No meio de uma tarde no final de novembro de 2017, a assessora de imprensa enviou uma mensagem à reportagem da Continente avisando que Ronaldo Fraga iria se atrasar para a entrevista. A demora do voo, somada ao trânsito caótico da capital pernambucana, fez com que o estilista mineiro chegasse duas horas após o horário previsto à Casa de Olinda, onde ficaria hospedado. O motivo de sua vinda era uma palestra que faria no Marco Pernambucano da Moda, programada para o dia seguinte.
Contrariando o efeito do cansaço da viagem, Ronaldo Fraga adentrou sorridente no lugar, no início da noite. Usava uma muleta – rompeu os ligamentos do joelho numa queda em Buenos Aires. Na capital argentina, havia apresentado Gênesis, coleção feita sob encomenda para a Bienal Internacional de Arte Contemporânea da América do Sul (Bienalsur). O conjunto de 30 roupas aborda a história dos povos originários e imigrantes da América Sul, abrangendo o tema da xenofobia.
Ao chegar à Casa de Olinda, foi recepcionado pela dona do espaço, sua amiga Cibele Teixeira, a quem ele convencera a comprar o imóvel depois de ter passado o Carnaval na Cidade Alta, em 2008. A anfitriã, também de Minas Gerais, reformou o ambiente, transformando-o num agradável hostel com vista para o mar. Lá, onde ele se aloja quando vem por aqui desde então, concedeu esta entrevista à Continente, falando sobre crise econômica, trabalho escravo, declínio da indústria têxtil brasileira, a concorrência injusta com os asiáticos, fast fashion, blogueiras de moda e processo criativo.
Com a coleção para a Bienalsur, Ronaldo Fraga, aos 50 anos, conquista mais um feito: foi o primeiro estilista a ocupar essa mostra de arte contemporânea. Na sua carreira de mais de duas décadas, conseguiu outros, o primeiro nome da moda a receber a medalha da Ordem do Mérito Cultural, em 2007, honra concedida pelo governo federal aos artistas que contribuem com a cultura brasileira. Em 2014, o Design Museum de Londres o apontou como um dos sete estilistas mais inovadores do mundo na exposição Designs of the Year.
Em mais de 40 coleções, criou peças de roupas homenageando nomes como Arthur Bispo do Rosário, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Athos Bulcão, Cândido Portinari, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Nara Leão, Zuzu Angel – estilista carioca, morta pela ditadura militar em 1976, que o inspirou a se tornar o profissional engajado que concebe roupa para se expressar sobre questões urgentes, como a crise dos refugiados e o preconceito contra negros e trans. “O seu posicionamento no mundo é a sua postura política. A moda é o meu instrumento para isso”, afirmou nesta conversa.
Desenhista, figurinista, cenógrafo, ilustrador, Ronaldo Fraga é, sobretudo, estilista. Cursou Moda no Senac, graduou-se em Estilismo e Modelagem na UFMG, fez pós-graduação na Parsons School of Design, em Nova York, e na Saint Martin’s School of Art, em Londres. Como registrou em seu site: “Nunca desejou sua carreira, não teve mãe costureira ou irmãs provando vestidos em casa e nunca brincou de boneca. Começou pelo simples fato de saber desenhar. Trezentos anos depois, continua ilustrando personagens para suas estórias: o que muitos chamam de moda”.
CONTINENTENa Bienalsur, em Buenos Aires, você apresentou uma coleção sobre as raízes dos imigrantes e povos originários da América do Sul e xenofobia. Como é a escolha dos temas para as suas coleções? RONALDO FRAGA Eu nem escolho, eu sou escolhido. É muito fácil falar da moda do passado, se inspirar no passado ou tentar imaginar o futuro. O difícil é falar do presente, ter uma queda de braço com o seu tempo. O que é a moda, senão o documento mais eficiente deste tempo? O nosso jeito de vestir, num futuro, será a escrita para que se entenda o que a gente está vivendo hoje. Tenho uma predileção em trazer a ancestralidade, mas principalmente temas contemporâneos. Não tem como não falar desse momento histórico que a gente está vivendo, que nos dá a sensação de que caímos numa casa, num jogo, e que essa casa nos mandou 40 casas para trás. E a gente está falando de coisas que já eram pra estar bem-resolvidas. Isso é o momento do mundo e não apenas no Brasil. E as ondas migratórias suscitam questões do nosso tempo, como inclusão, representatividade, tolerância. Falar disso na América Latina é um desejo antigo. Eu já tinha feito uma coleção sobre a América Latina, que foi a Disneylândia, em 2010. Mas ainda não tinha feito com foco na América do Sul. E aí a gente vê que os problemas, as histórias, os entraves são os mesmos. Se o mundo está perdendo fronteiras, é inadmissível que o Brasil ainda tenha uma fronteira gigantesca com o restante deste continente, seja pelo limite da língua ou pela nossa soberba.
Ronaldo com profissionais argentinos convidados para desfilar em sua coleção para a Bienalsur, em Buenos Aires. Foto: Divulgação
CONTINENTEA crise econômica afetou a sua marca de alguma forma? RONALDO FRAGA Não afetou. A minha produção não é grande. Não cumpro essas sazonalidades de ter que lançar em tal época, de ter que vender. Vi que a concorrência nesse lugar era um terreno pantanoso, um campo minado, seguir o calendário tradicional da moda, vender para os lojistas. Nessa área, a crise afetou, porque muitos colegas quebraram. Tinha uma conta que não fechava, você comprava o tecido, tinha 60 dias para pagar. Em 60 dias, a coleção não ficava pronta. Ficava pronta com 100 dias. Com 100 dias, você a levava para o showroom. Aí vendia para o lojista, e ele tinha 30, 60, 90 e até 120 dias pra poder te pagar. Quem era o sócio nessa história? O banco. Então, espera aí, para tudo. Você não tem que tentar ser um fast fashion, não tem que ter o tamanho de um fast fashion. Tem que ir por outro caminho. Claro que a maioria usa o tênis de R$ 30, que pinga sangue, a blusa que pinga sangue, que vem lá do Paquistão, de não sei onde. Mas tem também a turma que quer a roupa bem-feita, com história, diferencial, que não é a roupa da vitrine do shopping. Então, foi nesse lugar que eu apostei. E aí, nesse lugar, a crise realmente não me afetou. Mas nem por isso fiquei olhando para o meu próprio umbigo. Sempre comprei a briga em defesa da indústria brasileira, dos designers brasileiros. O compromisso do designer é criar pontes entre o feito à mão e o feito na indústria. O que a crise afetou é que cheguei a fazer três ou quatro projetos com comunidades por ano. E esses projetos diminuíram por causa dos investidores.
CONTINENTEVocê ainda vê um preconceito das pessoas contra a moda, de achar que é algo inferior? RONALDO FRAGA Eu nem acho que é um preconceito, é um desentendimento, porque não é só contra a moda. O Brasil ainda não tem um entendimento dos novos vetores da cultura, que são a moda, a gastronomia, a arquitetura e até a arte popular. Nem o próprio setor da moda se vê como um vetor cultural. Então, por mais que tenhamos exemplos como o Japão, a Bélgica, sem falar dos já tradicionais Itália e França, ainda é muito novo pensar a moda como cultura no Brasil.
CONTINENTEA gente está assistindo ao trabalho escravo e parece que há uma espécie de cinismo com relação a isso, de encarar essa verdade. Há empresas que declaradamente estão na lista do trabalho escravo. Como conscientizar a população? Como combater isso? RONALDO FRAGA A gente tropeça onde? Naquele velho problema, naquela velha chaga do Brasil, que é a educação. Se um lápis é mais caro porque é produzido na Alemanha, a pessoa paga mais caro porque sabe que está gerando emprego naquele país, mantendo a indústria daquele lugar. Na periferia, por exemplo, existe essa coisa do ter. Vai falar para uma menina de 15 anos, que quer ter a roupa da balada no final de semana, que aquele vestido que ela está usando pinga sangue… Se a pessoa diz “Eu não compro roupa de trabalho escravo no Brasil, compro a da China. O problema é deles, na Ásia”, o problema não é deles, é nosso. Hoje, tem uma coisa horrível, que são os tais dos “navios-confecção”. Eles contratam os estilistas belgas. Antes das roupas entrarem na passarela em Paris, os fotógrafos encaminham as fotos para esses navios, que recebem essas fotografias, copiam, já fazem as estampas, os modelos e vêm produzindo em alto-mar, sem legislação nenhuma, e entregam essa roupa no Mediterrâneo, na Espanha, na Itália e distribuem para as grandes lojas de fast fashion europeias. Isso é um problema muito, muito sério. Então, é preciso que haja essa conscientização de você entender “o que é que eu como, como eu como, o que eu visto”. O mundo está passando por uma exaustão e um empobrecimento tal, que nunca consumimos tanto veneno quanto agora, nunca vestimos tanta roupa, tanta coisa produzida por trabalho escravo. Isso acontece porque tem que atender à demanda do muito, muito, muito, do mais, mais, mais. E, na verdade, a gente não precisa mais de roupa, a gente não precisa mais de tanta coisa que a gente já tem. A gente precisa de outras coisas. Aí tem uma outra face dessa história, minhas costureiras mais antigas, num tempo, foram costurar em casa. Então, elas passaram a produzir em casa porque era uma forma de estarem perto dos filhos e tal. Se a filha de 15 anos resolve ajudar a mãe e chega uma fiscalização, a mãe vai ser autuada, o meu trabalho consequentemente vai ser autuado por trabalho infantil. Então, acho que são faces de vários pontos. Mas o mais importante é a educação, é a gente poder entender e tomar uma consciência daquilo que está ingerindo, consumindo, vestindo.
CONTINENTEVocê citou esse exemplo de uma autuação. Como você administra a sua produção? RONALDO FRAGA Diminuí a minha produção. Cheguei a ter 270 pontos de vendas no país. Então, eu disse “Para tudo”. Fiquei com minha loja em Belo Horizonte e vendendo na loja online. Hoje, já dá para ter o controle que eu não ia conseguir ter antes. Provavelmente, eu nem poderia estar com você agora, vir para um evento falar de cultura. E eu preciso disso para me alimentar. Preciso ir para a África e trabalhar com uma comunidade. Preciso porque, muito mais do que o trabalho em si, é a minha visão de mundo que precisa ser alimentada. Então, com isso, eu tive que diminuir e tomar consciência do que eu sou, do tamanho que eu quero ter e qual é o meu papel nessa engrenagem. Meu papel nessa engrenagem é o de designer. Eu não sou industrial, não sou empresário. Tenho feito projetos de sucesso, aliás, de empresas que contratam um designer para poder desenvolver um produto e romper com essa distância oceânica que existe no Brasil não só entre o feito à mão e feito na indústria, mas até do designer com a indústria.
CONTINENTEO presidente da Riachuelo comemorou a nova lei trabalhista e a portaria que basicamente elimina a fiscalização do trabalho escravo. De que forma, além dos direitos humanos, essas redes varejistas interferem no caminho da criatividade na moda? RONALDO FRAGA Os grandes varejistas promovem geração de empregos e, além disso, a coisa do acesso. Eu não demonizo o fast fashion. Eu mesmo já fiz linhas para fast fashion, mas procurei saber onde estavam sendo produzidas. No contrato, exigi que fossem produzidas no Brasil. Então, tem gente que tem um trabalho muito sério e dá acesso, deselitiza. Esse papel é de extrema importância. Agora, você falou de duas coisas, primeiro a legislação que fecha os olhos ao trabalho escravo, e isso é um retrocesso gigantesco. Repensar as novas relações de trabalho é urgente. A nossa lei trabalhista é de quase 100 anos atrás. O Brasil mudou, as pessoas mudaram. Então, tem muita coisa, essa lei precisa ser revista, até para o Brasil dar um passo à frente.
CONTINENTEA crítica que está sendo feita é de que os empresários vão aproveitar essa reforma na lei trabalhista para tirar os direitos dos trabalhadores. RONALDO FRAGA É preciso que exista uma reforma trabalhista, mas precisamos também de uma reforma política. Agora, reforma política feita por esses políticos que estão no Congresso, você acha que vai prestar? Da mesma forma que uma reforma trabalhista feita por empresários políticos. Você acha que eles vão ser bonzinhos? Vão pensar nos trabalhadores? Não vão. Mas, que o Brasil precisa de reforma para todos os lados, não tenho a menor dúvida.
CONTINENTEVocê falou desse navio-confecção, que já vem fazendo o plágio no que está sendo lançado nas semanas de moda. De que forma o plágio está acabando com a moda? RONALDO FRAGA O plágio sempre existiu e sempre vai existir. O que acaba com a moda não é o plágio. Aliás, eu acho que aquilo que é copiado é sinal de sucesso. Nos anos 1980, no auge da Forum e da Zoomp, Renato (Kherlakian) e Tufi (Duek) me contaram que iam ao Paraguai brigar com o cara que copiava, porque a cópia entrava e eles pagavam impostos e o outro, não. O que a Diesel fez? Existem rumores de que, quando viu que tinha um gigante chinês copiando, foi lá e propôs sociedade. Então, a Diesel era dona da própria Diesel e de quem a copiava. Eu acho que o problema não é a cópia. O grande problema é que temos um produto no Brasil de sobretaxas de impostos. Então, a nossa roupa, como tudo no país, poderia ser cinco vezes, dizem até 10 vezes, mais barata do que é. E aí a roupa acaba sendo mais cara. A mais barata vem dos países asiáticos. Isso minou a nossa indústria têxtil. Nós já tivemos o melhor algodão o mundo, o terceiro melhor linho do mundo, o jeans também. Um país sem indústria é um país sem identidade, principalmente no caso da indústria têxtil e da indústria da moda. Ela fala muito da formação cultural de um país.
CONTINENTEEntão, é uma concorrência desleal que vocês estão enfrentando. RONALDO FRAGA É uma concorrência desleal. Mas a cópia não é o que mina. O chinês vai lá e pega um vestido da grife francesa e vai fazer no poliéster. Ele vai dar acesso. Tem gente que vai comprar mais barato. Mas tem gente que vai pagar pela seda pura. A moda, na verdade, é um vetor extremamente diverso, é um vetor econômico poderoso. Acho que ela é mais transformadora no vetor cultural e político. Foi esse o lugar que eu escolhi. A moda viveu por 30 anos com o holofote em cima dela. Tudo que você fosse vender, passava pela moda. E esse holofote migrou agora para gastronomia e experiências. Ninguém mais volta do exterior e fala “Ai, fui para uma loja de roupa maravilhosa”. Ninguém fala mais isso. Diz: “Fui a um restaurante na Bavária, onde o chef só cozinha duas vezes ao ano e lá só tem seis mesas”. Aí, todo mundo enlouquece querendo ir. Porque as pessoas querem se sentir vivas, as tais das experiências, aquilo que vai para além do objeto, algo que você vive.
CONTINENTEE por que a moda perdeu esse espaço? RONALDO FRAGA Acho que é a própria evolução do tempo. A produção em série e o acesso desmistificaram muito a moda. Ela precisa da coisa do inalcançável, sempre precisou. Acho também que isso é cíclico. E tudo ficou muito igual. Hoje, vivemos num tempo de pouco experimento. Não raro, sou convidado para ir a um desfile de novos estilistas de uma nova geração, e o que eles fazem? O que já está na vitrine do fast fashion. Aí, sim, a crise pegou. Porque está todo mundo precisando vender. Não dá mais tempo e espaço ao risco. O risco é o que traz a mágica da moda. É aí onde ela encontra e bate um papo próximo com a arte.
CONTINENTEQuando você arrisca nas suas coleções, também está sujeito ao prejuízo? RONALDO FRAGA Sim, já tive muito prejuízo. Mas tive uma coisa, que é essa palavra que está na moda, propósito. E não o perdi de vista. Ali, muito mais do que um ofício, era a minha visão de mundo. E o ofício era o instrumento para que eu me entendesse ali ou me colocasse naquele lugar. Então, provavelmente tem coleções minhas que são referências na história da moda do Brasil e tem algumas delas que são um fracasso comercial. E tem outras coleções que eu falei “Isso não vai dar em nada, mas eu quero fazer” e se converteram num sucesso comercial. Esse sucesso comercial é muito relativo.
Croquis para a coleção Gênesis, apresentada na Bienalsur, que se refere à história dos povos originários e imigrantes da América Latina. Imagem: Reprodução
CONTINENTEVocê, que acompanha a cobertura de moda, o que acha da crítica de moda hoje? RONALDO FRAGA Eu nem acompanho.
CONTINENTEVocê não lê o que falam sobre o seu trabalho? RONALDO FRAGA Não. Muito pouco. E, na verdade, nós não temos uma crítica de moda no país, no mundo. Com a democratização da roupa, veio também a democratização da informação. Então, por exemplo, com os blogs de moda, todo mundo passou a ter opinião. Mas os de moda são muito aquilo “Compre isso, olhem como eu fiquei bonita”. E ganha muito a blogueira que usa e indica aquela peça. Isso não é crítica de moda. Então, a crítica acabou. Mas não só a crítica de moda, a crítica em geral. A turma do teatro reclama que não tem mais crítica de qualidade no teatro. A turma da arte contemporânea também. Hoje, são raros os críticos.
CONTINENTEHouve a época dos superestilistas, das supermodelos e agora é a época das superblogueiras, e a quantidade de seguidores é seu trunfo. RONALDO FRAGA Houve um tempo que era o colunista social. Ele falava assim: “Moçada, olha essa festa, olha isso; consumam esse bufê, essa decoração, façam essa roupa em tal lugar”. E hoje é a blogueira. Tudo vem e vai. O que me incomoda é que perdemos a qualidade da escrita e o aprofundamento. Por outro lado, hoje o estilista pode ser músico, arquiteto, artista. O arquiteto pode fazer uma coleção de moda. Logo, uma blogueira pode escrever também sobre moda, se ela quiser. Essa face democrática é a cara deste tempo. Mas a blogueira vai passar.
CONTINENTEVocê acredita que é apenas um fenômeno? RONALDO FRAGA É um fenômeno e ele já aplacou. Antes, ele assustava. E, mesmo dentro desse universo, existem blogueiras e blogueiras. Aquela coisa da blogueira que diz “Amigas, olhem, estou usando o esmalte roxo”, o tempo dela vai passar também. Virá outra geração. Mas sempre a manada vai precisar de alguém que coloque a cabeça à frente pra poder seguir.
CONTINENTE Você não tem nenhum contato com elas? RONALDO FRAGA Não. Muitas me prestigiam, vão aos meus desfiles, à minha loja, mas eu também não tinha muito contato com jornalistas de moda. Sempre foi uma relação cordial.
CONTINENTE As redes sociais estão fabricando ícones da moda. Antigamente, a criação dos ícones da moda era gradativa, Jackie O, Audrey Hepburn, David Bowie, e agora são essas figuras efêmeras. RONALDO FRAGA Acho que isso sempre teve. Só que agora vai no ritmo deste tempo, que é acelerado. Então, esse grande ícone da moda se esvazia muito rápido. Um exemplo era a força da Lady Gaga, quando ela apareceu, e, depois, o que ela virou. Porque começam a aparecer outras. É tudo muito rápido. É a cara deste tempo.
CONTINENTEPor que é tão difícil haver estilistas com uma postura questionadora como a sua? RONALDO FRAGA É difícil e isso me surpreende, porque essa é uma das facetas da moda. E pouca gente usa isso. Na história, você tem Vivienne Westwood, em Londres, tem os japoneses… Todos eles com uma trajetória longeva. Os japoneses, como (Yohji) Yamamoto, continuam sendo desfiles concorridos. Estão há 40 anos fazendo sucesso porque têm um propósito. E não têm essa coisa de entrar e sair da moda. Por isso eu não saio do meio acadêmico. Estou sempre estimulando, provocando a nova geração de estilistas a pensar a moda para esse lugar além da aparência. Quando estava no Conselho do Ministério da Cultura, eu falava de repensar o ensino de moda no Brasil. O Brasil é o país que mais tem escola de moda no mundo e, se bate no liquidificador, não dá meio copo.
CONTINENTEEssa sua postura diante da moda começou com o contato com o trabalho de Zuzu Angel, não é? Gostaria que você falasse sobre a importância dela no seu trabalho. RONALDO FRAGA Eu era um adolescente no final da ditadura militar. Lia muito a literatura política e, numa dessas leituras, li um livro de Zuenir Ventura que tinha um capítulo sobre Zuzu Angel. Essa mulher fez com coragem o que muitos intelectuais não fizeram. Enquanto o Chico Buarque e Francis Hime levavam a máquina de escrever para a curva de São Conrado para escrever cartas, tirar xerox e depois jogar a máquina no mar, para que não fossem vistos, a Zuzu, não. Enfrentava todo mundo e acabou pagando com a própria vida. Mas, quando li aquilo, não falei “Vou ser um estilista”. Isso foi pelo desenho, tempos depois. Fui para o exterior, ganhei um concurso, estudei em Nova York, estudei em Londres, voltei, teve o Phytoervas Fashion. Quem matou Zuzu Angel? foi a minha segunda coleção para o São Paulo Fashion Week. Curiosamente, achava que todo mundo conhecia Zuzu. E muitos jornalistas de grande veículos perguntavam “Ela vai estar na primeira fila?”. Ninguém nunca tinha trazido esse tema da política e da tortura militar para a moda. Quer dizer, Zuzu trouxe, como caso isolado, e foi assassinada. Não se falou nisso, porque a ditadura abafou. Só no governo Fernando Henrique assumiu-se que ela tinha sido realmente assassinada. Pra você ter uma ideia, todo ano me convidavam para ir à Argentina e sempre pediam para que eu falasse da Zuzu Angel. Porque é algo muito caro. Nenhum estilista argentino trouxe isso para a moda.
CONTINENTE E eles são muito politizados. RONALDO FRAGA São. Mas ninguém trouxe. Agora, vivemos tempos conformistas em tudo, a arquitetura está um lixo, toda igual. O que estão fazendo com as orlas das cidades? Você está em Boa Viagem, em Iracema, em Camboriú e está tudo a mesma coisa. São tempos conformistas. Mas temos que resistir e reagir. Hoje, como toda época, é arriscado ser uma pessoa de reação. Essa noite sonhei que estava sendo fuzilado. Acordei às duas da manhã, sentia as balas entrando. De onde veio esse sonho?
Desfile Quem matou Zuzu Angel?, na São Paulo Fashion Week de 2001, em que homenageou a estilista carioca, morta pela ditadura militar em 1976. Foto: Richnner Allan/Divulgação
CONTINENTEComo está a moda do Brasil lá fora? RONALDO FRAGA A moda do Brasil lá fora não existe. O que existe é a marca Brasil, que é muito forte. Mesmo com toda a desgraceira, o Brasil é um país que desperta desejo. Nós somos jovens, sedutores. O brasileiro é bonito, feliz e bem-humorado, acima de qualquer coisa. A fonte da eterna juventude está aqui. Nós temos a mata, a música. Então, nessa esteira, tudo que o Brasil faça, desperta interesse, até a roupa, até a moda. Mas o Brasil não conseguiu emplacar nenhuma marca de produto lá fora. Nem Havaianas. Os chineses vieram e detonaram a Havaianas.
CONTINENTENem Francisco Costa? RONALDO FRAGA Francisco Costa é um querido e é um grande designer, muito sério. Mas ele trabalhou na maison Calvin Klein e não trabalha mais, já veio outro. Então, não tem essa grande associação. Existe a associação de mundinho, mas não de pensar enquanto moda brasileira…
CONTINENTEEle não imprimiu a marca dele? RONALDO FRAGA Ele fazia uma moda de padrão americano. Ali, não tinha Brasil. Poderia ser um chinês. Ele fez com competência, mas a gente sabe que não é cultura brasileira.
CONTINENTEQueria saber de você sobre a extinção da figura da costureira. Qual a importância dela na moda e na tradição? Você até já fez uma homenagem a elas. RONALDO FRAGA A importância da costureira e do fazer é o bem material. É como se você tirasse de Pernambuco o que de tradicional vocês têm na música, o coco, o cavalo-marinho. Nem estou falando da roupa, mas da manifestação musical. Na moda, é a mesma coisa. Então, o saber e o fazer tradicional, o jeito de fazer, de pensar, seja numa renda, nos acabamentos das exímias costureiras de Minas. Hoje, empurram pra indústria, que faz a produção em série. O papel da costureira na formação da moda como fenômeno cultural no Brasil é também pouco citado. Não tem nenhum compêndio da história da moda que fale, por exemplo, das costureiras de família. Em Minas, igual ao médico da família, havia a costureira da família. Ela costurava a roupa da criança até do velho. Da festa de formatura até o enterro.
CONTINENTEE hoje elas estão trabalhando em lojas de ajustes. RONALDO FRAGA Elas estão em extinção, porque as filhas não querem ser, os filhos de alfaiates também não querem ser alfaiates. Perdemos em qualidade não só da matéria-prima, mas também da qualidade do trabalho. Isso dá um rombo cultural gigantesco. A gente pode até falar de um passo à frente, mas vou falar do que se perde enquanto história. É difícil você pensar e analisar a imigração italiana no Brasil, de São Paulo e para o Sul sem o ofício têxtil. A história de Pernambuco, por exemplo, passa pela renda renascença, da qual pouca gente sabe a história. Tem coisa que deveria ser ensinada na escola, se a gente pensasse numa revolução no ensino. Quando fiz a coleção aqui em Pernambuco, fui também à Itália, Florença e Veneza, para pesquisar. E, quando via a renda de lá, observava que a nossa tinha uma melancolia. De onde vem essa melancolia? Era tradicional, na Veneza renascentista, que a criança começasse a aprender a fazer a renda renascença aos seis anos de idade. Então, ela fazia dos seis aos 12 anos. Porque, aos 12 anos, já teria um enxoval pronto para casar. E casava aos 12, 13 anos. E, numa família italiana de posses com uma filha única, a menina se apaixonou, aos 15 anos, por um membro de uma família de um concorrente político. Aí, o pai pediu ajuda à Igreja para resolver essa pendência. Parte do dote seria doado para a igreja. Eles resolveram mandá-la para o Convento de Olinda. Ela veio para cá aos 16 anos. Viveu até aos 94 anos, fazendo renda. E, nos últimos 20 anos, a dama de companhia era uma paraibana. A italiana ficou confinada no convento e fazia a renda. Daí surgiram o ponto abacaxi, o ponto pipoca, que eram as coisas vistas no entorno dela. Então, quanta história de amor e sofrimento que tem aquilo ali. A dama de companhia paraibana vai para Pesqueira visitar as primas. E fica um ano. Ela tinha uma tia que tinha 14 irmãs e lhe ensina o que aprendeu durante os 20 anos com a italiana. E, dali, vai para Monteiro, onde morre. Por isso são os dois polos de renascença, Pesqueira e Monteiro. Isso é história de formação dessa região, de formação do Brasil.
Ronaldo Fraga na Casa de Olinda, residência que ele convenceu a amiga mineira Cibele Teixeira a comprar, depois que passou o Carnaval de 2008 ali. Foto: Ricardo Labastier
CONTINENTEAinda persiste a pergunta: moda é arte? RONALDO FRAGA Não. Aliás, o que é arte, se a gente for pensar? Nem todo chef de cozinha é artista. Tem gente que cozinha e é cozinheiro. Tem gente que pega comida e faz arte. Nem todo arquiteto é artista. Nem todo arquiteto é Oscar Niemeyer, que marca um tempo, que traz uma assinatura. E nem todo estilista é Rei Kawakubo ou Balenciaga. Nunca briguei pra moda ser entendida como arte, a moda tem que ser entendida como cultura. Até a moda que se faz na Riachuelo, aquilo é consumo de cultura, é a cultura de um tempo. Pra mim, a moda é um ofício de usar o corpo como suporte de comunicação. Eu levo muito sério a coisa da roupa, porque é a sua mídia imediata. A sua roupa fala tudo.
CONTINENTEMas aí pode ser a escolha de um dia. RONALDO FRAGA O ato da escolha da roupa é um ato político. Tem uma coisa que é o tal do estilo. E estilo não se faz com uma roupa que você usou num dia. Estamos falando da roupa como comunicação e estilo. O estilo é comunicação. A Elle me convidou para entrevistar Caetano Veloso. Olha que roubada! “Roubada” porque é um ídolo. Você vai mexer com um ídolo? E eu não sou jornalista. Ele é uma figura que está no centro da cultura brasileira há 50 anos, já estreou arrebentando e não parou mais. Muito se falava do que o Caetano estava vestindo, do cabelo dele. Quando chega nos anos 1990, ele começou a usar os ternos italianos. A partir dali, houve um conformismo. Então, perguntei a ele se a moda perdeu a importância pra ele.
CONTINENTEAcredito que essa coisa de usar o terno é exatamente quebrar essa ideia que se tinha dele. RONALDO FRAGA Nos anos 1980, ele tinha 40 anos. David Bowie foi até o final. Mas, mesmo com o terno, transgredia. Hoje não tem terno, não tem nada. Você não vê essa coisa no Caetano. Ele é um tio. Ele está com roupa de tio.
CONTINENTEQueria aproveitar essa fala sobre Caetano e perguntar como é para você se vestir? Agora, você está de camisa e calça pretas. Mas sempre o vejo com roupas coloridas. RONALDO FRAGA Eu sou muito diverso. Hoje, acordei às 4h da manhã, não dormi direito por causa do fuzilamento (sonho) e, antes de vir pra cá, fui a São Paulo. Então, foi a primeira roupa que eu peguei. Não tenho muito essa coisa com a roupa, não. Mas, na verdade, alguém que tem este bigode e este cabelo, não precisa inventar muito com roupa, não. O personagem já está criado.
CONTINENTEVocê não tem o fascínio de comprar roupa? RONALDO FRAGA Não. Eu não tenho muito isso da compra. Tem uma coisa, eu sou muito do conforto. Acima de tudo, pelo conforto. Estou sempre preparado pra ir. Minhas malas de viagem são muito pequenas. Vou pra China com aquele tamanho de mala que eu vim pra cá, pra não virar uma bola de chumbo. Minha briga com a minha mulher é isso. Nós brigamos muito pouco. Mas essa demora dela se arrumar… Se ela vai sair, me pergunta quatro vezes se a roupa está boa. Eu digo “Tá ótima!” e ela volta do quarto com outra. “Mas, que sofrimento é esse?!”, pergunto. Ela podia se libertar desse sofrimento. E você enxerga longe quando uma pessoa é liberta disso. Quem tem um estilo, tem uma facilidade maior com as escolhas.
CONTINENTETenho uma pergunta sobre aquela polêmica de 2013, a da peruca de Bombril no desfile sobre o futebol. Qual a lição que você tirou daquele episódio? RONALDO FRAGA Fiquei muito chateado com aquela história. Eu falava no desfile justamente do inverso do que me acusaram. Falava do preconceito no início da história do futebol e do futebol como única vitória da mestiçagem no Brasil. Um esporte que foi inventado pelos chineses, normatizado pelos ingleses e apropriado pelo Brasil. O brasileiro imprimiu uma marca ali. Mas até imprimir essa marca, os negros tinham que se pintar de branco pra poder entrar no campo. Não podiam sequer assistir, estar na arquibancada. E alisavam o cabelo com as coisas mais absurdas. Então, quando coloco o cast com os penteados dos anos 1920, 1930, usando o Bombril, foi como “Agora, a gente faz o que a gente quiser, porque nós dominamos isso aqui”. Na sala de desfile foi muito tranquilo, porque estava escrito, estava dito. Aí, uma blogueira entrou no backstage, e a coitada foi fazer uma matéria de forma superficial e já tuitou imediatamente. A chamada era “Ronaldo Fraga homenageia negros com perucas de Bombril”. O Emicida viu essa frase e disse “Matem ele!”. O negócio fez Pow!. Isso foi trending topics por mais ou menos um mês. Tive que responder no Supremo em Brasília, na Secretaria de Segurança Pública em São Paulo. Obviamente, fui absolvido por todos eles, porque tinha toda a documentação do release comprovada e meu histórico. Aquilo não foi o que eu quis dizer. Mas, por mais que eu me considere pardo, minha avó seja negra, que a família do meu pai seja de negros, que meus primos sejam mais escuros do que eu, só um negro, que é estigmatizado e que ouviu essa história do Bombril desde criança, sabe a dor que isso tem. Então, eu acho que tem que brigar, sim. Mas o que acontece é que a gente vive uma época de um tribunal de pedras a esmo. Exigiam que eu pedisse desculpa. E eu não pedi, porque não me sentia culpado. Eu respondi sobre aquilo, mas as pessoas não liam, não queriam ver. Aí, se você pergunta, “Se arrepende de ter feito?” Não me arrependo. “Você faria de novo?” Não faria. Evidenciou-se pra mim, ali, a falta de um desentendimento da moda, porque se fosse uma escultura numa galeria de arte, se fosse uma videoarte, um cinema não teria problema, mas a moda, não. A moda tem que ser anglo-saxônica, tem que ser a loira com o casaquinho de oncinha e tem que ser Gisele Bündchen. Ninguém para pra pensar: “Gente, ele não fez isso por racismo, porque isso aí não vende. Ele venderia, se fosse a loira de cabelo liso, será que ele ia fazer só por conta de racismo?” As cabeças pensantes, quando viram pra onde a coisa estava indo, e saíram em minha defesa, o negócio já tinha bagunçado demais. São tempos burros, cegos e míopes. Tem uma coisa, tudo é uma faca de dois gumes. Uma vez que você tem visibilidade, vai vir pedrada. Você tem que se habituar com a crítica. Têm muitos colegas que se protegem demais. E, ao se proteger, você não faz. Quando eu falei que ia criar uma coleção sobre refugiados, alguns disseram que não tinha nada a ver. Da mesma forma quando eu desenvolvi a coleção sobre Carlos Drummond de Andrade. Ninguém fazia. Hoje, é normal uma coleção inspirada na literatura. Não era, na época. Então, depois da repercussão da coleção dos refugiados, foi parar na ONU. Essa e a coleção da Transfobia são coleções políticas. Apanha quem põe a bunda na janela. A roupa é um manifesto político. O que a gente fala em política no Brasil associa-se à “polititica” de Brasília. O seu posicionamento no mundo é a sua postura política. A moda é o meu instrumento para isso.
Desfile em homenagem ao futebol provocou polêmica com o uso de Bombril na cabeça das modelos, estilista foi chamado de "racista". Foto: Reprodução
CONTINENTEVocê também se posiciona muito no Instagram, não é? RONALDO FRAGA E corro muito risco, porque, às vezes, num post, eu perco 300 seguidores, o que não me incomoda. Mas o problema maior é que eu adoro provocar essa pintofobia que o Brasil vive. O corpo da mulher pode ser exposto de qualquer jeito, mas, se põe um pinto, aí joga pedra. De vez em quando, vou lá provocar as minhas Perpétuas. Mas provocando e trazendo a arte, sabe? Porque eu acho que a gente está vivendo um momento muito perigoso e tenho muito receio aonde isso vai chegar. Não dá pra brincar com isso.
CONTINENTETeve algum momento em que bateu uma crise por estar num meio que estimula tanto o consumismo, a vaidade, o preconceito, pelo padrão de beleza que estabelece? RONALDO FRAGA Desde sempre e até hoje. E isso me gera um inconformismo.
DÉBORA NASCIMENTO é repórter especial da Continente e colunista deste site.