Guy Veloso
Nós que aqui estamos
TEXTO Adriana Dória Matos
01 de Dezembro de 2017
'Penitentes, Laranjeiras', Sergipe, 2002
Foto Guy Veloso
[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 204| dezembro 2017]
Pessoas que se chicoteiam até sangrar para penitenciar-se. Gente que anda léguas, descalça, de joelhos ou se arrastando, para chegar a um templo e pagar uma promessa. Fiéis que entregam seu corpo ao transe, abrindo-se à experiência direta da incorporação. Os que acreditam no fim do mundo e sobre isso apregoam. Os que rezam pelas almas do purgatório. Massas de indivíduos que se espremem, acotovelam e unem seus suores, lágrimas e orações no percurso de uma procissão. Sacrifício, fé, êxtase, misticismo. Quando alguém se entrega fervorosamente a uma crença, não importa a matriz religiosa, pois o princípio da devoção é o mesmo, iguala todos.
Se essa é a realidade dos devotos, as fotografias de Guy Veloso a tornam clara, evidente. Longe de fazer proselitismo, ele opera uma imersão em várias comunidades religiosas brasileiras, sobretudo naquelas que sobrevivem no espaço mítico que chamamos de Brasil profundo, esteja ele geograficamente localizado nas brenhas, nos sertões, nos recônditos, ou em lugares onde a religiosidade prevalece, mesmo na proximidade dos centros urbanos.
Procissão de Nossa Senhora de Fátima, Belém, Pará, 2005. Foto: Guy Veloso
O que torna as fotografias desse paraense magnetizantes não é tanto o domínio técnico na captura dos temas ali retratados (embora ele esteja presente), mas a proximidade que há entre o fotógrafo e o tema eleito. Ainda – e sobretudo –, a aproximação com ritos capazes de causar estranhamento, medo, angústia, aversão, ojeriza, por trazerem vivências do passado ao presente e serem captados pelo fotógrafo em horas de culminância, ardor, violência; situações que quase sempre contradizem – e questionam, por sua simples existência – o racionalismo e a matéria. As fotos de Guy Veloso parecem nos dizer que o invisível está entre nós. E isso não se consegue apenas com as técnicas que o meio oferece, mas com envolvimento físico e psicofísico do fotógrafo. Guy Veloso enfrenta o corpo a corpo com o seu tema de modo íntimo e visceral.
Vale do Amanhecer, Planaltina, Distrito Federal, 2013. Foto: Guy Veloso
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Num país de tanta religiosidade e sincretismo religioso como o Brasil (no Censo 2010, 87% da população se declarou cristã), este é um assunto que atrai diferentes gerações de fotógrafos, por isso contamos com vasto acervo a esse respeito. Do fotojornalismo e ensaísmo à documentação e antropologia visual, encontramos variados graus de aprofundamento no assunto, com abordagens que enfocam, principalmente, manifestações do catolicismo popular e religiões de matriz africana.
Procissões, Semana Santa, Finados, variadas festas do calendário litúrgico e de terreiros, oferendas aos orixás, com seus elementos e protagonistas carregados de beleza dramática e, tantas vezes, trágica estão nos acervos de muitos fotógrafos. Entretanto, poucos são os que persistem nessas aproximações e realizam um mergulho, estabelecendo convivência estreita com os grupos religiosos, que, nesses casos, resulta em cumplicidade e relação de confiança mútua, quando não em conversão.
Romaria de Bom Jesus da Lapa, Bahia, 2002. Foto: Guy Veloso
Dia da Consciência Negra, União dos Palmares, Alagoas, 2010. Foto: Guy Veloso
Na história da fotografia brasileira tornaram-se clássicos trabalhos de documentação da religiosidade nacional – em destaque aquela circunscrita às regiões Norte e Nordeste – empreendidos por fotógrafos como o piauiense José Medeiros (1921-1990), e o seu belo ensaio sobre a iniciação de filhas de santo da Bahia, feito nos anos 1950 para a revista O Cruzeiro, e o francês radicado no Brasil Marcel Gautherot (1910-1996), que fotografou várias procissões de Semana Santa e do Círio de Nazaré, entre os anos 1940-70. Aquela foi uma geração de fotógrafos modernos, motivados a desbravar e documentar um Brasil desconhecido pelas populações urbanas.
Entre os fotógrafos dessa geração, que se dedicaram ao tema da religiosidade no Brasil, o francês Pierre Verger (1902-1996) é um caso especial. Verger estabeleceu uma relação íntima e duradoura com o candomblé na África e no Brasil, que transcendeu em muito a documentação fotográfica, tornando-se ele um iniciado, que na conversão ganhou a denominação Fatumbi, “renascido pelo Ifá”. Seu trabalho etnográfico resultou em importantes registros textuais e visuais, publicados em livros como Orixás, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos e Ewé – O uso das plantas na sociedade iorubá.
Transe, Umbanda, Belém, Pará, 2015. Foto: Guy Veloso
Tambor de Mina, Belém, Pará, 2011. Foto: Guy Veloso
De um período mais recente, início dos anos 2000, três livros podem ser destacados pela qualidade e simetria na abordagem dessa temática. Benditos, do cearense Tiago Santana (Tempo D’Imagem) e Irredentos, do baiano Chistian Cravo (Christian Cravo e Áries Editora), foram lançados em 2000, enquanto que Imagens fiéis, do paulista José Bassit (Cosac & Naify), saiu em 2003. São ensaios em preto e branco, narrativas que variam do mais ensaístico e subjetivo, como ocorre com Santana e Cravo, ao mais documental, como em Bassit. Os três se meteram pelos confins do Ceará e Bahia, selecionando os roteiros de grandes romarias e concentração da mais arraigada religiosidade popular (embora a documentação de Bassit tenha se expandido para centros religiosos de São Paulo e Minas Gerais).
Logo associamos a publicação desses três livros à passagem do milênio, quando as populações foram mobilizadas por narrativas do fim do mundo (o que nos leva ao milenarismo e ao sebastianismo por eles revisitados) e refletiram sobre o que estava sendo deixado para trás com o século XX e o que teimava em subsistir no XXI, contra toda lógica, desenvolvimento e globalização. Exatamente como ocorria com aquelas seitas, sociedades e grupos, que mais pareciam renascidos ou remanescentes dos tempos dos Cruzados e Templários, dos peregrinos e penitentes, de Dom Sebastião de Portugal; ou dos tempos do Brasil Colônia e das catequeses compulsórias, antes, muito antes dos canais religiosos de TV e de expulsões televisionadas de demônios.
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Guy Veloso surge no contexto dessa geração de fotógrafos hoje na faixa entre 40 e 50 anos (ele é de 1969) que se detêm (ou se detiveram) sobre o tema da religiosidade, que atrai apreciadores de fotografia e arte, acadêmicos e pesquisadores que, entretanto, poucas vezes se declaram religiosos ou espiritualizados. Nesse caso, parece se tratar de um interesse mais objetivo, de viés antropológico, sociológico, histórico ou, simplesmente, estético e documental.
Ser religioso distingue Guy Veloso como um fotógrafo e o seu tema, desde os primeiros registros que fez com câmera analógica nos anos 1980. Ele conta que sua atração por manifestações religiosas se deu ainda no ambiente doméstico. Sua avó morava numa rua de Belém por onde passava a procissão do Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações nacionais de fé católica, que foi onde ele começou a unir os dois interesses, religião e fotografia, já que todo ano acompanhava a procissão, que passou a fotografar aos 18 anos.
Círio de Nazaré, Belém, Pará, Brasil. Foto: Guy Veloso
Embora nem sempre os temas escolhidos pelos fotógrafos estejam diretamente relacionados às motivações pessoais, este não é o caso de Guy, que se declara espírita e investe na busca pelo autoconhecimento relacionado à religiosidade, sendo marco dessa jornada a trilha que realizou em 1993, a pé, pelo Caminho de Santiago. A experiência resultou no seu primeiro livro, Via Láctea – Pelos caminhos de Santiago de Compostela (Tempo d’Imagem, 2000, 2ª edição), narrado em texto e imagens. Ele tinha 23 anos e acabara de concluir o curso de Direito, mas voltou da viagem sabendo que não exerceria a profissão. Fez Publicidade, seguiu carreira pública, sempre com a fotografia em paralelo, até que investiu completamente na fotografia. Um insight sobre sua temática aconteceu numa viagem a Juazeiro do Norte, lugar para onde sempre retorna. Ele conta que todo ano, desde 1998, vai à cidade em novembro, acompanhar as romarias de Finados.
Aqui chegamos ao ponto em que o tema religiosidade se torna sombrio e assustador para a maioria das pessoas, que é quando entramos no universo sofrido das promessas, sacrifícios e penitências. E são justamente os penitentes que, hoje, constituem o acervo mais denso da obra de Guy Veloso. No recém-lançado livro Guy Veloso (Ipsis, 2017), sexto volume da Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira, ele conta o modo de aproximação que estabeleceu com os penitentes.
“Em 2002, fiz minha primeira viagem a Sergipe durante a Quaresma para procurar os grupos de penitentes. Boa parte são grupos secretos. Consegui, depois de muita conversa e contando com a ajuda de pessoas de Sergipe, como a professora Maurelina dos Santos, conhecê-los e ter permissão para fotografá-los. E, ao contrário do grupo original de Juazeiro, são pessoas comuns de várias religiões que, pela tradição familiar de gerações, durante a Quaresma e principalmente na Semana Santa, vão às ruas cobertas com panos ou com mortalhas, rezando pelas almas presas no Purgatório, que eles acreditam ainda estarem sofrendo. As almas sentem fome e o alimento é a oração. Eu fiquei louco com esse tema.”
Escorpião, Encomendação das almas, Petrolina, Pernambuco, 2015. Foto: Guy Veloso
Alguns desses penitentes – homens – praticam o autoflagelo, somente parando de se açoitarem quando suas vestes estão banhadas de sangue.
Esse tema se desdobrou ao longo de todos esses anos na trajetória de Guy Veloso (em concomitância a outros), que partiu para uma investida mais abrangente a respeito dele que apenas o registro fotográfico, gravando áudios e vídeos e arquivando em seu acervo pessoal textos e objetos usados pelos penitentes, como as vestes e mortalhas, as matracas e os chicotes – todos presenteados a Guy pelas irmandades documentadas.
Em 2010, durante a 29ª Bienal de São Paulo, ele apresentou o projeto Penitentes (2002-2017), que tem o acompanhamento da curadora de Rosely Nakagawa.
Isso só foi possível, conta o fotógrafo, pela relação de confiança que estabeleceu entre ele e os grupos, como ocorreu com a irmandade mais antiga de Juazeiro da Bahia, fundada em 1901, que o integrou. “Ainda sobre os Penitentes, há uma história que é a que mais me toca: após fotografar por 7 anos seguidos em Juazeiro da Bahia o mesmo grupo de ‘Alimentação das Almas’, a sua chefa, Dona Jesulene Ribeiro, anunciou para todos que eu era oficialmente membro daquela confraria. Tinha os mesmos deveres e privilégios, só não ia coberto com panos. E é assim até hoje. Eu virei meu próprio tema”, conta o fotógrafo, no livro Guy Veloso.
Tanto é assim que, este ano, ele teve a individual Penitents: world end rituals of faith exposta na Museo las Americas em Denver, no Colorado, durante a Biennial of the Americas, e lá participou de um debate com penitentes norte-americanos de New Mexico. Não era apenas o fotógrafo que estava ali, mas um penitente brasileiro, encarregado de trocar informações, orações e objetos com penitentes norte-americanos. “Depois de 500 anos, um representante de um grupo de penitentes encontra outro de uma mesma tradição, vinda da Península Ibérica”, comentou Guy. “Tanto as daqui como as de lá são irmandades estigmatizadas, que praticam rituais com tendência ao segredo. Mesmo em línguas diferentes, os cânticos e sonoridades são os mesmos.” Com tudo que já viveu, pesquisou e coletou junto a esses grupos, Guy Veloso pensa em desenvolver um projeto de documentação que registre para a história as quase 200 irmandades que visitou em todo Brasil. Aliás, diz ele, foi nas suas hipóteses e constatações em campo que ele confirmou a existência de grupos penitentes em todo o país.
Da mesma forma íntima, respeitosa, discreta e empática que se aproximou dos penitentes, Guy Veloso aborda demais grupos religiosos com os quais estabelece contato para documentação. Ele destaca que, ao longo de todos esses anos, mantém a mesma conduta de trabalhar com o mínimo de equipamento, uma câmera com lente 50 mm, sem uso de flash, colete ou qualquer elemento que lembre os aparatos do fotógrafo profissional. Ele busca, ao máximo, ficar perto, ou mesmo invisível, diante dos seus temas, seja num terreiro de candomblé, umbanda ou Tambor de Mina, numa procissão ou festividade católica, entre os adeptos de Tia Neiva, no Vale do Amanhecer. O que ele deseja expressar nas suas fotografias une os indivíduos das mais variadas religiões: a conexão com o transcendente e com o mistério.
ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da Continente e professora da Unicap.
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EXTRAS:
- Leia artigo A fé na encruzilhada, de José de Souza Martins, publicado na revista Zum, sobre o trabalho de Guy Veloso.
- Para ver mais imagens:
Instagram de Gui Veloso
Catálogo Penitentes