É possível remodelar uma casa por completo: pintar suas paredes, trocar todos os seus móveis e objetos decorativos, dando-lhe uma aparência agradável, até mesmo cordial. Ainda assim, por mais eficazes que sejam os recursos para tentar dar-lhe uma nova feição, as bases que firmaram sua construção permanecem as mesmas. Se o Brasil é uma casa, ainda que tenha passado por diversas redecorações, suas estruturas continuam no mesmo lugar, e suas paredes estão impregnadas com as memórias de um passado assombroso.
Foi investigando os pilares que sustentam a casa-grande até os dias de hoje que os diretores Ian Abé, Ramon Porto Mota, Gabriel Martins e Jhesus Tribuzi realizaram O nó do diabo. O longa-metragem traz uma abordagem do cinema de horror para compreender os resquícios da escravidão no Brasil. O filme é assinado pela Vermelho Profundo, produtora sediada em Campina Grande, no interior da Paraíba, que se dedica ao cinema de gênero – filmes facilmente reconhecíveis pelo espectador como ficção científica, policial, comédia, terror etc. –, no caso de Nó, o grande terror que foi (e ainda é) a escravidão no Brasil. O filme havia sido originalmente concebido tanto como uma série para a televisão quanto como longa-metragem, com cinco contos que se passam na mesma fazenda e na mesma casa em tempos históricos diferentes, e tem sido bem-recebido em diversos festivais em todo o Brasil desde que estreou no Festival de Brasília este ano. Recentemente, a ficção foi exibida no Recife, durante o Janela Internacional de Cinema.
Partindo de um futuro próximo, que muito tem em comum com o passado, o longa-metragem faz um percurso que tem início em 2018 e recua até 1817, evidenciando os fantasmas que perseguem a sociedade brasileira até hoje: o poder branco, racista, patrimonialista e patriarcal. “Nós construímos uma identidade nacional que é mentira, que é fabricada. A ideia do homem cordial, da democracia racial. Existe essa estrutura tão poderosa e organizada, mas ela não é explícita, não é questionada. A gente vive num país violento, onde quem sofre diariamente com a violência é a população negra e pobre. Tentamos escancarar isso com o filme, como forma de enfrentamento”, pontua o diretor Ramon Porto Mota, sobre a violência presente em todos os cinco contos do longa-metragem, estratégia usada para intensificar o discurso crítico.
Segundo os diretores, a casa onde Nó foi gravado – e que passa por várias remodelagens ao longo da narrativa – também é “mal-assombrada”: foi erguida por escravos, no ano de 1874, no município de Pilar, na Paraíba, e pertenceu ao escritor José Lins do Rego. Para ressaltar a elite dominante do país (que, como no tempo das capitanias hereditárias, passa as propriedades de pai para filho) como elemento de fantasmagoria na narrativa, os diretores escalaram o ator Fernando Teixeira para o papel de senhor de engenho nas diversas fases do filme. “Acho que é um gesto político do filme colocar um único ator para interpretar vários senhores de engenho, porque opera uma certa inversão, homogeneizando a figura branca e multiplicando os protagonistas negros. Você acaba tendo um branco como coadjuvante, enquanto essas subjetividades negras são multiplicadas e plurais”, enfatiza o diretor de fotografia Leonardo Feliciano.
A potência das personagens femininas também é algo que se destaca na trama. No elenco, rostos recém-conhecidos do cinema nacional e pernambucano, como Isabél Zuaa (Joaquim, de Marcelo Gomes) e Cíntia Lima (Cheiro de melancia, de Maria Cardoso), contracenam com Zezé Mota numa resistência quilombola, trazendo elementos urgentes de discussão. “O cinema de horror é geralmente um lugar onde a mulher tem um destaque maior. Então, essa nossa vontade de destacar essas personagens em cena também vem de uma tradição do cinema de gênero. Quisemos colocar personagens femininas justamente enfrentando esse poder que não é só racista, é patriarcal”, explica Ramon. A próxima exibição de O Nó do diabo está marcada para o dia 3 de dezembro, na 12ª edição do Festival Aruanda (PB), com expectativa de pequena distribuição para 2018.
SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente, estudante de Jornalismo da Unicap e fotógrafa.