Portfólio

Mestre Abias

Em diálogo com a natureza

TEXTO EDUARDO MONTENEGRO
FOTOS PRISCILLA BUHR

01 de Fevereiro de 2018

Escultura de Mestre Abias

Escultura de Mestre Abias

Foto Priscilla Buhr

No momento do salto, ela foi apreendida. Suspensa no ar, olha para a base sobre a qual se apoia. Quase nada, quase nenhum elemento, e há ali gesto e movimento. Os braços erguidos anunciam sua delicadeza, enquanto seu rosto se inclina, como quem não quer perder a concentração. Essa bailarina, de simples pedaços de gravetos e pedaços de madeira, foi imaginada e lapidada pelo Mestre Abias de Igarassu.

Suas mãos cheias de calos já estão ocupadas desde os primeiros raios da manhã, que penetram as copas das árvores de seu sítio sem grades, sem cercas e sem muralhas. Não há separação entre o artesão e sua fonte, a natureza circundante, exceto pelas paredes de sua casa de tijolos. Ali ele vive com sua esposa e sua mãe. Sua rotina se repete, sem reclamações: Abias seleciona os galhos encontrados no chão, que foram cortados e arrancados por outras pessoas. “Aproveito o que o pessoal corta, arranca; eu não gosto de cortar nada.”

“Meu sítio é assim, só mato. Eu podo os galhinhos, esses pedaços assim eu colho. Já uma raiz grande, como aquela, que é raiz morta, eu aproveito e reciclo, sem agredir a natureza”, conta o artista, apontando para uma raiz depositada no espaçoso jardim do seu sítio. A peça, bela e retorcida, poderia ser facilmente identificada como uma escultura, caso estivesse dentro de museus ou galerias.

Abias não faz distinção entre as espécies de árvores que utiliza para criar suas esculturas, no entanto, é comum que trabalhe com galhos de cajueiro e de mangueira, sendo esta uma das árvores que cresce muito próxima à sua casa. Ele nomeia suas obras como “arte no galho”, dando a entender que não as constrói apenas a partir dos galhos, mas que acrescenta sentido, forma e movimento ao que é próprio da madeira. Nas suas caminhadas, dependendo do que encontra, visualiza mentalmente o que pode construir com aquilo; noutros casos, apenas colhe e guarda no terraço de sua casa que, aliás, é abarrotado de objetos construídos e pedaços de madeira, de todos os tamanhos, muitos recém-colhidos na mata. “Costumo dizer que já encontro o meu trabalho pronto. Vejo, dou uns cortes, mas eu gosto da forma da natureza, como se ela estivesse ali, ainda. Ela está ali, a forma dela está ali, eu só vou acrescentar umas coisas. Pra mim, a natureza não morreu, o galho continua ali”, explica o mestre.



O modus operandi de Abias se assemelha ao trabalho de José Bezerra, de Buíque. Suas esculturas em madeira se parecem não somente do ponto de vista estético – ainda que as peças de José Bezerra sejam mais rústicas –, mas também pelo método de recolha da matéria-prima. Ao modo de Abias, Bezerra costuma observar nos galhos e nas pedras o que pode se criar dali, muitas vezes já visualizando o produto final.

Tudo o que Mestre Abias lapida, como a citada bailarina, é inspirado em suas experiências da juventude, de sua infância: cria pelas referências, pela vivência, tomando inspiração no ambiente que o cerca. É nisso que as obras dos mestres se enlaçam: além de utilizar os galhos do entorno, Abias e Bezerra acessam suas memórias para observar, na matéria bruta, o que podem construir. É a partir desse processo que suas obras se tocam.

Esse modo de trabalho tem a ver com começos. José Abias, hoje aos 50 anos, começou a construir seus bonecos na infância. Conta que, na época, sua mãe não tinha condições de comprar brinquedos, então, ele mesmo os confeccionava, a partir de diversos materiais, como latas, garrafas plásticas e madeiras: “Tudo em que eu botava na mão, eu transformava”. Mesmo antes de viver da sua arte, Abias criava objetos e os dava de presente para conhecidos. Exerceu diversos ofícios na sua vida, foi vigilante, operário de fábrica, garçom, sempre encontrando nos intervalos e nas folgas uma brecha para lapidar.



“Abias, tu num és artista? Toma esse galho aí!”, foi o desafio proposto por um de seus amigos, jogando-lhe um pedaço de pau qualquer. E ele aceitou. “Trouxe pra cá, fiquei com ele na mão e fiquei pensando. Daí, eu fiz um passista. Foi daí que veio esse trabalho. E não parei mais. Isso foi em 2005, 2006, faz um tempo. Desde então, só trabalho com galho”, conta Abias.

Eis que a bailarina – agora iluminada pelo conhecimento de sua história ancestral – sai do palco, agradece aos espectadores com graciosidade, e dá espaço para que outras atrações ocupem o lugar.

***

Sobem à cena três rapazes da roça, vestidos de calças e camisas de botão, carregando um tamborete, uma sanfona e um triângulo. Junto com o trio, surge um casal, uma moça e um rapaz… parecem enamorados… Na nossa imaginação, instigada pelos movimentos dos brincantes de madeira, a música começa a tocar, um forró pé de serra, e tem início uma animada dança… Assim, deixando que a criatividade nos transporte, assistimos ao trio de capoeiristas, rodopiando e lutando, ao som do berimbau.

Segundo Mestre Abias, os bonecos que mais gosta de criar são juntamente aqueles que possuem alguma referência aos seus tempos de menino, como as bailarinas, as festas de forró, os animais que via, os bichos da natureza. É seu projeto de vida – ainda que não explicitado, mas entrevisto no seu depoimento –, projetar a própria história na madeira. Seria exagero afirmar que ele está colocando sua biografia no que faz? Decerto que não. Porque é possível apreender um tanto da sua experiência observando o que ele cria, as relações que se estabelecem entre presente e passado em suas narrativas e na conversa receptiva que ele estabelece com seus interlocutores em sua casa-ateliê.



Um aspecto caro à obra de Mestre Abias é a sofisticação com que manipula elementos da tradição e formas da modernidade. Se observarmos que ele se apropria do manejo da madeira do mesmo modo como tantos artesãos e artistas que o antecederam – desde os povos primitivos, que se apropriavam da natureza para produzir, armas, adornos e utensílios – e chega a formas sintéticas, tão próprias da modernidade, vemos que suas esculturas econômicas realizam com simplicidade essa junção entre o passado e o presente, entre o figurativo e o abstrato.

O modo peculiar com que suas esculturas são construídas, as fisionomias não detectáveis, a espacialidade e o diálogo entre a forma dada pela natureza e a que o artista encontra na manipulação e construção de objetos nos levam a referências como a obra de Frans Krajcberg (1921–2017). O artista polonês, que se naturalizou brasileiro nos anos 1950, a partir de 1964, começou a utilizar madeira de cedro para criar suas esculturas, viajando para a Amazônia, por exemplo, não somente para colher os galhos, mas para denunciar os desmatamentos. Embora distintas em inúmeros aspectos e mesmo na sua complexidade, as obras de Krajcberg e Abias se aproximam no sentido da preservação da natureza e na tendência à abstração.



Sob a luz da arte abstrata, a obra de Mestre Abias de Igarassu, suas intervenções na madeira encontrada distinguem-se daquelas realizadas por outros artistas nordestinos que também utilizam a madeira como base para a arte. Vejamos alguns exemplos, observemos as famosas carrancas. Nessa arte figurativa, temos hoje em Bitinho, de Petrolina, um dos nomes mais significativos na sua produção. É um tipo de arte antiga, pois vem sendo esculpida há várias gerações: há relatos da construção de carrancas desse tipo nas embarcações comerciais que navegavam o Rio São Francisco durante o século XIX.

A partir da década de 1970, a produção de Bitinho mudou da carranca para santos católicos, e se insere no importante acervo de arte sacra popular brasileira, que remonta ao período barroco. Ao lado de sua produção, na região do São Francisco, temos a produção destacada de Roque Santeiro, discípulo de Bitinho, que assim ficou conhecido por esculpir santos católicos (daí o “santeiro”), embora, antes também, tenha sido carranqueiro. Ainda no que diz respeito à produção de esculturas em madeira de caráter religioso, há a produção do baiano João, Filho do Louco, que produz peças diferenciadas dos orixás africanos.

Mesmo no modo tradicional de esculpir a madeira, outros artistas também se diferenciam pela peculiaridade de seus trabalhos, como Doidão Bahia, de Cachoeira. Seus personagens na madeira são atípicos: formas humanas, rostos e faces, que se entrelaçam e se agrupam num único tronco, ou um Cristo crucificado de madeira, com os braços maiores que o seu corpo. Segundo o livro Nova fase da Lua, de Flávia Martins, Rogério Luz e Pedro belchior, Doidão Bahia recebeu esse apelido porque, certo dia, enquanto estava expondo no meio da rua, junto com amigos, uma freira passou e aconselhou seus alunos a não tocarem naquelas obras, pois “eram coisas de louco”.

A obra de Mestre Abias, por fim, revela-se singular dentre a de outros escultores contemporâneos. Não somente por lapidar elementos do cotidiano, mas também por sua técnica e maneira de tratar a matéria-prima. Quando perguntado sobre o motivo de continuar a exercer seu ofício no meio do mato, servindo-se daquilo que a natureza descarta, o mestre de Igarassu responde que retira suas forças da natureza: ela é sua amiga inseparável, com quem sempre pode contar. “Não me vejo mais fora da arte. Sou apaixonado pela arte, faço porque gosto e também pela minha família.” 

EDUARDO MONTENEGRO, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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