE MOURA Foi, foi assim! Quando eu tinha uns 10 anos, fiz concurso para a escola industrial (Liceu Industrial de Pernambuco, atual IFPE). Naquela época, era pior do que vestibular para entrar. Eram 10 mil alunos para escolherem 100. E eu passei na Industrial e não tinha idade para entrar. Só podia entrar com 12 anos e parece que eu tinha 10 ou 11. Aí meu padrinho disse a meu pai: “Dega, você não pode perder isso aí, é o futuro dele”. Porque quem fizesse, naquele tempo, o curso da Industrial era um profissional da melhor qualidade. Maestro Formiga, J. Michiles, Pitelo, um dos grandes músicos, Valter Silva, esse pessoal todinho tocava na Sinfônica e estudou na Industrial. Aí meu padrinho disse para o meu pai: “Dega, aumenta a idade dele, vai lá, tira um registro, tal e tal”. Então, tenho duas idades: uma certa e uma maior. Eu vivo pela maior, porque todo documento meu é pela idade maior. De 1944, mas, na verdade, eu nasci em 1946. Uma é de agosto e a outra, de setembro.

CONTINENTE Mas você nasceu em setembro?
JOSÉ DE MOURA Acho que sim. E eu comemoro pelo negócio de 1944.

CONTINENTE Você diz no livro que pintar é “viver um romance colorido”. Conta isso.
JOSÉ DE MOURA Se você olhar direitinho, tudo que eu pinto é história. Pinto muito em cima de mote e das coisas que vivi. Essa história do meu tio, eu vivi o tempo todo, estava comigo. Eu pintava paisagem, tudo, e quando comecei a incorporar as coisas na minha vida, eu lia muito. Tem um poema de Drummond de Andrade, A santa: “Sem nariz e fazia milagres/ Levávamos alimentos esmolas/ deixávamos tudo à porta/ Mirávamos/ Petrificados/ Por que Deus é tão horrendo no seu infinito amor?”. Lia muito Drummond. Com 15 anos, já tinha lido toda a coleção de Jorge Amado. Drummond de Andrade, Carlos Pena Filho, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira. Então, eu ganhei o salão do Museu do Estado com uma história mais ou menos em torno de Guerra e paz. Eu imaginava isso como se fosse um santo anunciando, ou uma santa, mas o título não era esse, era uma história em cima disso. Era uma guerra e, ao mesmo tempo, uma mudança para a paz. Era um quadro retangular, com uma roda em cima e outra embaixo, uma santa com o Menino Jesus no braço e uma roupa de plástico, porque eu usava muito plástico. A sensação da época era a colagem. E tinha um anjo com uma trombeta num canto e um anjo com um fuzil no outro. Isso foi inspirado no poema de Drummond. Eu fui pintando, pintando e, depois disso, comecei a pintar motes de violeiro, coisas assim, que eu estava vivendo. Por exemplo, essa história do meu tio. É uma série que vou levar ao Museu do Estado. Chama-se Dr. Aloizio, profissão palhaço, ou e arrocha negrada. Aquele grito que o palhaço dá.

CONTINENTE E quem foi tio Aloízio?
JOSÉ DE MOURA Tio Aloízio foi um negão inteligente feito a praga. E um cara cheio de problemas na vida. Ele dizia que o urubu tinha pousado na cabeça dele, porque nada dava certo pra ele. Era irmão da minha mãe. Ele era forte, forte mesmo, e tinha uma série de apelidos: Fandango, Palhaço Fandango, Aloízio Cachacinha, porque ele bebia e morreu bêbado, e tinha o Matou, Matou, Morreu, Morreu. Ele saía quinta ou sexta-feira de Carnaval. Bebia tanto, que era um negócio de você ficar de boca aberta. Segunda-feira de noite (no Carnaval), minha avó preocupada, dizendo que ele estava acabando com a vida, deu um copo de leite pra ele. Ele tomou e ali mesmo, na cadeira, morreu. Só descobriram porque seu Pedro, que era padrinho dele e palhaço também, chegou lá, fantasiado, pra chamá-lo umas sete, seis da manhã. “Vamo, vamo!”, disse seu Pedro balançando tio Aloízio e ele duro. Acho que a gente estava dormindo e ele deu um grito, acordou todo mundo, foi aquela confusão. Quando vimos, ele estava morto mesmo.

CONTINENTE Ele trabalhava no circo?
JOSÉ DE MOURA No final, sim, mas ele trabalhava num banco. Estudou, se formou, mas a vida inteira sendo botado pra trás… Então, pegou o dinheiro do banco e fez o circo. Agora não tem mais disso não, mas antigamente tinha: um circozinho redondo sem a parte de cima, sem a lona. O circo dele era desse.

CONTINENTE Você chegou a frequentar esse circo?
JOSÉ DE MOURA Eu ia! Oxe, eu dançava com Rosita. Era a namorada dele, a bailarina que se dizia espanhola e cantava em espanhol. A turma me empurrava, eu era pequeno… Ela perguntava se alguma pessoa da plateia, algum cavalheiro, queria dançar com ela. Aí a turma, safada, me empurrava, me botava no meio. Esse circo ia pra Campo Grande, Santo Amaro, depois ia pro Arruda… Eles levavam em carroça, que antigamente chamava burro sem rabo. Eles enchiam uma carroça e levavam, armavam o circo. Era um circo só de tomar cachaça. Eles faziam as apresentações, ganhavam dinheiro e o dinheiro era só pra beber. Circo antigamente era uma coisa bem simples, não era como o de hoje, uma coisa muito intelectualizada, sofisticada. O negócio lá era simples, para sorrir. E tinha uma coisa que eu não gosto de falar, porque não posso provar, não tenho retrato, mas Jackson do Pandeiro cantava no circo dele. Por exemplo, eu joguei futebol, no Náutico e no Santa Cruz. A turma diz: “É mentira, mostra o retrato”. Mas eu não tenho retrato daquilo, não posso provar. Joguei no juvenil e deixei pra estudar. Eu era pobre, e pobre tem que estudar para ser alguém. Hoje não, tem chance, mas naquele tempo ganhava o quê? Nada.

CONTINENTE E seu sonho era ser jogador de futebol?
JOSÉ DE MOURA Não, de início meu sonho era ser médico, mas depois eu descobri que tinha, que tenho medo de sangue. Aí desisti de ser médico e fui ser arquiteto. Quando comecei a estudar Arquitetura, vi que detesto linha reta e não gosto de tinta preta. Aí, deixei a Arquitetura e fui ser pintor de belas-artes. Mas, de pintura, sempre gostei. Foi melhor porque, naquela época, arquiteto era filho de papai. Era curso pra rico. E professor, não. Professor você faz o curso e sai ensinando logo. Havia uma necessidade de professor de Geometria Descritiva, que era o “bicho-papão”. E eu era bom, muito bom. Eu aprendi na Escola Técnica, no curso que eu fiz de Arquitetura.

CONTINENTE Você me parece ser um cara inteligente, Zé, que conseguiu tudo que tentou.
JOSÉ DE MOURA Não, sou um cara perseverante. Sou um cara de sorte, Deus está aqui com a mão na minha cabeça. Tem tanta gente talentosa que não chega em nada. Tem muita gente boa, precisando de uma chance, e não tem essa chance. Então, sou um cara de sorte.

CONTINENTE Como foi sua infância?
JOSÉ DE MOURA Por incrível que pareça, fui uma criança mais do que feliz. Meu pai era um cara pobre, minha mãe também, semianalfabetos, mas eram fora de série. Aliás, toda a minha família. Meus irmãos não são ricos, mas quando a gente se encontra, você diz assim: “Puxa vida, aquela família é milionária”. Todo mundo é sorrindo, é festa o tempo todo.

CONTINENTE Você se sente realizado como pintor?
JOSÉ DE MOURA Não, como pintor, eu estou pintando. Eu não sei, estou pintando ainda, né? Não sei se sou realizado, se não sou, sei que pinto e gosto de pintar.

CONTINENTE E se não tivesse sido professor e pintor, teria sido o quê?
JOSÉ DE MOURA Teria sido pintor e professor de novo, infelizmente. Olhe, eu fiquei lisinho. Cheguei agora da Europa. E o pessoal comprou roupa, relógio, perfume… E eu comprei tinta. “Mas, rapaz, tu é doido, vai gastar teu dinheiro todinho em tinta?”, perguntaram. “Eu gosto de pintar, rapaz. Tu gosta de botar perfume em roupa e eu gosto de pintar.”

CONTINENTE A gente assistiu a uma série de mudanças na história, as pessoas passaram a usar de tudo para fazer arte. Você acha que pintura vai existir para sempre na humanidade?
JOSÉ DE MOURA Vai. Agora tem uma coisa que eu vejo: pintura é um objetivo que você tem à frente, de sempre ir buscando. Muitas pessoas não têm esse ideal, começam pintando uma coisa, amanhã outra. Não, desde que comecei, pinto figurativo. Não me preocupo, não. Vim agora de lá (da Europa) e fui a museus, galerias na Itália, Espanha, Portugal, Inglaterra, França, vi mil coisas diferentes. Eu continuo pintando. Aquilo ali é bom para mim, para acumular experiência, técnicas, mil coisas, mas eu nasci em Pernambuco, eu vivo Pernambuco. Eu pinto muito mote da gente, até meio intelectualizado porque estudei pintura, todas as técnicas, então uso isso. Mas meu trabalho é uma coisa bem raiz, bem nossa, bem da terra mesmo.

CONTINENTE No livro, há dois textos de Ariano Suassuna. Um deles, a apresentação, bem recente. Conta essa história.
JOSÉ DE MOURA Ariano fez a primeira apresentação sobre o meu trabalho em 1970. Aí eu mostrei esse livro uma vez e ele disse: “Quando você escrever, a apresentação sou eu que faço”. Foi o último texto que Ariano escreveu. Foi quando ele adoeceu e eu não sabia. Falei com Dantas (Suassuna, filho de Ariano) que estava com o livro para ele fazer a apresentação. “Zé, ele foi internado”, ele me disse. Aí eu: “Deixa pra lá”. No outro dia, ele me ligou dizendo que eu podia mandar que ele ia escrever. “Ele tá no quarto, não tá na UTI mais não”. Entreguei a ele e, uns cinco dias depois, ele me devolveu. Acho que cinco, 10 dias depois, Ariano morreu.

CONTINENTE Como você conheceu Ariano?
JOSÉ DE MOURA Eu era professor do Americano Batista e os filhos do Mestre Ariano eram alunos do colégio. E ele também, como os filhos, tinha sido aluno do Americano Batista. Eu dava aula de Geometria Descritiva e Arte aos filhos dele. Uma das vezes, ele foi lá, e Manuel, que chamam Dantas, e os demais me apresentaram a ele, aí ficou meu amigo. Ele veio aqui em casa, olhou os quadros, conversou, escreveu… Depois de um tempo, escreveu outro texto. Eu ia para lá (na casa dele) conversar, gosto de escutar histórias.

CONTINENTE E João Câmara? Qual a importância dele na sua vida e em sua obra?
JOSÉ DE MOURA Olhe, ele é uma pessoa a quem eu devo muito. Ele escrevia para um jornal, não sei qual. Aí, ele viu o cara que ganhou o prêmio do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e viu onde morava. Era 1968. Estou eu em casa e chega um cara: “Quero falar com Zé de Moura”. Então, eu estava lá de calção e sem camisa, ele disse isso e eu respondi: “Sou eu”. Eu era magro, bem magrinho, cara de menino, e ele disse: “Não, estou querendo falar com Zé de Moura, não é você não”. Eu disse: “Sou eu”. “Você é um menino, rapaz”. “Mas sou eu mesmo”. Ele disse: “Foi você quem ganhou um prêmio?”. “Foooi.” Aí ele disse: “Eu vim fazer uma entrevista com você e eu moro aqui pertinho, na Rua Guaianases”. Olha, Câmara ainda morava na Guaianases! E ele disse: “Apareça lá, o endereço é esse. E tem uma novidade: eu comprei uma prensa litográfica e estou começando a fazer experiências com litografia”. Eu não sabia nem o que era aquilo, mas fui. Quando cheguei lá, comecei conversando e tal, e ele explicou: “Isso aqui é uma pedra litográfica e ela é desenhada com gordura. Faz um desenho aí”. Fiz um desenho, ajeitei, negócio de duas, três horas, e a gente preparou e viu como ficou. Ele tirou a gravura e eu disse: “Rapaz, que coisa interessante”. Aí ele me chamou para ficar lá com ele. Era Câmara e Delano, o mago, que era muito amigo. E nós três fazíamos isso. Eu chamo a mãe dele (de Câmara) de mamãe Noêmia, porque ela dizia assim: “Eu tenho três filhos gerados e o filho do coração que é você”. Então eu comecei a frequentar o ateliê dele, a desenhar, a fazer as coisas lá, as litografias e foi chegando gente. Parece que foi chegando depois José Carlos Vianna, Roberto Lúcio, Francisco Neves, Liliane Dardot, menino Gil, Gil Vicente, foi chegando o pessoal e formamos um grupo.

CONTINENTE E assim foi fundada a famosa Oficina Guaianases.
JOSÉ DE MOURA Foi. O primeiro presidente foi José Carlos Vianna e o segundo fui eu. Um ano era um, um ano era outro. E a gente ficou alternando. Depois foi chegando gente demais e tudo que entra gente demais se estraga, se acaba. Aí começou gentinha a jogar veneno… Acabou. Depois, continuei amigo de Câmara, ia pra casa dele, almoçava lá, conversava, pintava. Até hoje, de vez em quando, eu ligo pra ele, ou ele liga pra mim. Diz assim: “Zé, tás fazendo alguma coisa? Vem pra cá pra gente conversar”. Então, vou ao ateliê dele e a gente passa a manhã todinha conversando. Mas o único coletivo de que eu participei foi o Guaianases. Depois, nada.

CONTINENTE Mas você parece ter uma boa relação com os artistas.
JOSÉ DE MOURA Ah, sim, com todos os artistas. Eu sou amigo, só faço elogiar, não critico ninguém, aceito a pessoa como ela é, gosto de todo mundo e vivo sem me preocupar com a vida de ninguém. É tranquilo.

CONTINENTE É interessante que esse grupo inicial da Guaianases – você, Câmara e Delano – tem uma semelhança estética nos trabalhos. Você vê essa influência?
JOSÉ DE MOURA Olhe, quer que eu lhe diga uma coisa? Na vida, o que não tem influência? Tudo na vida tem influência. O homem pinta o que viu. O homem da caverna foi o primeiro a inventar, com tinta, sangue. Se você olhar o Renascimento, você confunde quem é quem. Se olhar o Barroco, a obra de um é a obra de outro, pouquíssimos se sobressaem. (No Renascimento) Tem Leonardo da Vinci, Michelangelo, o resto é um caminhão de japonês. Talvez Bosch, mas se você olhar Bruegel, Bosch, olhar não sei quem, você vê quase tudo a mesma coisa. O Modernismo, mesmo, é uma coisa em cima da outra, eu acho. Influência de tudo. Cézanne deixou as paisagens, as frutas, tudo que ele pintava, um tanto geométricas. O que aconteceu? Braque veio e transformou numa coisa mais geométrica ainda. Picasso viu e mais geométrico ainda. E hoje tem milhões de pessoas tirando partido daquilo e fazendo. Eu tenho influência de tudo. De música, de artista que pinta, tudo influencia. Sou um cara que absorvo tudo, mas faço tudo da maneira que eu gosto e quero. Não faço nada porque o outro fez bonito. Se fosse assim, estava pintando abstrato. Um bocado de gente que começou comigo está pintando abstrato. Eu não, pinto as coisas de que eu gosto, da maneira que eu gosto e com as cores de que eu gosto.

CONTINENTE Você gosta de olhar seus quadros?
JOSÉ DE MOURA Gosto, e muito! Tenho alguns amigos que têm quadros meus, de 10, 20 anos atrás. Às vezes, quando chego que olho, digo: “Rapaz, quem foi o gênio que pintou isso?”. Sem brincadeira, eu digo: “Puxa vida, fui eu que pintei? Fui eu não”.

CONTINENTE Em um dos textos de João Câmara do livro, ele diz assim: “Meu amigo Caetano, que vende tintas, nunca riu tanto. Passou o tempo em que se percorriam os quilômetros das bienais para ler as legendas conceituais de algumas fotos ou gestos”. O que você acha da arte contemporânea?
JOSÉ DE MOURA Eu acho muito boa, mas eu gosto do que se trabalha… Eu não gosto de falar muito não, aquilo que disse: não critico nada. Eu gosto, não quero brigar com ninguém, eu gosto. Eu costumo ir para a Bienal (de São Paulo)…

CONTINENTE Nunca teve vontade de fazer uma instalação, trabalhar com outro suporte?
JOSÉ DE MOURA Não, nunca na minha vida.

CONTINENTE Mas, no início de sua carreira, você disse que gostava de usar plástico e colagem, porque era o que tinha de moderno, era só o que se usava.
JOSÉ DE MOURA Era, eu usava plástico, pedra, bonecos, corneta. Mas deixei de usar, porque eu estava experimentando para ver o que eu queria fazer mesmo. Tudo é uma sequência, o que existe é um aprimoramento das coisas que eu venho fazendo.

CONTINENTE Você falou que seu livro seria dividido nas 14 estações de Cristo, me mostrou essas imagens que lembram o Santo Sudário e sua casa tem muitos santos. Você é muito religioso?
JOSÉ DE MOURA Sou, mas nem tanto. Veja bem, sou a pessoa que tem a maior fé. Estou com a música de Gilberto Gil: “Andar com fé eu vou,/ que a fé não costuma falhar”. Eu acredito em Deus. Minha mãe era católica, mas tinha um terreiro que chamam de candomblé lá pertinho de casa. A gente ia. Eu fui coroinha da igreja, mas ia ver aquela coisa do candomblé, ficava lá olhando, aquelas danças, aquelas coisas todas. Se tiver Deus, eu tô dentro.

OLÍVIA MINDÊLO é jornalista e editora da Continente Online

veja também

Criação em foco

Mario Vale

Os dias seguintes