“Vozes simbolicamente vindas de lugares que antes estavam à margem agora procuram qualificar uma nova ordem, diversa do paradigma moderno e das grandes narrativas totalizadoras, de progresso e desenvolvimento, que deixaram um legado histórico traumático, e do cientificismo de outra hora, que nos fez crer na onipotência do homem e de sua tecnologia.” O trecho faz parte da argumentação apresentada pela equipe de quatro curadores convidados a integrar a 20ª edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que acontece desde o começo de outubro e se estende até 14 de janeiro no Sesc Pompeia, em São Paulo. A fala curatorial, publicada no catálogo da mostra, sintetiza as intenções também expressas no seu título: Panoramas do Sul.
Sendo que esse “sul” referido não é apenas geográfico, mas, sobretudo, uma demarcação política, uma ocupação territorial simbólica, que reflete questões históricas no campo da arte e, por extensão, da própria divisão mundial entre ricos e pobres, centrais e periféricos. Assim é que a mostra conta com a participação de 50 artistas de países de fora do eixo que vêm definindo as regras da arte, oriundos das Américas do Sul e Central (Brasil, Colômbia, Peru, México, Guatemala), da África (Benin, Mali, Nigéria), do Leste Europeu (Romênia, Lituânia, Turquia, Rússia) e de países como Índia, Camboja, Coreia do Sul, Líbano e Kuwait. Esse lugar de nascimento, entretanto, não serve de coleira, inclusive porque muitos desses artistas e suas obras estão desterritorializados ou em fluxo, interessados que estão também em discutir temas em perspectivas e suportes questionadores daqueles que se convencionou associar às “artes visuais” ou “artes plásticas”.
A premissa da mostra é justamente a de desfazer distinções entre categorias canonizadas. Solange Farkas, criadora do Videobrasil e sua curadora-geral desde 1983, disse à Continente que o seu lugar é o “da pesquisa, do dissenso e do risco”, referindo-se não apenas à história que vem sendo construída em 30 anos pelo festival e suas ramificações, mas especificamente à conceituação trazida por ele na edição agora em cartaz. Embora isso não esteja sinalizado de modo evidente na exposição, há um interesse claro da curadoria em trazer ao público discussões que estão na pauta dos países/pessoas ali representadas pelos artistas/obras e que se referem à violação do meio ambiente pelo capital, aos regimes políticos totalitários que nesses lugares estiveram ou estão em curso, ao questionamento das categorias de gênero, às manifestações de cultura popular local, às cosmovisões e cosmogonias, aos protestos, revoltas e a um complexo cenário de violência e violação.
Centro Satelital Espacial de Colômbia, vídeo de La decantadura (2015). Foto: Divulgação
Junte os pauzinhos e você estará diante de obras instigantes, criadas a partir dessas preocupações e experiências, muitas delas reunidas num só trabalho. Há material pesquisado, apropriado, inventado, ressignificado. Há obras em vídeo (somente nos primeiros 10 anos, o festival dedicou-se exclusivamente a essa mídia, embora conserve a marca), instalação, videoinstalação, site-specific, objetos, pinturas, desenhos, fotografias.
PRO HELVETIA Uma das vertentes importantes do Videobrasil é o estabelecimento de parcerias com instituições, grupos, centros de cultura e fundações ao redor do mundo para a promoção de projetos, intercâmbios, prêmios e residências artísticas. Nesta edição do festival, a fundação suíça Pro Helvetia chegou perto pela primeira vez para lançar o programa de intercâmbios culturais Coincidência, que está aberto à cena artística de todo o Brasil, bem como em cidades de países em que ela se instalou (Chile, Argentina e Colômbia).
Essa pode ser uma abertura de janela interessante para gente que atua em artes visuais e cênicas, design, literatura, tradução e música, assim como em categorias transdisciplinares, tanto aqui na América do Sul quanto na Suíça e nos países onde a fundação Pro Helvetia mantém postos (Itália, França, EUA, Egito, Índia, China e África do Sul). A comitiva que se encarregou de divulgar o Coincidência em São Paulo, cidade onde ficará sediada no Brasil, explicou que os eixos de discussão que nortearão as atividades do programa cultural de 2017 a 2020 são “memória, construção do território, conflito e pós-conflito, contemporaneidade e narrativas não modernas”. Claro está que o programa também visa à difusão da cultura suíça no mundo – inclusive havendo um programa específico para tradução de obras literárias de autores suíços para o português, por exemplo –, mas isso significa mais uma sugestão que uma restrição. Duas das obras premiadas no Panoramas do Sul pelo Pro Helvetia dão esse testemunho. 1) O trabalho em exposição da brasileira Mabe Bethônico, que foi apoiado pelo programa, combina performance e instalação e trata de três personagens suíços, um geógrafo, um ufólogo e um criador de museu de ficção científica. 2) Os artistas e cineastas colombianos Elkin Calderón e Diego Piñeros – que assinam La Decantadura – receberam o prêmio de residência artística na Suíça por conta do vídeo Centro Espacial Satelital (2015), que registra uma homenagem prestada por uma banda de jovens músicos a um laboratório de comunicações espaciais em completa obsolescência na Colômbia.
Mas, como fazer para participar desse intercâmbio? Benjamim Seroussi, coordenador regional do programa, explicou que o contato e a seleção não são feitos diretamente entre o Pro Helvetia e os artistas interessados, mas com uma mediação por parte de instituições locais. Três dos exemplos que ele deu em relação a Pernambuco foram a Fundação Joaquim Nabuco, o projeto Vídeo nas Aldeias e a galeria Mau-Mau. Informações sobre o Coincidência podem ser acessadas AQUI.
ADRIANA DÓRIA MATOS, jornalista, professora e editora da revista Continente.