O carro da merda
Leia um dos capítulos do livro 'The mint', inédito no Brasil, escrito por T. E. Lawrence ao se alistar como soldado raso, depois de ser herói de guerra e publicar 'Os sete pilares da sabedoria'
TEXTO T. E. LAWRENCE
TRADUÇÃO FERNANDO MONTEIRO
29 de Dezembro de 2017
Ilustração Hallina Beltrão
[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 205 | janeiro 2018]
Foi a partir de 1922 que T. E. Lawrence escreveu o seu segundo livro – The mint –, quando sua persona de herói da Primeira Guerra Mundial o tornara uma lenda viva a se esconder do mundo, nos “anos lunares” que viveu em quartéis do exército e da RAF, ex-coronel alistado como simples soldado raso (por vontade própria).
O Lawrence da Arábia da lenda era, então, a sombra de um homem vindo da frente oriental, há quatro anos, com o corpo combalido e o espírito atormentado. Havia escrito sobre a campanha de vitórias – de Akaba a Damasco –, no seu primeiro livro (Seven pillars of wisdom), mas o segundo é de autoria do recruta maduro e no anonimato, em busca da falsa paz dos quartéis de homens diminuídos, derrotados e sem esperança.
Soldado na companhia de outros rasos soldados, o ex-oficial viria com as armas da denúncia da vida esmagada da tropa, e causaria mal-estar e até mesmo escândalo, ao ser publicado só em 1955, dando voz à malta de homens sem fala, da “ralé” abandonada nas galés dos campos de treinamento, sujeitos a ordens vis e a tarefas frequentemente inúteis. O carro da merda (-cart, no original inglês, no qual a palavra shit é suprimida) é um dos capítulos mais característicos desse livro, no qual mal se reconhece o Lawrence árabe, pois aqui ele busca gritar mais alto do que podem gritar, nos alto-falantes, os oficiais da rotina. Não era mais o mito vestido de roupas principescas, com o cinto de Meca e a adaga de ouro, mas um homem desiludido e metido numa farda grosseira (que lhe cai mal).
T. E. Lawrence, numa foto datada em torno de 1925.
Foto: Reprodução
Passado o desconforto – essencialmente britânico – em face de um livro que viria a causar escândalo no meio militar (e até mudar algumas práticas intramuros de casernas semelhantes), a sua leitura é salutar e, quem sabe, ainda necessária, porque nos faz entender que somos feitos de massa estranha, numa lição que não vem unicamente do dia a dia que o livro detalha, mas daquela dobra da uniformidade banal que não logra derrubar o ex-herói na lama. De certa forma, The mint pode ser encarado até como o rascunho de algum poema obscuro, feito de senso da animalidade comum de mistura com solidariedade e pura indignação (servidas da rica experiência de um homem de letras).
É suficiente prestar atenção num fato que ocorre, enquanto Lawrence e seus infelizes colegas fedem no contato com o “carro da merda”: ali, em meio à tarefa pior possível, entregam-lhe uma carta na qual o célebre Edward Garnett o convidava para dirigir uma elegante revista literária… E o soldado Lawrence enfia o envelope timbrado no bolso molhado de suor, o papel já se umedecendo enquanto ele espera um momento para ler a mensagem do mundo lá fora, entre as sujidades inomináveis do “carro” fedorento daquele micromundo do quartel no qual afunda o seu espírito de “baronete malnascido” e controverso “rei sem coroa da Arábia”, naquele momento reduzido a uma cinzenta criatura perdida no lixo.
Capa da edição de bolsa da qual foi realizada
esta tradução. Imagem: Reprodução
Seja como for, teve o ânimo de deixar o libelo escrito em honra dos companheiros batidos e trabalhados, em fôrma, para se tornarem não mais que números nas chamadas. Ainda assim, a individualidade que restava a todos eles, o traço único de cada ser humano, respira nas páginas da obra, em meio aos odores dos campos militares da velha Inglaterra, à qual o antigo coronel já havia devolvido todas as suas medalhas. (FERNANDO MONTEIRO)
***
“Às oito da manhã, somos quatro soldados de pé no pátio de manobras, desgostosos da vida. Era a nossa vez de esgotar o chamado carro da merda, numa segunda-feira em que tudo pesa duas vezes mais. O motorista seboso (todo chofer da RAF é imundo) esquentava a máquina, tentando colocar em marcha um motor gelado que, afinal, com um estrondo exagerado, desenguiçou. Pulamos ao estribo e, equilibrando-nos, passamos ao interior do veículo. O caminhão virou à esquerda, descendo para atravessar a ponte: por certo que íamos para o serviço de limpeza. Hillingdon House parecia abandonada nas suas imensas janelas negras por trás de onde os empregados flanavam na hora do primeiro chá.
– Caras folgados! – comentou Marujo, com inveja.
Eles não tinham de se levantar às seis da manhã. Tínhamos as mão frias, a carroceria nojenta se sacudia toda na estrada de buracos.
Cozinha do serviço de manutenção.
– Dois em cada! – ordenou o cabo.
Levantamos os tambores de ferro galvanizado. Aos trambolhões, rolamos aquilo pela cozinha entulhada, subindo os batentes de cimento enlameado, para, enfim, chegar à estrada. Em esforço conjunto, enquanto três levantavam cada tambor, o outro puxava para cima. Vinte e seis deles, isto é, duas toneladas! Não é muito lixo produzido por 800 homens? Sim, porém, cada batalhão joga fora comida bastante para alimentar dois outros.
Alguns tambores do sábado estavam cheios de uma mistura pesada de fuligem, ossos, papéis, restos de comida, pedaços de pratos e copos, centenas de latas de conserva, carne, palha apodrecida, pão mofado cheirando a ranço, trapos. Tudo com algo como mel coagulado derramado por cima, em dezenas de litros que haviam formado uma espécie de papa entre cinzas e cascas de batatas. Impossível despejar os tambores de uma vez, tivemos de esvaziá-los com as mãos. Era de arrepiar, mas tínhamos que enfiar nossos dedos lá dentro. Depois, nem sabíamos o que fazer com a mão e o braço podres.
O caminhão já estava até a metade cheio. Subimos. Dessa vez, ao partirmos, não fomos tão sacudidos: a imundície nos envolvendo chegava aos joelhos. Com a velocidade e o jogo das molas, o carregamento começa a se peneirar. O mais pesado e úmido ia ao fundo, o pó e a cinza se evaporavam, formando nuvens por onde passávamos. Para proteger o campo de uma possível epidemia, devido à sujeira carregada pelos ventos, os milicos cobriram o caminhão com um encerado, dando ordens para que a parte de trás ficasse fechada “hermeticamente”. O cabo comandante de faxina de hoje seguia as instruções ao pé da letra, obedecendo – e nós também – de modo cego. A imundície soltava, ainda, um gás asfixiante. Lá dentro, a gente não podia estar pior, e fomos para a traseira, metendo a cabeça por uma abertura do toldo. Podíamos, assim, encher a boca com o ar bendito que corria lá fora.
Numa foto de arquivo do tradutor, Lawrence no período em que foi soldado.
Imagem: Reprodução
Eis a cozinha dos oficiais. Cinco tambores: uma bagatela, mas, depois daqueles 40 carregados, cada um parece o mais pesado. De novo em marcha para os 100 metros que nos separam da nossa cozinha e muitas outras esperam, na rota do campo. As alças dos objetos já feriram e encheram de bolhas nossas mãos, os braços doloridos após levantar tantas toneladas de lixo. Alguma coisa – por certo a podridão da carga – nos impede a respiração.
– Dividam entre vocês estes últimos! – gritou o cabo, próximo da hora do almoço.
– Divida você – resmunga Boyne, furioso, como aliás estávamos todos, e como estaria qualquer pessoa exausta e desanimada, após um longo dia de trabalho, vendo que perderia a comida.
Eu, no meio, fazia o possível para não rir dos outros três. As cinzas lhes cobriam as sobrancelhas, descendo pelos rostos empapados de suor e dando-lhes aspecto de velhos. Certamente que eu tinha, também, a mesma máscara, estava igual, mas não me via. Subir, descer, subir, descer. Um longo caminho de volta com o tambor vazio e, novamente, aos tropeções, com um tambor cheio. Descer, subir, descer, subir. A repetição enlouquecia, arrasava qualquer um. Lá do alto, Boyne nos dá a mão e puxa para o estribo, não pulamos mais feito macacos, como pela manhã. Temos de baixar a cortina e ficamos enterrados até as coxas. Quando o caminhão dá uma guinada, caímos. É inevitável, e cuspimos, tossimos, putos da vida. Minhas calças estão cobertas de lixo. Alguma coisa lisa, gosmenta, está quase na virilha: é muito macia para ser rato… Agora, vamos com velocidade, descendo a ladeira que nos leva ao incinerador. Porra! Passamos à cantina e podemos levantar a cortina. Não existe ninguém para nos ver na estrada, nessa hora do almoço. O ar puro entra no caminhão enquanto o pó e a cinza saem. O motorista para no incinerador, descemos para cuspir e, aos poucos, o vermelho toma conta dos nossos rostos.
– Entre de marcha a ré e baixe o estribo! – grita o cabo.
Mas o chofer é macaco velho e não um novato igual à gente.
– Pro inferno! Pensa que eu ainda vou me mexer. Está bem assim. Agora, vou me empanturrar. Em forma! Os quatro! – sempre gritando, o cabo, rouco e tossindo para disfarçar a desfeita recebida, nos leva em marcha para a cozinha com “Direita”!, “Esquerda”!, “Direita”!, “Esquerda”!, a fim de chamar a atenção sobre a sua perfeita disciplina. Os pelotões estavam de saída para o exercício da tarde e nós morríamos de vergonha ao pensar que poderiam nos ver daquele jeito. O mais humilhante para um soldado é fazê-lo desfilar ante espectadores, sem necessidade alguma, apenas para demonstrar a sua submissão. O cozinheiro não havia guardado almoço, porém, depois de reclamar bastante, trouxe uns restos requentados. Como o cabo não desse permissão para sair e tomar banho, não reclamamos quando acharam que a gente fedia demais para estar na sala de refeições; por isso, engolimos o angu em pé mesmo, no fundo do corredor, usando como mesa um tambor vazio, lavado com cal. Quinze minutos depois, refazíamos a pé o mesmo caminho de volta. “Direita”! “Esquerda”! Mais ordens. E mais insultos.
– Imbecil! E, agora, com a pá!
Tínhamos de jogar a pá do incinerador com toda aquela carga. Era para rebentar um homem já extenuado, quase morto. Bolhas nas mãos. Há meses que eu não pegava numa pá. Chiquito, de maneira cômica, gemia:
– Ai, ai, por que fui me alistar na aviação?!
Como o haviam escolhido de novo para a faxina de hoje, os demais (eu, Boyne e Marujo) tinham trabalhado dobrado. O cabo – filho da puta – dava duro na gente. Quando acabasse o lixo, ainda teríamos de levar a salmoura, o pior de tudo. Moídos de cansaço, voltamos pelo mesmo caminho, subindo a ladeira. A salmoura dos serviços, restos de comida, tudo o que podia servir de alimento aos porcos, enchia 11 tambores. Alguns estavam repletos até a borda de leite azedo. Litros e mais litros. Carregamos tudo para o caminhão. Este suco de vaca assim estragado ainda deixava a gente mais azedo, lembrando que nosso chá tinha sempre tão pouco leite. A cada vez que o caminhão caía num buraco levávamos um banho podre! Aqui e ali, encontramos mais lixo para apanhar. A enfermaria tinha grande quantidade. Seguimos pela estrada que conduz aos chiqueiros, cujos habitantes nos receberam com uivos de alegria. Era chegado o instante supremo para eles. Despejamos em cada cocho, formando um lago cinzento em volta, onde se espojavam à vontade.
O dia acabara?
O cabo nos deu uma colher de chá de um minuto, ao pôr do sol.
– Quatro e meia (falou), nada mal para um segunda-feira.
Tal cumprimento não nos aliviou em nada. Durante todo o dia não nos ajudara em nada. O que, aliás, era dos regulamentos. Poucos cabos, no entanto, se deixavam levar pela frieza da praxe e da letra.
Um dos colegas me havia atirado uma carta a última vez que passamos pelo alojamento. Apanhei-a e pus no bolso da farda já encharcada. A camisa estava também molhada e aquela umidade gelada deixava a pele sebenta como borracha em decomposição. Ao apanhar o envelope, ele quase se desfez na mão. Li com os olhos em brasa a proposta de um editor amigo: me oferecia a direção de uma revista mensal que estava sendo criada, destinada aos refinados da Belles-Lettres. Meu olhar atônito corria das nuvens brancas para a roupa repugnante, eu me perguntando o que aconteceria – agora – se eu voltasse atrás?
Esperávamos repousar ao final do trabalho e chegar à sala de reunião para “debandar” o mais tarde possível. De repente, o cabo chamou os quatro:
– Este sujeito pensa que bota pra frente o raio deste campo – falou, entre os dentes, Chiquito, rebentado de ódio com essa afetação de transformar em ritual uma tarefa tão fedorenta.
– Peguem estes forcados e ponham no caminhão a bosta dos porcos.
– Tá fazendo sua cama, cabo – falou, suave, Marujo.
Teríamos matado aquele milico. Então o trabalho não findaria nunca? Tínhamos, já, nove horas! Mal podia perceber a realidade dos meus sofrimentos, pois os outros estavam em condição igual. Formávamos uma lastimável equipe. Apesar do meu tipo franzino, não ousava me lastimar ou reclamar do serviço, pois concluiriam, naturalmente, que eu era delicado demais para tarefas de homens. Por isso, levantei e tratei de obedecer: a lama viscosa foi apanhada até que tudo ficou dentro do caminhão. Seguimos para o jardim onde se encontrava um monte de estrume. Juntamos, penosamente, a nossa parte. Era o fim de tudo.
– Podem voltar para o carro.
Boyne e eu pulamos fora. Nem mais um minuto nessa podridão que havia nos envenenado o dia inteiro.
Chegamos ao alojamento às seis (e não tinha mais chá para a gente, claro). Tratamos de tomar banho. As cinzas formavam, com o suor, uma crosta aderida a cada parte do corpo. Apanhei a escova de limpeza e me deitei na tina a fim de que ele me esfregasse na frente e nas costas, tirasse aquela segunda pele granulosa. Fui para o chuveiro. Novamente os esfregões, com cuidado, até ser declarado limpo. Depois foi a minha vez de dedicar a Boyne o mesmo tratamento. A água fria nos gelava e a pele estava arranhada com o esforço. Vestimo-nos e fomos para o exercício de incêndio. O sargento nos pega para limpar o posto de incêndio. Estava tão pregado, que não podia reclamar porra nenhuma.
Voltamos ao toque de recolher; compramos no escritório da cantina uma tigela de chá e três pãezinhos com salsicha. Como tinha ainda algumas moedas, paguei, pois Chiquito e Marujo estavam lisos. Boyne, mais escolado, saboreou melhor o quitute. Enfim na cama eu, pelo menos, não conseguia adormecer. Em parte devido ao excesso de fadiga, em parte pela catinga da salmoura e das imundícies que vinha das roupas amontoadas junto de mim. Fiquei deitado durante horas, olhando o teto sombrio, procurando não pensar nos cinco dias que ainda teria de esperar para enviar a roupa à lavanderia.
T. E. LAWRENCE (1888-1935) foi arqueólogo, militar, agente secreto e escritor. Sua obra-prima é o livro Os sete pilares da sabedoria (1926). Fascinado por sua figura enigmática, o escritor.
FERNANDO MONTEIRO dedicou-lhe a biografia T. E. Lawrence (Record, 2000).