Ao adotar o boi como ponto de partida para revestir suas obras, Joaquim opta por uma operação estético-ético-conceitual, uma matemática de cálculo lento e solução sofisticada: ausência de linearidade e verossimilhança, personagens tipificados, objetos animados, figuras zoomórficas, seres fantásticos, sons não verbais, amplitude e diversidade espacial, ritmos complexos, a finitude e a transitoriedade, velamento, desvelamento, enfim, um sonho ou um pesadelo como O grande teatro do mundo, de Calderón, como A tempestade, de Shakespeare, como O sonho, de Strindberg, ou como a magia acrobática da Ópera de Pequim, como o teatro balinês, como o bunraku, o kabuki e o nô japoneses. Como os nôs modernos de Yukio Mishima, ou, ainda, como a Alma boa de Setsuan, de Brecht.
Através dos seus bois, Joaquim coloca em poesia de alta qualidade teatral as questões básicas do ser humano e da coletividade: existir, ser e estar no mundo, relacionar-se, revoltar-se, desistir e persistir, comer e morrer de fome, sobreviver com terra ou sem terra, com muito e pouco amor, com tristeza e alegria, enganando e sendo enganado, com esperança na desesperança, trabalhando, brincando, dançando, falando, cantando e caminhando. Um teatro sem-terra, nômade, teatro dos caminhos, dos terreiros, quintais, praças e feiras. Um teatro que é uma grande jornada que se conclui numa nova partida. Assim é em O coronel de Macambira , em De uma noite de festa e em Marechal, boi de carro. Esses bois nunca terminam, pois também nunca começam. É um círculo em constante movimento, num vaivém que empurra a caminhada, quadro a quadro, passo a passo, dia e noite, numa profusão mirabolante de assuntos e formas.
A transfiguração poética que Joaquim Cardozo realiza, ao construir o seu O coronel de Macambira, toma como paradigma o bumba meu boi do capitão Antônio Pereira, coligido por Ascenso Ferreira e publicado na revista Arquivos, da Prefeitura da Cidade do Recife, em 1944. Ele acrescenta a essa matriz escrita suas memórias de público de boi e os tipos populares que foi conhecendo ao longo de sua vida. Como experimento inicial, esse boi ainda está muito contaminado pela matriz folclórica. Estrutura-se em dois quadros, aproveita grande parte dos tipos de personagem do bumba popular, procedimento que irá se alterar profundamente nos bumbas publicados posteriormente. No entanto, Cardozo, já na sua primeira peça, busca retomar um aspecto perdido no bumba folclórico: recoloca o boi como motivo principal de todo o enredo, composto de fragmentos, e introduz várias figuras que denominamos personagens – morte, espécies de fantasmas ou duplos, sendo que dois deles passam a formar com o boi a tríade de personagens centrais e portadores da esperança em dias melhores para o Brasil: a aeromoça e o soldado da coluna.
O boi é teatro dentro do teatro; a fábula é constituída de fábulas que ajudam a passagem do tempo e fornecem pistas ou dificultam a busca do boi; os quadros se dispõem como barracas de uma feira livre. O público é solicitado a entrar e a sair de cada nova situação criada, conscientemente. Juntamente com as cantadeiras, os números de dança e mímica, acentuando as situações ou criando novas interpretações, além de confrontar linguagens diversas, propiciam um tipo de distanciamento crítico tanto naqueles que agem em cena, como nos que participam como testemunha do ato teatral.
Um aviso de morte pode ser uma forma de ler O coronel de Macambira; uma denúncia; uma resposta à improvável pergunta a partir do título: quem matou o boi?
No campo de forças contrárias instaurado no bumba, o autor escolhe justamente o opositor para nomear a peça. A preposição de, presente em todos os títulos dos bois, desempenha ambíguas relações. Entre elas, a de naturalidade, propriedade e matéria. No primeiro e segundo casos, o coronel é natural e proprietário da Fazenda Macambira. Na relação material o efeito é cômico, irônico, crítico, ou seja, esse coronel é feito de macambira; possui as características da planta macambira, quais sejam: rigidez, espinhenta, sem valor nutritivo, embora o sertanejo, em época de seca, faminto, recorra às suas folhas e as transforme em pão.
O povo, o boi e até a região estão sob o comando dessa assustadora figura do poder cujas marcas impressas na história do Brasil ainda não foram totalmente apagadas.
Se o coronelismo, historicamente, foi ultrapassado, ou maldisfarçado por outras máscaras mais “modernas”, restam o fantasma (o duplo?) e os seus desdobramentos imaginários. É com essa figura de morte, vilão do bumba, que Cardozo denuncia, zomba e batiza seu primeiro bumba meu boi. Nele, como se verá, o autor atacará, sem piedade, as elites salvacionistas do Nordeste e seus grandiosos projetos em prol delas mesmas, embora destilem uma retórica populista.
Enquanto caminham em busca do boi malhado, a fim de evitar sua morte, o capitão, Mateus, Bastião e Catirina encontram muitos nordestes e muitos brasis.
Auscultando o chão, Bastião escuta-vê a terra girando, o estalo de uma semente ao nascer, uma roda de engenho, uma acirrada discussão de poetas, a demagogia dos políticos, a gula de um padre, um menino que chora, um acalanto, a oração de uma velhinha, o diálogo dos passarinhos, um boi que vem desgarrado.
Em Cardozo, o Brasil que vem é esse boi desgarrado; um comandado; a patente mais baixa da hierarquia militar. Enfim, esse Brasil que vem e que chega é o fantasma dele mesmo; duplo dos brasileiros, sobretudo daqueles marcados pela diferença, e que a elite estigmatiza por meio de designações, também reproduzidas pelos subalternos, tais como: ordinários, ruins, feios, caipiras, desprezíveis, vagabundos.
É por essa estigmatização que o soldado da coluna se apresenta em O coronel de Macambira. Soldado raso, escuro, pobre, desconhecido; de memória encoberta, como já havia entrado no poema Os anjos da paz, também configurado como duplo, integrante do primeiro livro do autor, editado em 1947.
O soldado da “grande marcha” atua em seu monólogo como uma testemunha participante do processo de guerra de movimento, que executa em sua luta uma panorâmica e dinâmica percepção da situação oprimida do povo. O soldado ouve, vê e sente as vozes dos silêncios, a claridade das trevas, a grande dor das alegrias dos deserdados que, como ele, caminham na periferia da história.
Em O coronel de Macambira, o autor constrói uma cadeia de significados na qual o soldado está para o boi malhado, que está para o povo, que está para o Brasil, que é perseguido, mais visivelmente, pelo coronel. Porém, a dimensão cósmica do soldado o integra no universo dos paradoxos, das contradições, em que subir é descer, descer é elevar: “Subindo do chão me arranco / Descendo encontro as estrelas”.
Ler O coronel de Macambira numa perspectiva que se afaste do pitoresco, do localismo, do exótico, que por muitas vezes tentam rotular esse ainda atual testemunho de nossa cultura e sociedade desnudadas, é um desafio para todos nós.
Aqui, o dramaturgo-poeta encontra a forma mais bem- arquitetada, calculada e construída dos seus bumbas: três dimensões denominadas quadros, constituídos de vários fragmentos independentes; aprofundamento dos assuntos, e criação de personagens que vai se fazendo mais original, numa comovente teatralidade, fruto de uma transfiguração poética inédita na dramaturgia brasileira.
Em De uma noite de festa já não existem nem animais nem fantásticos construídos à semelhança daqueles da matriz folclórica utilizada por Cardozo para compor seu primeiro bumba meu boi. Os animais nesse boi têm fala, o que não ocorre no bumba popular, e estão todos inseridos num plano onírico, a saber, no segundo quadro, o sonho de Bastião.
Os quadros da peça comportam um microcosmo de ações, imagens, temas, palavras, versos, sonoridades, danças especiais, mímicas e cantigas. São, enfim, pequenas peças dentro do todo da obra. Como tais, comportam ainda uma síntese em palavras, em dimensões, em perspectivas que informam o núcleo de forças dos bumbas.
O primeiro quadro estabelece uma perspectiva da realidade; o segundo, uma perspectiva onírica e o terceiro, uma síntese conflituosa entre o mágico, que tende a povoar todos os quadros, o real e o onírico, catalisados pelas cerimônias fúnebres.
Destaca-se das características modernas do texto teatral cardoziano a constante utilização das linguagens e dos experimentos cênicos: os mamulengos, a língua das siglas; a orquestração de risos e risadas; a utilização de recursos eletrônicos; as coreografias das danças particulares; recursos semelhantes à montagem cinematográfica, numa profusa cadeia intersemiótica. O minucioso cuidado em construir a cena por meio da escrita, das poéticas coordenadas cênicas, é um dos indicativos que coloca Cardozo no mesmo patamar dos grandes dramaturgos contemporâneos, do quilate de um Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Jean Genet, Harold Pinter, David Mamet, Sam Shepard, Edward Albee, cujas didascálias denunciam o encenador escritor ou o escritor encenador.
Esse boi é proveniente de uma noite. Os assuntos brotam da noite e da festa, indicativos do espírito criativo. No título, encontramos uma circularidade elástica: a palavra festa pode se ligar à preposição inicial, fechando o círculo – (de uma noite de festa de uma...). A elasticidade está ligada aos valores semânticos de noite e de festa. Esses valores ampliam ou reduzem as dimensões do círculo, similar à elasticidade do espaço cênico do boi que, determinado pelo público ao seu redor, se alarga ou se reduz dependendo da cena. Para além da festa de Natal em Nazaré, há a festa que é o próprio bumba meu boi a se realizar percorrendo toda a noite. Assim como o jogo teatral, essa festa é a oportunidade para a subversão que se desenrola na noite, geradora do sono e da morte, dos sonhos e das angústias, da ternura e do engano.
A grande máscara zoomórfica do boi construído por Cardozo não é apenas a do importante animal do universo rural, mas outra máscara, outro símbolo de prosperidade que também precisa ser desvelado, desnudado, para compreendermos que debaixo dessa estrutura material (armação revestida de tecido e enfeites; simulacro de boi) só existe o indivíduo, com sua força de trabalho e seu poder criativo.
Este bumba esclarece de saída o caráter ambíguo do texto. Todo o universo de encontros, desencontros, buscas, desmascaramentos, jogos de vida e de morte estão antes ou depois do título. Eles se encontram na zona imaginária da noite de festa, da noite e da festa; por extensão, do teatro.
O mais “rurbano”, mais complexo e poético dos bumbas cardozianos, De uma noite de festa, é o território imaginário de fronteiras arbitrárias onde o autor determina o solo cultural, a topografia das possibilidades de realização da ação dramática, em estilhaços. Um dos seus intentos é, por meio da linguagem teatral, poetizar uma região povoada de magia e violência, de sabedoria e desigualdade, de belas praias e áridos sertões. E o mais importante: poetizar e questionar, criticamente, uma região onde se perpetua uma dominação sociocultural e política, revestida pelos velhos discursos das elites. Esse poetizar investe em outras construções imagético-discursivas.
O poeta ainda inventa uma categoria especial de personagens que são máscaras sobre máscaras: umas mais próximas da realidade imediata como se pode verificar nos outros bumbas; algumas mais poéticas, duplos ou alegorias, como os três Reis Magos, a Virgem Maria, o poeta, o brinquedo de esconder, palhaço, rei de baralho, cavalo de carrossel e Judas de Sábado de Aleluia.
Cavalo de carrossel, rei de baralho, palhaço, brinquedo de esconder e poeta assemelham-se, do ponto de vista da forma e da função no enredo, às personagens de Lewis Carroll, em seus livros sobre Alice. Curiosamente, Carroll, tal qual Cardozo, era um matemático que incorporava a matemática e alguns conceitos das lógicas simbólicas às suas criações poéticas, inclusive alguns processos e experimentos da topologia geométrica.
O primeiro diálogo, ou prólogo, de De uma noite de festa, entabulado por dois homens, o velho (prudente) e o novo (valente), desvenda o tema profundo desse boi: a morte enlaçada com a vida e a vida separada da morte; a vida expondo-se ao risco de morte; a morte imprimindo seus sinais de vida.
Dos muitos encontros que ocorrem no primeiro quadro da peça, tem especial relevo o fragmento composto pelos mamulengos Sunab, Ipase, Dasp e DNOCS que fazem uso unicamente de uma linguagem de siglas. Esses importantes e monstruosos mamulengos também se dirigem à Missa de Natal, mascarados por siglas e armados com os instrumentos que representam abastecimento alimentar, controle do serviço público, obras contra as secas, assistência e previdência social. Irônica presença, a desses mamulengos, no espaço humano onde pulula a ausência da ação desses mesmos personagens.
A monstruosidade e a deformação dos bonecos ligam-se à deformação dos organismos, departamentos e superintendências governamentais, privados, nacionais, multinacionais e internacionais.
O arranjo poético-teatral, experiência de linguagens na cena, está contaminado com um desnudamento: a inflação de organizações voltadas para o bem-estar e a garantia dos direitos e deveres democráticos de um povo, mas que, na maioria das vezes, possuem uma ação ineficiente. O riso que pode provocar o efeito fonético, indecifrável, produzido pela forma siglada é o mesmo do efeito social que as siglas provocam.
Para além de todo esse complexo que envolve as siglas, e dos valores estéticos que Cardozo consegue extrair de sua criação, existem outras preocupações que estão na raiz do seu teatro: o ser humano, sua cultura e seus problemas. Em face de tantas instituições, de tanta burocracia criada para o bem e o cultivo do progresso humano, da civilização, como se justificam o atraso, a vida por um fio, a pobreza extremada, a fome que tudo aniquila, a violência que tudo destrói, o trabalho inexistente, a ausência de terra para cultivar? Na fonte de tantas siglas, transfiguradas em língua e linguagem, estão o esforço e o não esforço humano para resolver os enormes problemas do chão e do planeta, do caminho, do caminhar e do caminhante, da vida e da morte.
A região Nordeste do Brasil aprofunda seus males e seu subdesenvolvimento com e apesar da Sudene. Os problemas relativos à seca, ou à indústria da seca, crescem a pleno vapor contra um departamento nacional que em si, aglutinando substantivo e função, é contra as secas: o Denocs. A pomposa Unesco não dá conta dos graves problemas educacionais, científicos e culturais das nações ditas unidas.
Numa contundente sintonia com a história dos deserdados que resistiram à fúria da oficialidade no conflito em terras pernambucanas, no século XIX, que ficou conhecido como Guerra dos Cabanos, o autor ergue um fragmento composto por personagens que são pedaços pulsantes de terra. Nesse fragmento, todas as falas dos cabanos são respostas poéticas às indagações do capitão, único personagem que com eles mantém contato. Respostas também para a sociedade e para a história oficial dos vencedores. Vozes que são a ressurgência de uma história por muito tempo amordaçada em alguns ninhos da cultura (escolas, quartéis, igrejas) e que, quando vinha à tona, representava a história dos bandidos, feras, membros gangrenados da sociedade, que as elites vencedoras debelaram e extirparam. Os cabanos são exemplos dessas feras e dessa voz popular silenciada por tantos séculos. Transfigurados em caminhos, em terra seca, por vezes encharcada de sangue, eles são o caminho; “o poder, a livre ação de andar na terra e caminhar”, permitindo-nos reiterar a opção de Cardozo pelos deserdados, pelos insurretos de sempre, conjugando a revolução da terra com a revolução dos seres humanos, o universal e o atemporal com o local e o histórico.
Enquanto o discurso do soldado da coluna, personagem de O coronel de Macambira, é expressão de um indivíduo que relata um passado (eu era, ouvi, vi, senti), o dos cabanos é expressão coletiva que se afirma reiteradamente no presente (somos, somos, somos...). É como se as partículas das manifestações coletivas ouvidas, vistas e sentidas pelo soldado anunciassem os cabanos. Diluindo as fronteiras cronológicas e históricas, esses personagens desse teatro da morte recolocam e confirmam os sinais de esperança e de luta desesperada dos sem-terra por um pedaço de terra; terra que não se reduza à cova provisória dos cemitérios, nem à vala comum dos ossuários. Essa luta incansável e irrenunciável de sombras prossegue, em pleno século XXI, fora do espaço ficcional, mas por ele previsto, nos cabanos contemporâneos, que de terra batida transformam-se em asfalto fervente, a caminho pelas estradas e avenidas, ruminando sonhos sob cabanas de plástico.
O grande fragmento que encerra o primeiro quadro de De uma noite de festa é uma torrente de acontecimentos – pequenas partículas que formam o fragmento –, a própria festa. Em meio à multiplicidade, um presépio vivo, palco sobre palco, domina a atenção de personagens, leitores e públicos. Nesse Fragmento, o dramaturgo opera um duplo e redundante desnudamento dos hábitos de uma cultura. Hábito como vestimenta, hábito como atitude, gesto e fala. Uma completa transfiguração: da imobilidade ao movimento, do rígido ao flexível, do intocável ao tangível, do passado ao presente, do sagrado ao profano, do eclesiástico ao secular. Transfiguração de uma tradição primordial, na qual as funções régia (ouro), sacerdotal (incenso) e profética (mirra) se transmutam em dinheiro (ouro), ações (mirra), e a antimatéria (incenso), todas sintetizadas em uma áurea verdade chamada capital.
O leitor concluirá, sem grande esforço, que todos os presentes dos Reis são oferendas de morte, que vão da matéria à antimatéria; do amarelo que fere a vista, amarelo de escarro vivo, como diria João Cabral de Melo Neto, em Os reinos do amarelo, à pureza transparente e monstruosa da eterna morte É pertinente observar também que esses presentes são construções discursivas que vão de encontro à vida que nasce: todas as ofertas são discursos de morte.
O intenso monólogo da Virgem Maria do presépio, transfigurada em mulher do povo, entre tantas revelações, apresenta o Messias como o primeiro e o único “que o mundo viu sem véus”, e ao dia do seu nascimento denomina “Dia do Desvelamento”.
Esse dia do desvelamento equivale à noite de festa de Cardozo, ao mundo embaçado e deformado que ele apresenta e aos poucos vai desnudando: os mamulengos medonhos que, de “brinquedos” do povo, se transfiguram em “brinquedos” da classe dominante, representados pelas grandes companhias, institutos, organizações, instituições criadas para o povo e para o progresso, mas que não conseguem articular um diálogo com a cultura subalterna. A banda de risonhos (de joões-ninguém), cujo sorriso revela a gargalhada congelada dos crânios dos cemitérios, dos que morreram de fome, não resistindo à seca e à exploração da seca. Reis que explicitamente se despojam de suas vestes sagradas para revelarem os símbolos da ganância e do poder: o dinheiro, com suas variadas faces; o avanço técnico-científico, com sua ambiguidade.
Nesta noite de festa em que Cardozo rompe a imobilidade e o imobilismo da lapinha, não apenas estática como também revestida por uma história unilateral, relatada pela classe dominante, a tradição toma novos impulsos e novas faces. Maria nos informa que há outra história: a história que é gravada por outra classe que a dos violentos, autoritários, ricos e poderosos. Por esta outra história ela põe em dúvida as escrituras sagradas, os evangelhos, e a manipulação dos mesmos pela religião, pela cultura.
As sociedades, através dos seus bagaços de história, nunca conceberam nem aceitaram outra verdade e sabedoria que não a do pequeno grupo que domina, pelo ouro, as grandes massas de indivíduos despossuídos de riqueza material. E, se dizem aceitar a verdade que emana das classes inferiores, o fazem transfigurando-a com os signos de sua ideologia. Modificam os discursos, os movimentos do corpo, as feições, os pontos de vista. Para os dominadores, os arcanos da fé ou de qualquer crença devem guardar uma similitude com os arcanos do poder, e poder, aqui, centrado na força e na tirania do dinheiro.
Cardozo reserva para De uma noite de festa o desfecho e a cerimônia fúnebre mais intensa, mais poética de todos os seus bois. Ao encontrar o boi desaparecido do presépio, entre a vida e a morte, sobre um monte de capim, o grupo do capitão fica estupefato. Não há a iniciativa, como nos outros bois, para providenciar um “salvador”. Este surge sem chamado, mas anunciado pelas cantadeiras como um curandeiro que chega para salvar o boi, a vida, o povo.
O ervanário é um feiticeiro, um xamã, um pajé, todos reunidos em uma só personagem, embora ele afirme não ser nem doutor, nem mágico, nem feiticeiro; apenas um simples curandeiro. Seu longo discurso, em face do silêncio atônito e da quase imobilidade do capitão e dos seus, vai desvelando, criticando radicalmente os doutores, com um procedimento poético e teatral diametralmente oposto ao realizado em O coronel de Macambira, pois recoberto com uma atmosfera que evoca o ritmo oriental, mais precisamente o chinês, taoístico. Por isso, a despeito da declaração do autor que o caracteriza como uma figura típica do Nordeste, somos tentados a vislumbrar o ervanário como uma sombra de Lao-Tzu, cavalgando em seu boi preto.
As ervas poderosas do ervanário são a arruda, o mastruço, o capim-santo, a erva-cidreira, cascas, raízes e resinas, isto é, medicamentos periféricos da indústria farmacêutica, hoje totalmente dominados pelo comércio fitoterápico. São também, sobretudo, a erva-de-santa-maria, a raiz-do-sol, um ramo de rosas murchas e a marijuana.
Diante da dormição do boi, estado onírico entre dois mundos, o ervanário, mestre da vida produtiva e contra todas as vidas que destroem, aproveita para criticar também um tipo de antropofagia científica que, diante do vale-tudo da chamada pós-modernidade, pouco nos surpreenderá.
Expressando a mais fundante concepção do seu teatro da morte e do insondável silêncio que há em cada ser, espaço equivalente a um microcosmo, Cardozo põe na boca do ervanário uma provocante mescla de ideias barrocas, expressionistas e taoísticas.
O autor continua o seu processo de distensão, torção e ampliação das cargas semânticas dos materiais que sequestra para a sua criação. Ao trabalhar com a maconha, procura retirar dela suas propriedades positivas e ampliar o sonho que ela venha a provocar. Sonho ilimitado de ideias e ideais que ofende os que não conseguem sonhar. Ao mesmo tempo, faz uma operação analógica entre povo pobre e erva proibida, povo e capacidade de sonhar.
Terminado o rito com a marijuana, Cardozo arquiteta um efeito cênico de amplas significações: todas as personagens ficam imóveis. “No fundo da cena surge uma linha de horizonte entre o céu e o mar. Sobre este campo, em tons firmes e bem delineados aparecem a garrafa de Klein e uma citação do Tao-Tö-King.” A citação do Tao surge em caracteres chineses e afirma a utilidade do vazio, a profundidade da superfície, a complexidade da simplicidade. O dramaturgo chega a utilizar uma página para escrever os caracteres e desenhar três versões planas da garrafa de Klein, duas delas sendo cortes esquemáticos que produzem duas fitas de Möbius.
Amalgamando a garrafa de Klein com os caracteres chineses que exprimem o vazio sobre uma linha de horizonte, um boi que morre, seres estáticos e uma voz off – dicção poética que traduz todo esse aglomerado de signos que converge para a morte –, o autor nos dá uma das chaves para compreender esse seu teatro híbrido e imaginativo para além dos aspectos que levantamos, como poderá constatar o leitor atento, inclusive vislumbrando aquelas propostas, apresentadas por Italo Calvino, todas reunidas em uma só obra: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência.
No mais urbano e melancólico bumba cardoziano, Marechal, boi de carro, a alegoria à situação por que passa o Brasil sob o jugo dos militares subjaz a todo o relato inicial da peça, em que três figuras, espécies de comentaristas históricos, narram os últimos e violentos acontecimentos passados na região.
O título de Marechal, boi de carro é, a primeira vista, pragmático, objetivo e o único dos bumbas que alude à figura do boi: nome, condição, profissão e equipamento de trabalho, todos reunidos. Há, contudo, no apelido do boi, uma fisgada crítica e ambígua que rompe a objetividade aludida: o nome marechal associa-se ao pequeno e ao grande, ao fraco e ao forte. Originalmente, marechal designava o indivíduo que cuidava dos cavalos. A palavra está intimamente soldada à condição de servo. Modernamente, marechal é um alto posto no exército, carregado de sentido negativo na história do nosso país. Entre um marechal de ferro e os generais de linha dura, existe um velho boi marechal. Numa possível interpretação, é como se o autor ou o povo, no plano ficcional, que tanto respeita e admira esse boi, quisesse nos dizer: “Esse é o marechal que legitimamos como servo e superior”.
Com o propósito de retomar o desvelamento sociocultural presente no conjunto de sua obra dramatúrgica, Cardozo cria um estranhamento localizado no primeiro quadro de Marechal, boi de carro que difere formalmente das composições O coronel de Macambira e De uma noite de festa. Trata-se do encontro do capitão e do seu grupo com um matuto que está partindo em retirada de suas terras em busca de melhores condições de trabalho no Recife.
O estranhamento diz respeito a um certo deboche que o autor emprega no uso da personagem de forma estereotipada, inclusive transcrevendo fonicamente o modo de falar do matuto. A lamentosa narrativa da personagem é profundamente crítica, muito embora o capitão o considere um cretino, e vem reforçar mais explicitamente o que em De uma noite de festa ficava subentendido. As cantadeiras o anunciam como muito astuto, sem firmeza e covarde. Ele é um exemplo caricaturado do sertanejo: “Do véio sertão sou fio”.
O discurso do matuto põe a nu um dos modelos de projeto nacional geradores dos desvios de verbas e da institucionalização da “indústria da seca”. O Denocs, sob a égide do planejamento regional, cujo superobjetivo seria resolver o problema das secas e fixar o homem à terra, em verdade se transforma numa máquina de desperdício do dinheiro público, privilegiando grandes latifundiários e enriquecendo grandes empresas financeiras, empreiteiras, mineradoras, agropecuárias.
Outro projeto salvacionista proposto pelo autoritarismo das elites competentes, sutilmente recoberto pelo manto da racionalidade funcional, costurado pela burocracia, é o Banco do Nordeste, agudamente criticado pelo matuto.
Sem querer acreditar num “milagre brasileiro”, nem em outra coisa que venha salvar o Nordeste, o matuto ataca a Sudene, como mais um dos mistérios que ronda as relações entre as classes subalternas e as elites especialistas em planejar.
Cardozo utiliza em seu último bumba uma narrativa pretérita para instalar os leitores ou os públicos de forma mais crítica no desenvolvimento da ação. Constrói também um dos mais elaborados quadros da sua dramaturgia, na perspectiva da narrativa épica brechtiana. Intercalado por cantigas, o segundo quadro constitui-se num único e longo fragmento, envolvido pela atmosfera noturna e onírica que caracteriza os segundos quadros dos seus bumbas: o capitão, Mateus, Bastião e Catirina estão num pequeno hotel na cidade de Jaboatão e decidem passar a noite em claro para não perderem o início da feira, onde será leiloado o boi Marechal que eles pretendem arrematar, salvando-o da morte no açougue. Mateus, para entreter o grupo, decide contar uma história. Uma história em abismo, com comentários e interferências dos ouvintes, em que o contador narra o seu encontro com a personagem Macunaíma, que desceu do seu posto na Ursa Maior e veio folgar com um dos seus companheiros de classe.
Este é o único momento do Marechal, boi de carro em que surge, apenas por meio da narrativa, uma personagem-morte ou personagem duplo: Macunaíma, sombra um pouco mais escura do que o seu autor, duplo enquanto personagem que vive na literatura de Mário de Andrade e duplo que prossegue sua vida autônoma de personagem inscrita na constelação, reconstruída por Cardozo. Reconstrução que investe numa superposição e aglutinação de formas de contar, expandindo e configurando um delicado diálogo intertextual.
Entre baforadas de seu cigarro e um grande peido, Macunaíma aproveita a liberdade que não desfruta entre as estrelas para contar histórias de estadistas nordestinos empenhados em seus projetos mirabolantes que, contrariando seus discursos, desperdiçam o dinheiro público. Uma das revelações macunaímicas critica o interventor Agamenon Magalhães e o seu governo estadonovista.
Não se trata apenas de uma vingança de Cardozo contra aquele que o expulsou de sua terra, mas de uma severa crítica aos governos autoritários que desviam os objetivos e as funções dos projetos destinados ao bem-estar social do povo para satisfazer a ganância de indivíduos ou grupos das classes dominantes, que só atuam em seu próprio benefício e que, mascarados com discursos ditos modernos e competentes, expressam a estreiteza de visão e a ausência profunda de modernidade.
Marechal, boi de carro é o ponto máximo do processo de antropomorfização que ocorre paulatinamente nos bumbas criados por Cardozo: todas as personagens são humanas, mais cruas, mais fincadas no chão, mais melancólicas, porém sem abrir mão da ironia afiada, da crítica radical ao autoritarismo e às contradições socioculturais brasileiras, aliás, presentes no conjunto das personagens dos três bois, obedecendo às características estilísticas de cada um deles.
Os fragmentos dos bumbas transfigurados pela poética cardoziana, além de testemunhos de uma sociedade, produzem a articulação e o equilíbrio entre texto teatral e imagem; entre linguagem visual e escrita, o que aponta para uma busca antecipada de um teatro que será referência dos anos 1990 do século XX. Porém, esse modo singular de manipular os materiais artísticos, essa forma e esse estilo, resultantes dessa manipulação, é o que faz o homem Joaquim Cardozo. É a sua propriedade e a sua espiritualidade, para usar a justa expressão de Karl Marx. Propriedade que é seu chão maduro, remoto, futuro, onde a tradição se faz aberta à atualidade. Solo de onde brota seu teatro, acima e além dos “ismos”, do pitoresco, desconstruindo e reinventando o folclore, transfigurando-o em escrita para a cena e retirando dessa região, que os homens construíram como injusta e sombria, substâncias de universalidade.
Este bumba de morte desvela muitas outras mortes, ou deixa entre a vida e a morte, no plano ficcional, um sistema patriarcal que começara a ruir, pelo menos nos seus modelos mais ortodoxos, aureolado por um encanto que precede a chegada da usina. A locomotiva não põe fim apenas ao boi, mas desvia a onipresença e o culto antes dedicado, exclusivamente, ao velho senhor de engenho. A modernidade veio senão retirar, diminuir o poder do antigo senhor de grandes latifúndios, coisas, pessoas e almas.
Em oposição aos bois que sempre terminam em festa e regozijo, este bumba finda numa dolorosa despedida. A cerimônia fúnebre que era dedicada apenas ao boi alarga-se para o próprio bumba meu boi, no solitário e perdido aboio de Mateus.
Transcendendo a canção e a cerimônia do adeus, as reiterações misturadas aos tristes versos de Mateus, expõem uma ânsia de liberdade do território e do ser vivente: minha terra / seus cercados / nunca mais.
JOÃO DENYS é escritor, diretor, cenógrafo, figurinista, maquiador, iluminador, sonoplasta, programador visual, ator, professor e ensaísta.
JOAQUIM CARDOZO nasceu no Recife, em 1897. Além de poeta, foi engenheiro calculista e participou de diversos projetos com Oscar Niemeyer, inclusive da construção de Brasília. Entre as suas publicações estão Signo estrelado, Mundos paralelos e Trivium, considerada sua obra-prima e uma importante referência da poesia brasileira do século XX.