Todos deveriam estudar mandarim, disse Bill Gates; pois o futuro é a China – e as peças dos brinquedos chineses se soltam e matam engasgadas milhares de crianças ao redor do mundo, tintas tóxicas se desprendem e vão cegar os olhinhos inocentes das criancinhas felizes com suas primeiras bicicletas. Os chineses têm a ética de uma nuvem de gafanhotos; tal um organismo viral, os chineses querem apenas sobreviver. O futuro do Globo já pode ser visto em Linfen, cidade mais poluída da China, onde uma mistura de carbono negro, arsênico e chumbo suspensos na atmosfera matam lentamente três milhões de habitantes. Se o futuro é a China, então estamos todos fodidos – e eu o mais fodido de todos porque não tenho como pagar um curso de mandarim ou de qualquer outro idioma. Só me resta usar as malditas gravatas chinesas, que se encolhem ante o calor do ferro de passar. – Barrufa com água que melhora! – diz a voz atrás de mim. – É, borrifa – resmungo para a Pequena Molambenta. – Ah. Vim dizer que o Velho tá morreno – me diz a Senhorita Ninguém, a boca suja de Ovomaltine que ela adora comer às colheradas, às escondidas. Não adianta reclamar, ela está sempre trocando o d pelo n e comendo: ou Ovomaltine ou os esses dos plurais. Ou ambos. Meia hora com ela e qualquer um vê que não tem jeito.
Cada pessoa tem um jeito só seu de enganar a tristeza. O meu é me concentrar no que estou fazendo e esquecer tudo em volta. Geralmente, dava certo. Também, sem emprego, sem dinheiro para arcar com a faculdade e sem algo para vender na praça (nem mesmo um sorriso de 32 dentes perfeitos), eu tinha poucas opções. E neste horrível tempo de vacas magras e ranger de dentes, bem no meio do período de provas e de uma gravata chinesa que não quer ser espichada, meu pai foi inventar de morrer. A menina, que ele havia recolhido na rua e mais ou menos morava conosco há uns oito meses, esperava à porta do meu quarto, e como eu voltara os olhos para a tábua de passar, ela insistiu: – Acho que o Velho tá morreno de verdade. Uma vez eu tive um gato e foi mesmo assim quando um carro atropelou ele: ficou chiano chiano chiano e depois pronto. Morreu. Em casa sempre fora cada um por si. Um velho por volta dos 70 anos (cujos cigarros e bebida o faziam parecer com 90), uma menina encardida sabe-se lá Deus com que idade e eu, um cara de 21. Mas agora aquele delicado equilíbrio tinha desmoronado de vez. A menina dizia ter 14, mas não passava dos 10, aposto, apesar da pele encardida e dos olhos de quem viu Roma ser incendiada. A qualquer momento, papai podia ser preso por pedofilia. Mas também é fato que a garota não estaria melhor nas ruas, à mercê de todo tipo de crueldade. Papai, apesar da língua ferina e de latir muito, não mordia. Era cuidadoso – 25 anos dirigindo ônibus e nunca sofrera um arranhão, apesar de demitido tantas vezes por dirigir em alta velocidade e/ou embriagado. – Escutou? O Velho tá morreno – repetiu a Pequena Molambenta.
– Como é que você sabe? Por acaso a senhorita fez algum curso de medicina pela internet e eu não estou sabendo? – Eu num já disse?! Um dia eu vi um cachorro morrer e ele ficou chiano chiano chiano do mesmo jeito que o Velho está agora. – Um gato, você disse um gato.
– Gato, cachorro, é tudo a mesma coisa… E teve aquele gato que era daqui. Ela está se referindo a um gato idiota que inventou de se enfiar num saco de cimento. Bastaram umas lambidas no cimento e a saliva deve ter petrificado no estômago dele. – Meu irmão também morreu assim. – Lambendo cimento? – Não… morreu logo, quero dizer. – Ah, bem!
"BATEI E A PORTA SE ABRIRÁ" E dentro do quarto haverá um velho morrendo. Isso não está na Bíblia – mas constato. A Senhorita Ninguém dessa vez não tirara a manhã para me aporrinhar em vão. Papai não iria mais me amolar. Que tipo de esperteza era aquela minha que servia para entrar numa universidade, mas não para ganhar dinheiro? Isso papai vivia questionando. Afinal, o presidente da República era analfabeto e o Silvio Santos não passava de um mascate e veja só aonde eles chegaram! É, papai tinha lá seus argumentos. – Pega o relógio, a aliança e a carteira dele antes que a ambulância do SAMU chegue – diz ela, e fica me olhando, desconfiada, como se o que acabara de dizer fosse algum tipo de blasfêmia. Sorri – ela sempre dá um sorriso besta quando se sente ameaçada. A Pequena Molambenta tinha razão. Não é porque a pessoa está morrendo que vai deixar de ser roubada. Não nesta cidade. Não no Brasil. Desabotoei a camisa grudenta de suor de papai, como nos filmes, e pus a mão em sua fronte. Papai ardia o ardor frio dos amaldiçoados. Estava com uns 300 graus de febre. A morte é quente, úmida e pegajosa – exatamente como o permanente ar rançoso desta cidade. A morte só é fria na cabeça dos desinformados.
– Se tu não pegar essas coisas agora o pessoal do hospital vai acabar fazeno isso – diz a menina. Por mais que a escorraçassem, ela sempre ficava ao alcance, alegre e prestimosa – exatamente como um cão de estimação. – Pega você – eu digo. Preciso telefonar.
QUEM PAGA COVEIRO ESCOLHE A MÚSICA Como estava sem crédito no celular, corri ao orelhão para telefonar para o irmão de papai, um cara que começara do nada e hoje possuía uma bela concessionária e, como todos aqueles jogadores negros da seleção brasileira de futebol, estava casado com uma loira, ainda por cima com 1/4 da idade dele; portanto, tinha vencido na vida. É claro que ele e papai não se falavam há muito tempo (e meu tio tinha bons motivos para isso), mas no câncer e na morte (afinal somos todos pré-cadáveres) ainda havia espaço para a solidariedade. Mas esperar pela solidariedade familiar me faz perder a segunda chamada da prova de Direito de Família, olha a ironia do destino – logo perderei a bolsa que me permite cursar uma das mais caras universidades do país –, como diabo farei para continuar no curso é o que preciso descobrir. Papai não poderia ter escolhido dia pior para morrer – até na hora de morrer o filho da puta aprontava.
Uns 30 minutos depois, um carro encostou à porta, dois funcionários da concessionária puseram papai dentro e sumiram na poeira. Eu não precisava me importar com mais nada. Eles cuidariam de tudo – entregariam papai moribundo ao hospital e, uma vez confirmado morto, lidariam com o enterro; um enterro decente – eu é que não iria reclamar das flores. Quem paga o enterro escolhe a música, as flores, além de receber pelas costas os comentários maldosos sobre como tudo foi de mau gosto. É preciso admitir que esse povo da rua amadurece cedo. A Senhorita Ninguém estava certa, o velho não durou duas horas no hospital. Meu tio acabava de me dar a notícia.
Tudo o que eu desejava era desaparecer antes que o proprietário do imóvel soubesse da morte e viesse correndo cobrar os três meses de aluguel atrasado. Inquilino morto não paga e papai não pagava coisa alguma nem quando estava vivo. Saber fugir é a aptidão mais crucial na vida dos animais mais fracos. Fugir é uma arte que os mais fracos não podem desprezar. Então, comecei a empilhar meus trapinhos e meus não poucos livros. Em criança, eu não furtava frutas – eu furtava livros, e nunca parei. Devo ter levado à falência umas 17 livrarias e desfalcado um monte de bibliotecas públicas, pois naquele tempo bom não havia câmeras de segurança ou sistemas de alarme; ah os cortázares os borges os dostoiévskis ganhados-comprados-furtados de sebos só se equiparavam às montanhas himalaicas de garrafas vazias de vodca gim pinga cerveja, pertencentes a papai. – Você nem teve pena dele – diz a Senhorita Ninguém. – Tu é muito ruim mesmo! O Velho era legal. Mas você nem chorou nem nada. – Como você pode saber o que estou sentindo? Virou psicóloga de uma hora para outra? Estou me acabando de chorar por dentro. Morrer antes do humilhante fraldão, antes da incontinência urinária; antes mesmo de a pele mostrar os primeiros sinais de manchas senis assinalando o bolor do tempo numa carne com data de validade vencida – papai não sabia a sorte que tinha.
Parágrafo único. Deixe para julgar seu pai quando tiver, ao menos, a idade que ele tinha quando morreu.
– E o resto das coisas? – quis saber a Senhorita Ninguém. – Sei lá. Vende. Ela me olhou com os olhos arregalados de quem não acredita em generosidades. Para aquela menina encardida, ganhar alguma coisa, qualquer porcaria, seria uma das formas que a felicidade podia tomar. E ela acabara de ganhar uma casa atulhada de cacarecos. – Eu posso pedir a um amigo meu que venha aqui me ajudar a pegar tudo? Eu ri, ao ver pelo canto do olho esquerdo os sofás desconjuntados como prostitutas velhas; o estofamento à mostra. Nem se o amigo dela fosse dono de ferro-velho! Geladeira, fogão, armários, camas – o que não estava se desmanchando pela ação dos cupins virava pó pela ação da ferrugem. Não havia tevê ou outro eletrodoméstico, pois foram todos vendidos/engolidos pelas mensalidades da faculdade, antes de eu conseguir a bolsa. Mas viver sem eletrodomésticos era uma constante lá em casa: sempre que conhecíamos o tempo das vacas magras e papai perdia o emprego, lá se ia a tevê, e os outros eletrodomésticos logo a seguiam. É bem provável que mamãe nunca tenha assistido a uma novela do início até o fim.
– Você pode trazer até o guarda, estou me lixando. Mas antes passa no mercadinho e arranja umas caixas pra mim. Ela corre como uma maluca e eu começo a rir porque não deixa de ser engraçado pensar que a Pequena Molambenta poderia ser minha irmã. Daí me lembro que eu já tenho uma irmã! Embora isso não tenha dado muito certo em nossas vidas. As circunstâncias me forçam a telefonar para ela. – Dona Maura não se encontra – diz a empregada. Se não se encontra, por que ela não procura um analista? Tive vontade de perguntar. Sou contra a pena de morte – mas abro uma exceção para algumas pessoas que atendem ao telefone. – O senhor quer deixar recado? – O pai dela morreu. O irmão dela mandou avisar. Diga só isso, obrigado.
A ELITE É PERFEITAMENTE DISPENSÁVEL – NÃO A RALÉ – Tem cachorro? – a pergunta veio de fora junto com o ranger do portão. Em dois segundos, a Senhorita Ninguém estava dentro de casa com um negro tamanho-família, com os olhos mais amarelos que os girassóis de Van Gogh. É claro que não havia cachorro na casa: afinal, não era um lar de verdade. Mas a frase devia ser praxe para ladrões e carteiros. – Este é o Alceu – aponta a menina. Não queria nem estar por perto quando a raspa daquele entulho chegasse à rua, mas sem demora o Alceu alçou toda a tralha de dentro de casa e equilibrou numa carroça de recolher “material reciclável”. Posso apostar que nunca ninguém esvaziou uma casa tão rapidamente – em algumas coisas a ralé é mesmo nota mil!
– A um real, só de discos eu estou feita! – exclamou a Senhorita Ninguém, com um leve tremor na voz. Eu podia apostar que sim. Dinheiro não traz felicidade – mas manda buscar numa Ferrari. Papai não tinha mais bandolim (vendera para pagar a conta de luz), também não tinha mais aparelho de som, mas se apegava à sua coleção completa de discos do Nelson Gonçalves. E qual a utilidade de um disco de Nelson Gonçalves nos dias de hoje? Não fosse a Senhorita Ninguém, é bem provável que eu pusesse fogo em tudo. Pois é o que o prefeito manda fazer com tudo, mesmo com objetos cuja queima é proibida, como baterias de celular e lâmpadas fluorescentes. Ela sai pulando em um pé só; atrás dela, como um Cristo sofredor, vai o Alceu e a carroça de entulho. Nessas horas, vê-se claramente que a Elite é perfeitamente dispensável – não a ralé.
CRIATIVIDADE PARA SURPREENDER ATÉ O DIABO Foi aí que notei que a menina tinha restos de esmalte vermelho em todas as unhas dos pés e das mãos. Chapeuzinho de roídas unhas vermelhas e o Lobo Mau, finalmente morto. Com um pouco de trato, a menina poderia ser bonita. Pelo jeito, o fato de papai ser um palerma não queria dizer que ele fosse um palerma em tempo integral. Entendo suas noites, as risadinhas espocando da menina e os grunhidos de papai. Ele: ho ho ho ho ho ho! e ela: hi hi hi hi hi hi hi! – Me morda, gorda! Me morda, gorda! – ouvia-se papai dizer, e a graça, se é que havia alguma, estava em a menina ser magra como um graveto. A diabetes tinha deixado papai impotente nos últimos anos; seja lá o que ele fizesse com a menina não seria pior do que ela encontraria lá fora. Mas esse povo está sempre levando a baixaria a patamares cada vez mais altos – sentado em seu barril de chope, no inferno, o diabo deve dar boas e surpreendidas gargalhadas. Há mais que piolhos na cabeça de tipos como a Pequena Molambenta. Há mais que calvície na cabeça de velhos como papai. Perdido nessa bobeira, não me dou conta de que o negão levara duas de minhas caixas também. Meus livros.
O INFERNO ESTÁ CHEIO DE VELHOS SIMPÁTICOS E MENINAS BOAZINHAS Corro até a esquina e chamo a dupla de volta. – Por que estão levando minhas caixas? Ela olha para cima, esmagada pelo sol a pino. – Foi ele. O Alceu que pegou. Impute o erro ao mais próximo de você – eis a boa fórmula da sobrevivência.
Tenho vontade de gritar com eles, mas não consigo falar assim com quem está mais fodido do que eu, por mais que mereçam. Não digo isso porque tenho pena dela, às vezes bate em mim um imprestável coração de gelatina. O imperador Calígula disse que é muito fácil ser um deus: basta endurecer o coração. Então, para sempre eu serei uma ameba. – Você não sabia que aquelas caixas eram minhas? É claro que ela sabia. Mas aos 11 (?) anos ela já é diplomada e pós-graduada na arte de furtar. – Manda ele botar tudo no lugar onde achou. E sem demora as duas caixas estão de volta. – Você tem para onde ir? – eu pergunto. Ela me conta que ficará na casa de um pai de santo. – Pai Ramiro de Oxóssi. Conhece? – Nunca vi mais fresco. – Mas ele é famoso, até político vai lá. Até na rádio ele consulta. – Não diga! A fila de velhos pedófilos dá a volta ao mundo, mas com um pouco de sorte, e se a fama dos pais de santo prevalecer, esse tal pai de santo vai ser uma mãe para a Pequena Molambenta.
Papai estava na horrível fase em que os velhos ficam ruminando a mesma história, o tempo todo. E a pequena aguentou uma boa pá de meses. Ela merece dias melhores. O velho era tão filho da puta, que quem passasse na porta veria um senhor simpático e uma menina boazinha (o inferno está cheio de velhos simpáticos e meninas boazinhas), mas a sós ele reclamava de tudo. O tempo inteiro. Principalmente porque não botávamos dinheiro dentro de casa. Adeus, conto sórdido antigo. – Te cuida. – Taaaaaaa! – ela desaparece, toda saltitante. Chapeuzinho Vermelho finalmente livre. E não deixa de ser estranhamente belo e de causar uma cicatriz na memória. Bom. Pelo menos uma pessoa está feliz neste lindo planeta poluído.
QUANDO O INFERNO FECHOU PARA REFORMA Vou pôr a gravata chinesa enquanto arrumo as ideias: com a certidão de óbito, talvez eu arranje vaga na Casa do Estudante; é minha única saída. Porque, por aqui, senhores, o inferno fechou para reforma.
– Tem um soldado abestalhado aí na frente perguntando se teu pai mora aqui. O que é que eu digo a ele? Eu só sei que eu é que não moro mais. Ha ha ha! A Senhorita Ninguém está de volta. – Você não tinha ido embora? – Você não quer o endereço de onde eu vou ficar? Quando cheguei lá na frente, eu pensei nisso – diz ela. Sim, fico emocionado com o que ela acaba de me dizer. O fato de ter um soldado me procurando, não ela me dar seu novo endereço.
Totalmente nervoso, vou ver quem é esse policial. Meu Deus, e mais essa agora? Porém, seja lá o que o velho tenha aprontado, esse policial chegou tarde. A dona Justiça vai ficar sem receber. Mas oh que alívio!, não é um policial militar, e, sim, um soldado raso do exército brasileiro que veio com um daqueles carros-monstros bebedores de petróleo com tração nas quatro rodas, vindo a mando do Militar H., marido da minha irmã, para me levar ao meu novo lar. Com um carro desses, o Militar H. só pode estar comendo da banda boa da vida – e indo morar lá estarei enfim dispensado de comer da banda podre da vida. Empurro minhas caixas para dentro do carro e rejeito a carona do soldado bonzinho porque digo que vou para a faculdade e é muito contramão. – Sobe, eu te deixo lá. O carro é bonito, sim, mas há uma miniatura do horrível palhaço da McDonald’s pendurada no espelho, que é de doer de mau gosto. Então o Cabo Anselmo se dignou a me informar:
– Quem vai te levar é o carro, não eu – sorri o Cabo Bonzinho, em seguida pergunta o que estudo. – Direito – eu digo, alisando minha linda e chinesa gravata barata. – Legal. – Mas a bosta da faculdade é paga – informo. – Então, quer dizer que você é o Bernardo? É impressão minha ou há um tom de xaveco na voz do Cabo Bonzinho? – Pois é, mais um estudante de Direito no país; hoje em dia, até os cachorros são bacharéis em Direito. – O Coronel me deu o dia livre; depois, a gasolina é por conta do governo mesmo, sobe aí. Papai morreu, mas vou ganhar casa nova. Tenho 21 anos. Pressão 12/8. E fuck you, mister Bill Gates! – eu terei um futuro, mesmo sem estudar mandarim – muito embora o palhaço da McDonald’s balance e caçoe de mim durante todo o trajeto, me dizendo que não. Mas quem quer saber de mais essa porcaria fabricada na China?
WALTHER MOREIRA SANTOS é autor, entre outros, dos romances Um certo rumor de asas e O ciclista e do livro de contos O metal de que somos feitos.